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Processo n.º 777/08
Plenário
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional (LTC), a apreciação e a declaração, com
força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do artigo
189.º, n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas,
aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, “que impõe que o juiz, na
sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do
administrador da sociedade comercial declarada insolvente”.
Alega-se no pedido que a norma em causa foi, no âmbito da fiscalização concreta
da constitucionalidade, julgada, por três vezes, materialmente inconstitucional,
por ofensa ao artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º da Constituição, no
segmento em que consagra o direito à capacidade civil. Tal sucedeu no Acórdão
n.º 564/2007 e nas decisões sumárias n.ºs 615/2007 e 85/2008.
2. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º,
n.º 3, da LTC, o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos
autos.
3. Debatido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, nos termos do
artigo 63.º da LTC, e fixada a orientação do Tribunal, procedeu-se à
distribuição do processo, cumprindo agora formular a decisão.
II – Fundamentação
4. Não se suscitam dúvidas quanto ao preenchimento dos pressupostos de que os
artigos 281.º, n.º 3, da CRP, e 82.º da LTC fazem depender a apreciação de um
pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral.
Na verdade, como se aduz no pedido, a mesma norma já foi julgada
inconstitucional em três casos concretos. No acórdão n.º 564/2007, foi decidido
«julgar inconstitucional a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do mesmo
diploma [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas], por ofensa ao
artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º da Constituição da República, no
segmento em que consagra o direito à capacidade civil». Na decisão sumária n.º
615/2007, por sua vez, decidiu-se julgar inconstitucional a mesma norma “quando
aplicada a administrador de sociedade comercial declarada insolvente”. Na
decisão sumária n.º 85/2008, o julgamento de inconstitucionalidade obedeceu aos
mesmos termos dos constantes no acórdão n.º 564/2007.
A mais destes três decisões identificadas pelo requerente, também os acórdãos
n.ºs 570/2008, 571/2008, 584/2008, e as decisões sumárias n.ºs 267/2008,
323/2008, 376/2008, 417/2008 e 425/2008 se pronunciaram pela
inconstitucionalidade da norma constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º
do CIRE, com fórmulas decisórias idênticas à do acórdão n.º 564/2007. Os
acórdãos n.ºs 581/2008 e 582/2008, bem como as decisões sumárias n.ºs 288/2008,
321/2008, 371/2008 e 421/2008 julgaram essa norma inconstitucional “na parte em
que impõe que o juiz, na sentença, decrete a inabilitação do administrador da
sociedade comercial declarada insolvente”.
Como se vê, não há coincidência total na identificação das pessoas sujeitas à
aplicação da medida de inabilitação. De facto, enquanto que, num grupo de
decisões (aí incluída a primeiramente tomada), não se faz qualquer enunciação
restritiva, já num outro se circunscreve o juízo de inconstitucionalidade a uma
certa dimensão aplicativa da norma: a aplicação a administradores de sociedade
comercial declarada insolvente.
Há, no entanto, que ter presente que, em todas as situações alvo das decisões
apontadas pelo requerente, sempre os sujeitos afectados pelo decretamento da
inabilitação revestiam essa qualidade. Daí que, tratando-se de fiscalização
concreta, a “norma do caso” tinha forçosamente esse âmbito directo de
incidência, ainda quando a decisão o não refira expressamente.
O requerente pede a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do
artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE, “que impõe que o juiz, na sentença que
qualifique a insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador
da sociedade comercial declarada insolvente”.
Pode concluir-se, atento o exposto, que há correspondência entre o objecto do
pedido e o objecto das decisões de inconstitucionalidade, em três casos
concretos.
5. O artigo 189.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de
Empresas (CIRE), aprovado pelo Decreto Lei n.º 53/2004, estabelece, sob a
epígrafe 'sentença de qualificação':
«Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
a) Identificar as pessoas afectadas pela qualificação;
b) Decretar a inabilitação das pessoas afectadas por um período de 2 a 10 anos;
c) Declarar essas pessoas inibidas para o exercício do comércio durante um
período de 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de
órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de
actividade económica, empresa pública ou cooperativa;
d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa
insolvente detidos pelas pessoas afectadas pela qualificação e a sua condenação
na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos.»
A disposição legal prevê, portanto, para além de outras medidas, a
inabilitação obrigatória das pessoas afectadas pela qualificação da falência
como culposa, independentemente da verificação dos requisitos gerais da
inabilitação.
Ainda que com antecedentes remotos no direito pátrio, que remontam ao Código
Comercial de 1833, e se prolongaram até ao Código de Processo Civil de 1939, a
solução não se encontrava prevista no Código dos Processos Especiais de
Recuperação da Empresa e de Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de
23 de Abril, pelo que tem carácter inovador.
Parece poder retirar-se de uma alusão expressa no n.º 40 do preâmbulo do
Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que a fonte directa da norma em causa
foi a Ley Concursal espanhola (Ley 22/2003), promulgada pouco antes, em 9 de
Julho de 2003. Mas aí (artigo 172., 2., 2.), a condição pessoal designada como
“inabilitação” afecta bem menos a capacidade do sujeito afectado, pois
retira-lhe apenas legitimidade para administrar bens alheios e para representar
outras pessoas – cfr. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, I, 6.ª ed.,
Coimbra, 2006, 125, n. 100.
Na doutrina, aventa-se a hipótese de que este diverso alcance se ficou a dever a
uma tradução à letra do vocábulo “inhabilitácion”, sem representar o seu
significado próprio no direito espanhol, não coincidente com o da figura como
tal designada e regulada no nosso Código Civil, que o direito dos nossos
vizinhos desconhece – cfr. LUÍS CARVALHO FERNANDES, “A qualificação da
insolvência e a administração da massa insolvente pelo devedor”, Themis, 2005,
104, n. 36, e RUI PINTO DUARTE, “Efeitos da declaração de insolvência quanto à
pessoa do devedor”, ibidem, 146 (Autor, este, que não hesitou em afirmar que
“parece, pois, que o legislador do CIRE se equivocou quanto ao sentido da sua
fonte inspiradora”).
Seja como for, a consagração da medida provocou, quase de imediato, viva reacção
crítica na doutrina nacional, dela merecendo epítetos como “estranha” (COUTINHO
DE ABREU, ob. loc. cit.), ou “absurdas” (RUI PINTO DUARTE, ob. cit., 145, em
referência às normas que a regulam: para além da norma sub judicio, o artigo
190.º do CIRE).
Mas, para lá das críticas que possa suscitar no plano do direito ordinário, será
que a norma da alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE está também ferida de
inconstitucionalidade?
6. Assim o entendeu o Acórdão n.º 564/2007, considerando que a disposição, ao
impor a inabilitação como efeito necessário da situação de insolvência culposa,
violava o artigo 18.º, n.º 2, e o artigo 26.º da Constituição, na parte em que
este último reconhece o direito à capacidade civil.
Para decidir em tal sentido, o mencionado Acórdão, depois de afastar a violação
de outros parâmetros constitucionais invocados pelo requerente, expendeu a
fundamentação que a seguir se transcreve:
«De facto, a inabilitação a que a insolvência pode conduzir só pode ser a
correspondente ao instituto jurídico civilístico com essa designação, previsto
nos artigos 152.º e seguintes do Código Civil – neste sentido, CARVALHO
FERNANDES, “A qualificação da insolvência e a administração da massa insolvente
pelo devedor”, Themis, ed. esp., 2005, 97. Trata-se, pois, de uma situação de
incapacidade de agir negocialmente, traduzindo a inaptidão para, por acto
exclusivo (sem carecer do consentimento de outrem), praticar “actos de
disposição de bens entre vivos e todos os que, em atenção às circunstâncias de
cada caso, forem especificados na sentença” (artigo 153.º, n.º 1, do Código
Civil).
Ora, o reconhecimento constitucional da capacidade civil, como decorrência
imediata da personalidade e da subjectividade jurídicas, cobre, tanto a
capacidade de gozo, como a capacidade de exercício ou de agir. É certo que,
contrariamente à personalidade jurídica, a capacidade, em qualquer das suas duas
variantes, é algo de quantificável, um posse susceptível de gradações, de
detenção em maior ou menor medida. Mas a sua privação ou restrição, quando
afecte sujeitos que atingiram a maioridade, será sempre uma medida de carácter
excepcional, só justificada, pelo menos em primeira linha, pela protecção da
personalidade do incapaz. É “em homenagem aos interesses da própria pessoa
profunda” (ORLANDO DE CARVALHO, Teoria geral do direito civil, polic., Coimbra,
1981, 83), quando inabilitada, por razões atinentes à falta de atributos
pessoais, para uma autodeterminação autêntica na condução de vida e na gestão
dos seus interesses, que a incapacidade, em qualquer das suas formas, pode ser
decretada.
Daí que, para além do disposto no n.º 4 do artigo 26.º da Constituição, as
restrições à capacidade civil, incluindo a capacidade de agir, só sejam
legítimas quando os seus motivos forem “pertinentes e relevantes sob o ponto de
vista da capacidade da pessoa”, não podendo também a restrição “servir de pena
ou de efeito de pena” (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2007, 465).
Nenhuma destas duas condições está aqui preenchida. De facto, neste âmbito, a
inabilitação não resulta de uma situação de incapacidade natural, de um modo de
ser da pessoa que a torne inapta para a gestão autónoma dos seus bens, mas de um
estado objectivo de impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas
(artigo 3.º, n.º 1, do CIRE), imputável a uma actuação culposa do devedor ou dos
seus administradores. Forma de conduta que, só por si, não é, evidentemente,
indiciadora de qualquer característica pessoal incapacitante.
Em vez de acorrer em tutela de um “sujeito deficitário”, precavendo os seus
interesses, a inabilitação é, no quadro da insolvência, uma resultante forçosa
de uma dada situação patrimonial, efectivada com total abstracção de
características da personalidade do inabilitado, que possam ter conduzido a essa
situação.
Que essa correlação inexiste, prova-o, além do mais, o facto de a inabilitação
ser decretada por um prazo fixo, sem possibilidade de levantamento, previsto no
regime comum, para o caso de desaparecimento das causas de incapacidade natural
que, nesse regime, a fundaram.
E nem se diga que a figura é instrumentalizada para defesa dos interesses dos
credores, pois a inabilitação em nada contribui para a consecução da finalidade
do processo de insolvência. Este, nos termos do artigo 1.º do CIRE, «é um
processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do
património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos
credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência
(…).»
Para atingir essa finalidade, já existe um mecanismo adequado no processo,
tendente à conservação dos bens penhorados. Trata-se da transferência para o
administrador da insolvência dos poderes de administração e disposição dos bens
integrantes da massa insolvente (artigo 81.º, n.º 1, do CIRE).
Mas esta limitação de actuação negocial não pode ser confundida com uma
incapacidade, quer pela sua causa e função, quer pelos efeitos dos actos
praticados pelo insolvente em contravenção daquela norma: esses actos estão
feridos de ineficácia (n.º 6 do artigo 81.º), não de anulabilidade, como seria o
caso se fosse a incapacidade a qualificação apropriada. Assim se protege, na
justa medida, os interesses dos credores.
Foi por reconhecer que a situação não pode ser qualificada de incapacidade que o
Acórdão n.º 414/2002 deste Tribunal se pronunciou pela conformidade
constitucional do, entre outros, artigo 147.º do anterior Código dos Processos
Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a que corresponde, no actual
Código, o artigo 81.º, n.º 1. Diz-se aí que essa norma não viola o artigo 26.º
da CRP porque «tão pouco afecta o seu [do falido] direito à capacidade civil,
mesmo entendido o sentido constitucional deste direito de uma forma ampla (há
unanimidade na doutrina, no sentido de que não se trata de uma situação de
“incapacidade”) […]».
Nada acrescentando à defesa da integridade da massa insolvente, não se vê também
que a inovação introduzida pelo artigo 189.º, n.º 2, alínea b), possa contribuir
eficazmente para a defesa dos interesses gerais do tráfego, resguardando a
posição de eventuais credores futuros do inabilitado. Pois, na verdade, e de
acordo com o regime da inabilitação, estes não terão legitimidade para arguir a
invalidade dos actos celebrados pelo inabilitado sem o consentimento do curador.
Essa legitimidade, por força do disposto no artigo 125.º do Código Civil,
aplicável, com as devidas adaptações, por remissão dos artigos 156.º e 139.º do
mesmo Código – v., por todos, C. MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª
ed. por A. PINTO MONTEIRO/P. MOTA PINTO, Coimbra, 2005, 243 – cabe apenas ao
curador, ao próprio inabilitado, uma vez readquirida a capacidade plena, e aos
seus herdeiros.
A inabilitação prevista na alínea b) do n.º 2 do artigo 189.º do CIRE só pode,
pois, ter um alcance punitivo, traduzindo-se numa verdadeira pena para o
comportamento ilícito e culposo do sujeito atingido.
Sintomaticamente, a sua duração é fixada dentro de uma moldura balizada por um
mínimo e um máximo, tal como as penas do foro criminal. E os critérios para a
sua determinação, em concreto, não andarão longe dos que operam nesta área
(designadamente, o grau de culpa e a gravidade das consequências lesivas), pois
não se vê que outros possam ser utilizados.
Essa “pena” fere o sujeito sobre quem recai com uma verdadeira capitis
diminutio, sujeitando-o à assistência de um curador (artigo 190.º, n.º 1). Ele
perde a legitimidade para a livre gestão dos seus bens, mesmo os não apreendidos
ou apreensíveis para os fins da execução, situação que se pode prolongar para
além do encerramento do processo (artigo 233.º, n.º 1, alínea a)).
Consequência que, tendo também presente a globalidade dos efeitos da
insolvência, e em particular a inibição para o exercício do comércio, não pode
deixar de ser vista como inadequada e excessiva.
O que tudo leva a concluir pela desconformidade do artigo 189.º, n.º 2, alínea
b), do CIRE, com o artigo 26.º, conjugado com o artigo 18.º, da Constituição da
República.»
7. Estando em juízo a violação do princípio da proporcionalidade – o que é um
denominador comum a todas as decisões que sustentam o pedido em apreciação neste
processo ─, é determinante, para a formação dos juízos ponderativos que a
aplicação desse princípio subentende, a identificação da teleologia imanente à
norma sub judicio e dos interesses que ela procura acautelar.
Não existe, nesta matéria, unanimidade de concepções, como se pode constatar
pela simples análise da jurisprudência deste Tribunal. Enquanto que o Acórdão
n.º 564/2007 não logrou descortinar outra intenção legislativa, por detrás da
imposição de decretar a inabilitação, que não fosse a de sancionar a conduta
culposa dos sujeitos afectados, a decisão sumária n.º 615/2007, fazendo-se eco
de algumas posições doutrinárias, deixa em aberto o entendimento alternativo de
que ela visa proteger esses sujeitos.
Diga-se, além do mais que já ficou expresso naquele acórdão, que os pressupostos
aplicativos da inabilitação, só imposta em caso de culpa qualificada (nos termos
do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, a culpa relevante circunscreve-se aqui ao dolo
ou à culpa grave), criam obstáculos decisivos ao acolhimento desta segunda
hipótese, fornecendo, ao invés, um bom argumento em prol da primeira.
Na verdade, se o destinatário da tutela fosse o próprio afectado pela medida,
não se compreenderia a restrição do âmbito subjectivo dos destinatários aos
administradores menos merecedores dessa protecção, por lhes ser imputável uma
conduta gestionária altamente censurável, deixando de fora aqueles que actuaram
sem culpa ou com culpa leve.
De resto, a ser esse o fundamento da inabilitação, ficaria sempre por explicar
porque é que os pressupostos gerais dessa medida, tal como estabelecidos no
Código Civil, se mostram aqui insuficientes ou inadequados, abrindo campo para a
aplicação de uma medida restritiva da capacidade, como efeito acessório
necessário de uma situação de insolvência culposa, sem dependência da
comprovação, pelos meios processuais próprios, de um défice de capacidade
natural.
O ponto decisivo é mesmo este. Na verdade, não pode excluir-se que a
impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, justificativa
da insolvência, seja o resultado de um comportamento anómalo, revelador da falta
de qualidades exigíveis para uma autónoma e auto-responsável gestão dos
interesses próprios. Mas, para os casos em que assim é, não se vislumbram, sob o
prisma da tutela do incapaz, especiais razões determinantes de desvios ao regime
comum, quanto à certificação da ocorrência (e permanência) de qualquer das
causas de inabilitação em geral previstas.
Ao dispensar inteiramente os pressupostos condicionantes consagrados no artigo
152.º do Código Civil, impondo ao juiz, em caso de insolvência culposa, o dever
de, sem mais, decretar a inabilitação, o legislador mostra que a instituiu, em
si mesma, como uma adicional causa autónoma dessa medida, por razões distintas
da que subjaz ao regime das normas codicísticas.
É seguro, pois, que a medida não é determinada pela intenção de tutela do
interesse do próprio inabilitado – incontroversamente o interesse visado por
todas as formas de incapacidade submetidas ao regime comum, incluindo a
inabilitação por habitual prodigalidade, como é entendimento unânime da doutrina
privatista (cfr., por todos, além de ORLANDO DE CARVALHO, ob. loc. cit. no
Acórdão n.º 564/2007, CARLOS MOTA PINTO, ob. cit. no mesmo acórdão, 227-228, e
PEDRO PAIS DE VASCONCELOS, Teoria geral do direito civil, Coimbra, 2005, 3.ª
ed., 109 e 117).
8. O Acórdão n.º 564/2007 assumiu que a vinculação das incapacidades a esse fim
é também um imperativo constitucional, pelo que não é constitucionalmente
admissível a instrumentalização das restrições à capacidade civil para atingir
outros objectivos, designadamente como sanção à conduta culposa dos
administradores da sociedade comercial declarada insolvente. Este entendimento
já foi sufragado na doutrina (cfr. LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito da insolvência,
Coimbra, 2009, 275-276).
No quadro desta posição, a solução em causa contraria o princípio da
proporcionalidade logo no primeiro patamar do controlo da sua observância, pois
a “legitimidade constitucional dos fins prosseguidos com a restrição”, bem como
a “legitimidade dos meios utilizados” constituem um “pressuposto lógico” da sua
idoneidade (nesse sentido, JORGE REIS NOVAIS, Os princípios constitucionais
estruturantes da República Portuguesa, Coimbra, 2004, 166). Ora, se admitirmos –
como se decidiu no Acórdão n.º 564/2007 – que só a tutela do naturalmente
incapaz goza de credencial bastante como justificação constitucionalmente
relevante de medidas restritivas da capacidade civil, fica, à partida,
irremediavelmente comprometida a validação da utilização das incapacidades como
meio de prossecução de qualquer outro fim. Independentemente da justeza
intrínseca desse outro fim, é ilegítima a sua prossecução por meio da sujeição
dos administradores a um regime de incapacidade como o da inabilitação.
Mas, mesmo adoptando uma posição mais complacente, acolhedora da legitimidade
constitucional de uma concepção da inabilitação como um instrumento
multivocacionado, idóneo a servir outros interesses, que não apenas os do
próprio incapaz, a norma em questão não passa o test da proporcionalidade.
Na verdade, sendo nula a relevância da inabilitação no processo de insolvência e
seus resultados (LUÍS CARVALHO FERNANDES, ob. cit., 102) não serão os interesses
dos credores da massa insolvente (tutelados por outra via), mas interesses
gerais do tráfico, designadamente mercantil, os visados com a medida. Nesta
óptica (em que se coloca a declaração de voto de vencido exarada no Acórdão n.º
564/2007), tendo um carácter sancionatório, a medida estaria reflexamente
abonada em razões de prevenção de condutas culposamente atentatórias da
segurança do comércio jurídico em geral.
Simplesmente, para esse fim, continua a estar prevista a tradicional medida de
inibição do exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular
de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de
actividade económica, empresa pública ou cooperativa (alínea c) do n.º 2 do
artigo 189.º), como sanção adicionável, e não alternativa, à da inabilitação.
Tendo em conta o obrigatório decretamento da inibição – medida só justificável
por atenção àqueles interesses gerais – e o universo dos afectados, coincidente
com os sujeitos à inabilitação, pode concluir-se que a sanção mais gravosa da
inabilitação não é indispensável para a salvaguarda desses interesses. Sendo
assim, resulta violado o critério da necessidade ou exigibilidade, postulado
pelo princípio da proporcionalidade.
Noutra óptica, para quem possa entender que a eficácia preventiva resulta melhor
satisfeita com a inabilitação, será sempre de decidir que a cumulação e
aplicação simultânea das duas restrições atenta contra a proibição do excesso.
É de concluir, pois, que, seja qual for a perspectiva elegida, quanto à
finalidade do regime em apreciação, e quanto à teleologia do instituto da
inabilitação, a norma do artigo 189.º, n.º 2, alínea b), do CIRE viola o
princípio da proporcionalidade.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional acorda em
declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do artigo 189.º,
n.º 2, alínea b), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas,
aprovado pelo Decreto Lei nº 53/2004, de 18 de Março, por violação dos artigos
26.º e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que
impõe que o juiz, na sentença que qualifique a insolvência como culposa, decrete
a inabilitação do administrador da sociedade comercial declarada insolvente.
Lisboa, 2 de Abril de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro (com declaração de voto)
Maria Lúcia Amaral
José Borges Soeiro
Vítor Gomes
Maria João Antunes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Pamplona de Oliveira
Mário José de Araújo Torres
Gil Galvão
João Cura Mariano (com declaração de voto que anexo).
Benjamim Rodrigues (vencido de acordo com a declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Em observância do princípio do pedido, e tendo em conta o objecto do
requerimento apresentado pelo Ministério Público, a decisão de
inconstitucionalidade recaiu apenas sobre uma dimensão da norma constante do
artigo 189.º, n.º 2: a que impõe que o juiz, na sentença que qualifique a
insolvência como culposa, decrete a inabilitação do administrador da sociedade
comercial declarada insolvente.
Mas entendo que o pedido poderia ter ido mais longe, facultando uma decisão de
âmbito subjectivo não circunscrito a esses sujeitos, antes coincidente com o
universo dos afectados com a medida (os identificados no n.º 2 do artigo 186.º
do CIRE), para o que, aliás, já dispunha de decisões em processos de
fiscalização concreta em número bastante.
Partindo, como parto, da convicção firme de que uma medida restritiva da
capacidade civil, mesmo da capacidade de agir negocial, está, também por
imperativo constitucional, vinculada ao fim de tutela do próprio incapaz, e de
que não é essa a teleologia da norma em questão, não descortino qualquer razão
para circunscrever o alcance da decisão àquela categoria de inabilitados.
Lisboa, 2 de Abril de 2009
Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho a fundamentação do presente acórdão por entender que sendo a
declaração de inconstitucionalidade limitada à aplicação da medida de
inabilitação prevista no artigo 189.º, n.º 2, b), do C.I.R.E., aos
administradores de sociedade comercial declarada insolvente, o juízo radical de
que a aplicação de tal medida a qualquer insolvente não é constitucionalmente
admissível, além de me suscitar sérias reservas, é certamente excessivo.
Conforme se encontra melhor explicado na decisão sumária n.º 615/07 deste
Tribunal, de 27 de Novembro de 2007 (acessível no site
www.tribunalconstitucional.pt), aplicando-se a medida de inabilitação, nos
termos do artigo 189.º, nº 2, b), do C.I.R.E., a um administrador duma sociedade
comercial declarada insolvente, ao qual também é aplicável a medida de inibição
para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de
órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de
actividade económica, empresa pública ou cooperativa, nos termos da alínea c),
do n.º 2, do mesmo artigo 189.º, independentemente da perspectiva que tivermos
da motivação da utilização daquela figura civilista (medida de protecção ou
sanção ao inabilitado), a sua previsão legal surge sempre manifestamente
desproporcionada.
Na verdade, a conduta causadora da insolvência não ocorreu na gestão do
património pessoal do administrador da sociedade comercial, mas sim no exercício
da sua actividade profissional, pelo que nem o seu interesse, nem o dos seus
credores pessoais, nem sequer o do tráfego jurídico-económico, reclamam tal
medida, a qual se revela, assim, desnecessária e desadequada ao facto que a
desencadeia.
Não existindo qualquer manifestação por parte do administrador da sociedade
declarada insolvente que este não se encontra apto a gerir convenientemente o
seu património, a aplicação da medida de inabilitação, limitadora da sua
capacidade jurídica, não é proporcionada, pelo que não é admitida, nos termos do
artigo 18.º, da C.R.P., mostrando-se, pois, violado o direito constitucional à
capacidade civil, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da C.R.P..
Este raciocínio era o bastante para se ter atingido a decisão que subscrevi.
João Cura Mariano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido pelo essencial das razões constantes da declaração de vencido,
aposta ao Acórdão n.º 564/07. Em rectas contas, o acórdão acaba por abonar-se
num entendimento segundo o qual o instituto da inabilitação é um instrumento
jurídico que está ao serviço da protecção dos interesses da pessoa inabilitada,
procedendo a uma espécie de “constitucionalização” da figura da inabilitação.
Ora, no quadro do direito fundamental à capacidade civil, consagrado
no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição, a inabilitação não é mais do que uma
restrição a esse direito cuja constitucionalidade tem de obedecer às regras
constantes no artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição, podendo o instituto ser
acolhido para dar satisfação a outros interesses que não apenas da pessoa
inabilitada, como os interesses gerais do comércio e da segurança jurídica, como
se adensou na referida declaração de voto.
Por outro lado, ao contrário da linha metodológica adoptada,
afigura-se-me que o teste do cumprimento das exigências condensadas no princípio
da proporcionalidade deve ser estabelecido, apenas, num diálogo entre aqueles
interesses, com relevância constitucional, exteriores ao sujeito inabilitado e o
seu direito fundamental à capacidade civil plena e não no interior do próprio
instituto.
E dentro desta linha, continuamos a não descortinar razões, como já expusemos na
mencionada declaração de vencido, para censurar a opção normativa feita pelo
legislador ordinário, sendo que, como se disse no Acórdão n.º 187/01, disponível
em www.tribunalconstitucional.pt:
“[…] não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da
administração – […] uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de
confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas
entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela
resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução
dos objectivos visados com a medida […]. Tal prerrogativa da competência do
legislador na definição dos objectivos e nessa avaliação […] afigura-se
importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objectivo é
social ou economicamente complexa, e a objectividade dos juízos que se podem
fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer.
[…] em casos destes, em princípio, o Tribunal não deve substituir uma sua
avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os
efeitos das medidas, à que é efectuada pelo legislador, e que as controvérsias
geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de
apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem
sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a
posição do legislador”.
Benjamim Rodrigues