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Processo n.º 760/08
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e
Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de
Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da
inconstitucionalidade da norma constante do artigo 138.º, n.º 2 do Código da
Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, na
parte em que determina que seja punido por crime de desobediência qualificada
quem conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por força da
aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal, constante
de sentença criminal transitada em julgado.
O pedido funda-se no facto de o Tribunal Constitucional já ter julgado, no
âmbito da fiscalização concreta, tal norma organicamente inconstitucional, por
preterição do artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da Constituição, no Acórdão nº
574/2006 e nas decisões sumárias nºs 58/2008 e 137/2008.
Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC,
o Primeiro-Ministro, em resposta, ofereceu o merecimento dos autos.
2. Discutido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal,
cumpre formular a decisão em conformidade com a orientação fixada.
II – Fundamentação
3. A norma que agora é objecto do pedido de declaração de
inconstitucionalidade com força obrigatória geral consta do artigo 138.º, n.º 2,
do Código da Estada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de
Fevereiro, que estatui o seguinte:
«Quem praticar qualquer acto estando inibido ou proibido de o fazer por sentença
transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva que aplique uma
sanção acessória é punido por crime de desobediência qualificada».
Este preceito remete, pois, para o artigo 348.º, n.º 2, do Código
Penal, que estabelece a pena aplicável ao crime de desobediência qualificada nos
termos seguintes: “A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos
casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência
qualificada”.
A razão pela qual o Tribunal, em sede de fiscalização concreta nas
decisões invocadas pelo requerente, julgou organicamente inconstitucional a
norma do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, foi o facto de ela ter
alargado o âmbito de aplicação da norma que pretendeu substituir, sem que
houvesse na Lei n.º 53/2004, de 4 de Novembro, que concedeu ao Governo a
autorização para proceder à revisão do Código da Estrada ao abrigo da qual foi
publicado o Decreto-Lei n.º 44/2005, qualquer referência à possibilidade de o
fazer.
De facto, o artigo 139.º, n.º 4, da redacção anteriormente vigente
do mesmo Código da Estrada, tinha o seguinte teor:
“Quem conduzir veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença
transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva é punido por
desobediência qualificada.”
Ora, limitando-nos neste passo à comparação das versões do Código da Estrada em
sucessão, o teor destes dois preceitos não coincide. Como se explicou no Acórdão
n.º 114/08, houve uma alteração do âmbito de aplicação:
“Cotejando os preceitos transcritos, verifica-se que, além da diferente
numeração, e da alteração da epígrafe do preceito, existem as seguintes
diferenças entre os textos legais em comparação:
i) onde anteriormente se dizia: «Quem conduzir veículo a motor …», agora diz-se:
«Quem praticar qualquer acto»;
ii) onde se dizia: «….estando inibido de o fazer», passou a dizer-se: «…estando
inibido ou proibido de o fazer».
Na parte em que a norma não é inovadora, explica o mesmo
Acórdão, não há qualquer inconstitucionalidade:
“Com efeito, o Tribunal já por diversas vezes afirmou, em jurisprudência que
remonta à Comissão Constitucional, que o facto de o Governo aprovar actos
normativos respeitantes a matérias inscritas no âmbito da reserva relativa de
competência da Assembleia da República não determina, por si só e
automaticamente, a invalidação das normas que assim decretem, por vício de
inconstitucionalidade orgânica. Força é que se demonstre que as normas postas
sob observação não criaram um regime jurídico materialmente diverso daquele que
até essa nova normação vigorava, limitando-se a retomar e a reproduzir
substancialmente o que já constava de textos legais anteriores emanados do órgão
de soberania competente (Cfr. os acórdãos n.ºs 502/97, 589/99, 377/02, 414/02,
450/02, 416/03, 340/05 estes tirados em Secção e publicados no Diário da
República, II Série, de 4 de Novembro de 1998, de 20 de Março de 2000, de 14 de
Fevereiro de 2002, de 17 de Dezembro de 2002, de 12 de Dezembro de 2002, de 6 de
Abril de 2004 e de 29 de Julho de 2005, bem como o acórdão n.º 123/04 (Plenário)
publicado no Diário da República, I Série-A, de 30 de Março de 2004. Cfr. ainda,
aliás com posição discordante, a indicação de Jorge Miranda, Manual de Direito
Constitucional, tomo V, págs. 234/235).”
Contudo, a norma do artigo 138.º, n.º 2, agora impugnada, não se
limitou a substituir o antigo artigo 139.º, n.º 4, do Código da Estrada; alargou
o seu âmbito de aplicação. Foi, por isso, julgada organicamente inconstitucional
no Acórdão n.º 574/2006 e nas decisões sumárias n.ºs 58/2008 e 137/2008.
Os fundamentos para esse julgamento de inconstitucionalidade foram
assim expressos no Acórdão n.º 574/2006:
“O artigo 138º, nº 2, do Código da Estrada, tem a redacção do Decreto-Lei nº
44/2005, de 23 de Fevereiro. Este preceito alarga a incriminação da
desobediência qualificada que resultava do artigo 139º, nº 4, do Código da
Estrada, na redacção anterior. Com efeito, enquanto esta disposição previa a
punição da condução por quem estivesse inibido de o fazer por sentença ou
decisão administrativa, o referido artigo 138º, nº 2, consagra a punição do
agente que pratique qualquer acto para cuja prática esteja proibido ou inibido.
Cabe sublinhar que a norma a que se refere o artigo 348º, nº 2, do Código Penal
(a norma que prevê o comportamento a punir como desobediência qualificada)
consubstancia ainda a definição de crime, pelo que a sua emissão está abrangida
pela reserva parlamentar a que se refere o artigo 165º, nº 1, alínea c), da
Constituição.
Ora, da Lei nº 53/2004, de 4 de Novembro, Lei que autorizou o Governo a proceder
à revisão do Código da Estrada, não consta qualquer referência à matéria penal
em causa.
A nova norma, ainda que com zonas de sobreposição, abrange hipóteses distintas e
implica ponderações diferentes, nomeadamente no que respeita à variação relativa
da gravidade da ilicitude dos vários comportamentos tipificados, com
consequências para os comportamentos que agora são abrangidos. Com efeito, o nº
4 do artigo 139º do Código da Estrada, na redacção anterior ao Decreto-Lei nº
44/2005, de 23 de Fevereiro, previa a punição por desobediência qualificada para
quem conduzisse veículo a motor estando inibido de o fazer por sentença
transitada em julgado ou decisão administrativa definitiva, ao passo que o nº 2
do artigo 138º do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei nº 44/2005, de
23 de Fevereiro, prevê a mesma punição quer para quem praticar qualquer acto,
quer esteja inibido quer esteja proibido de o fazer. […] Como se verifica, não
existe total coincidência entre a factualidade típica constante das duas normas
incriminadoras.
Conclui‑se, pois, que o Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, procedeu a
alterações para as quais não foi concedida autorização legislativa, pelo que se
confirmará o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão recorrida.”
O carácter inovador da norma em crise, na dimensão agora impugnada,
foi bem
explicitado no já citado Acórdão n.º 114/08, de harmonia com o texto que se
segue:
“O legislador pretendeu abranger na punição da desobediência qualificada
prevista no n.º 2 do artigo 138.º do Código da Estrada não só o agente que
conduza estando inibido de o fazer por força de decisão administrativa ou
judicial, como sanção acessória de contra-ordenação (anterior n.º 4 do artigo
139.º do Código da Estrada), mas também a conduta do individuo que viole, no
domínio rodoviário, as proibições ou interdições que resultem da imposição de
pena acessória por sentença criminal (artigo 353.º do Código Penal). Unificou-se
a punição criminal de condutas que se traduzam em desrespeito de decisões
judiciais ou administrativas que imponham ao agente proibições ou inibições de
conduzir ou outras condutas no domínio da circulação rodoviária, seja qual for a
natureza da infracção (crime ou contra-ordenação) cuja prática pelo agente levou
a essa proibição de agir ou a natureza da decisão que a impôs (decisão judicial
ou administrativa).
Nesta interpretação, o n.º 2 do artigo 138.º, na nova redacção, numa parte
(dimensão ou segmento ideal) sobrepõe-se e noutra é inovador, relativamente ao
anterior n.º 4 do artigo 139.º do Código da Estrada. Seguramente que se limita a
manter o regime anterior na parte em que sanciona o desrespeito pelo cumprimento
da inibição de conduzir veículo a motor resultante da imposição de sanção
acessória pela prática de contra-ordenações, porque essa conduta, já punida nos
mesmos termos na redacção anterior do Código, cabe na expressão “qualquer acto”.
E é inovador na parte em que transpõe para o Código da Estrada o desrespeito por
proibições atinentes à circulação rodoviária, impostas a título de pena
acessória ou medida de segurança por sentença criminal, subtraindo-a do domínio
geral da punição do não cumprimento das obrigações impostas por sentença
criminal.”
E a mesma consideração foi posteriormente reiterada na decisão
sumária n.º 137/08:
“A distinção entre a inibição de conduzir e a proibição de conduzir veículos com
motor consiste em que a primeira é uma sanção acessória aplicável às
contra‑ordenações graves e muito graves (artigo 139.º, n.ºs 1 a 3, do Código da
Estrada, na redacção anterior ao Decreto‑Lei n.º 44/2005, e artigo 138.º, n.º 1,
do mesmo Código, na redacção deste diploma) e a segunda é uma pena acessória
aplicável no caso da condenação por determinados crimes (artigo 69.º do Código
Penal). Por isso, a redacção dada ao artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada
pelo Decreto‑Lei n.º 44/2005 é divisível em duas partes: uma, não inovatória, em
que se limita a manter o regime anterior na parte em que sanciona o desrespeito
pelo cumprimento da inibição de conduzir imposta como sanção acessória à
condenação por contra‑ordenação rodoviária grave ou muito grave; outra,
inovatória, em que estende a incriminação por desobediência qualificada ao
desrespeito pelas proibições impostas, como pena acessória, em condenações
criminais, subtraindo‑a ao precedente regime geral de sancionamento da violação
de proibições ou interdições impostas por sentença criminal, constante do artigo
353.º do Código Penal.
Tendo o Decreto‑Lei n.º 44/2005 sido editado ao abrigo da Lei n.º 53/2004, de 4
de Novembro, que não continha autorização ao Governo para inovar em matéria de
definição de crimes, a redacção dada ao artigo 138.º, n.º 2, do Código da
Estrada é organicamente inconstitucional na parte em que inovatoriamente manda
punir como desobediência qualificada a condução de veículos por quem esteja
proibido de o fazer por sentença criminal […].”
4. É certo que o artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, na parte
em que determina que seja punido por crime de desobediência qualificada quem
conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por força da aplicação
da pena acessória prevista no artigo 69º do Código Penal constante de sentença
criminal transitada em julgado, veio apenas dar uma nova qualificação
(“desobediência qualificada”) a factos que eram e são punidos, nos termos do
artigo 353.º do Código Penal, como “violação de proibição ou interdição”. E é
também certo que essa diferente qualificação será por via de regra irrelevante,
pois as penas aplicáveis à desobediência qualificada e à violação de proibição
ou interdição são as mesmas: “pena de prisão até dois anos ou pena de multa até
240 dias”.
Nessa medida, poderia dizer-se que não houve inovação, não devendo, portanto,
declarar-se a inconstitucionalidade orgânica por falta de autorização
legislativa, de acordo com a jurisprudência do Tribunal mencionada no acórdão
n.º 114/08.
Todavia, há que ter presente que condutas que fariam o agente
incorrer num crime de violação de proibições ou interdições passaram a ser
susceptíveis de punição como desobediência qualificada, uma vez que, quanto à
incriminação do desrespeito pela pena acessória de proibição de conduzir, passou
a haver uma relação de especialidade entre a norma do Código da Estrada e a
norma do Código Penal. Ora, a diferente qualificação poderá não ser totalmente
irrelevante, em especial no caso de futuras medidas legislativas cuja aplicação
implique referências à qualificação ou conexões sistemáticas. Foi o que ficou
afirmado no Acórdão n.º 574/06, cujos termos se transcrevem:
'É verdade que os factos em causa não sofreram qualquer alteração e que as penas
previstas na norma do Código da Estrada e na norma do Código Penal são
idênticas. No entanto, a qualificação de uma dada factualidade à luz de um
determinado preceito tem consequências jurídicas que se repercutem (podem
repercutir‑se) na determinação da responsabilidade criminal do agente. Com
efeito, o princípio da legalidade penal implica a vinculação da qualificação
jurídica que o operador judiciário faz a um determinado regime jurídico,
nomeadamente no que respeita à sucessão de leis no tempo. Na verdade, a
qualificação dos factos à luz da norma do Código da Estrada submete a situação à
hipotética alteração favorável do regime penal estradal, da qual o arguido
sempre beneficiaria, em face do artigo 2º, nº 4, do Código Penal.”
Visto que a qualificação dos factos respeita à definição legal do
crime, o Governo não pode, sem uma prévia lei de autorização, alterar essa
qualificação. Ao fazê-lo, estará a alterar a definição legal de um crime,
entrando, desse modo, em colisão directa com o disposto no artigo 165.º, n.º 1,
alínea c), da Constituição da República Portuguesa, que reserva à Assembleia da
República, salvo autorização ao Governo, a competência para legislar sobre a
“definição dos crimes” e “respectivos pressupostos”.
A inovação é ainda patente, mesmo para quem não acompanhe
inteiramente as razões cima referidas, se levarmos em consideração a natureza do
bem jurídico protegido em cada um dos tipos legais entre os quais o Decreto-Lei
n.º 44/2005 fez transitar a punição da conduta considerada.
É certo que o crime de desobediência e o crime de violação de
proibições ou interdições, ambos inseridos no capítulo do Código Penal dos
“crimes contra a autoridade pública” (Capítulo II – Dos crimes contra a
autoridade pública, do Título V – Dos crimes contra o Estado, da Parte Especial
do Código) mas em diferentes secções, protegem o mesmo bem jurídico geral ou
primário que pode designar-se como a autonomia intencional do Estado (Cristina
Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo III, p.336). Em
qualquer deles, o agente frustra as intenções estaduais manifestadas num acto
jurídico-público individual e concreto que lhe é dirigido, fazendo prevalecer a
sua vontade sobre legítimas imposições, proibições ou interdições emanadas da
autoridade pública (administração ou tribunais) de que é destinatário.
Mas cada um dos tipos de ilícito em referência protege um bem jurídico
específico ou intermédio que, sendo concretização ou refracção daquele bem
jurídico mais abrangente, o intérprete tem de ter presente ao procurar “soluções
justas e operatórias” para os problemas concretos de aplicação. O “bem jurídico”
é um topos argumentativo fundamental na interpretação e aplicação da lei penal.
Mediante a incriminação prevista no artigo 353.º do Código Penal o legislador
constitucionalmente legitimado tratou de sancionar o incumprimento de sanções
impostas por sentença criminal que não possuam outro meio de assegurar a sua
eficácia. Com isso destacou, enquanto valor merecedor de protecção penal, a
efectividade da sentença criminal impositora de penas acessórias, quer
relativamente às demais decisões dos tribunais – cuja violação não tem o reforço
da tutela penal ou, quando o tem, é a título de desobediência (cfr. artigo 391.º
do Código de Processo Civil) –, quer dos gerais mandamentos qualificados da
autoridade pública. Ora, a norma em causa tem por efeito, relativamente às
sentenças que imponham penas acessórias relativas à condução de veículos com
motor, diluir esse âmbito de protecção na proibição mais extensa da frustração
das ordens ou mandados legítimos da autoridade pública.
Esta alteração de lugar sistemático não é isenta de significado
jurídico-político e de valor simbólico. A protecção penal autónoma da
“desobediência” às sentenças criminais denota a primazia que na protecção da
ordem democrática constitucional se atribui a esse acto do poder público. Pelo
menos, para dizê-lo de modo neutral, significa uma intenção diferenciadora
relativamente aos demais mandamentos da autoridade pública que se entendem
carecidos do reforço de tutela de eficácia pela ameaça penal para que não fiquem
inermes. O Decreto-Lei n.º 44/2005, mesmo mantendo a previsão e a pena, concebe
para certo tipo de sentenças criminais (as que impõem a pena acessória de
proibição de conduzir veículos com motor) protecção a outro título. Não pode,
portanto, afirmar-se que a medida legislativa considerada seja uma mera
recompilação a todos os títulos neutra, certeza que é necessário que o Tribunal
adquira para que possa julgar o defeito da respectiva autoria irrelevante
enquanto vício de inconstitucionalidade orgânica, sobretudo num domínio onde
imperam exigências de segurança jurídica.
Assim, uma vez que, ao editar a norma em causa, o Governo interveio sem a
necessária credencial da Assembleia da República, há que concluir pela violação
do artigo 165.º, n.º 1, alínea c) da Constituição da República.
III - Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara, com força
obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 138.º,
n.º 2, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23
de Fevereiro, na parte em que submete ao regime do crime de desobediência
qualificada quem conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por
força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69.º do Código Penal,
constante de sentença criminal
transitada em julgado, por violação do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo
165.º da Constituição da República Portuguesa.
Lisboa, 22/4/2009
Vítor Gomes
Benjamim Rodrigues
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Mário José de Araújo Torres
Gil Galvão
Joaquim de Sousa Ribeiro
Maria Lúcia Amaral
José Borges Soeiro
Maria João Antunes (votei a decisão nos termos da
declaração que junto)
João Cura Mariano (votei a decisão nos termos da
declaração que junto)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei no sentido da inconstitucionalidade da norma constante do artigo 138º, nº
2, do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de
Fevereiro, na parte em que submete ao regime do crime de desobediência
qualificada quem conduzir veículos automóveis estando proibido de o fazer por
força da aplicação da pena acessória prevista no artigo 69º do Código Penal,
constante de sentença criminal transitada em julgado, por violação do disposto
na alínea c) do nº 1 do artigo 165º da Constituição da República Portuguesa.
Da fundamentação da decisão acompanho exclusivamente a passagem em que se
conclui que a alteração de lugar sistemático – o comportamento em causa deixou
de ser incriminado no artigo 353º do Código Penal (violação de proibições) para
passar a sê-lo no artigo 138º, nº 2, do Código da Estrada – não é isenta de
significado jurídico-político e de valor simbólico.
Entendendo que as alterações de lugar sistemático e que o “nome” dado às
incriminações não são determinantes para a descoberta do bem jurídico protegido
no tipo legal de crime, considero que se justificaria um juízo de
inconstitucionalidade, por violação do artigo 165º, nº 1, alínea c), da
Constituição, ainda que a descrição típica constante do Código da Estrada
coincidisse totalmente com a do Código Penal.
A reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, em
matéria de definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos
pressupostos (artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição), abrange
necessariamente a opção de inserir determinada incriminação no Código Penal ou,
antes, em legislação extravagante. Trata-se de uma opção que o legislador
constitucional reservou ao Parlamento, salvo autorização ao Governo, dado o
significado político-criminal de uma tal escolha.
O juízo de inconstitucionalidade funda-se, estritamente, em razões
jurídico-políticas atinentes à repartição de competência legislativa entre o
Parlamento e o Governo (artigo 165º, nº 1, alínea c), da Constituição). E não em
qualquer razão extraída do conteúdo de sentido do princípio da legalidade em
matéria criminal.
Maria João Antunes
DECLARAÇÃO DE VOTO
Subscrevi a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da
norma constante do artigo 138.º, n.º 2, do Código da Estrada, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que submete ao regime
do crime de desobediência qualificada quem conduzir veículos automóveis, estando
proibido de o fazer por força da aplicação da pena acessória prevista no artigo
69.º do Código Penal, constante de sentença criminal transitada em julgado, por
razões algo diferentes das apontadas na fundamentação deste acórdão.
A condução de veículos automóveis por quem estava proibido de o fazer, devido a
ter sido condenado por sentença criminal, transitada em julgado, na pena
acessória prevista no artigo 69.º, do Código Penal, anteriormente ao Decreto-Lei
n.º 44/2005, era uma conduta que era abrangida pelo tipo legal do artigo 353.º,
do Código Penal, que genericamente punia criminalmente quem violasse proibições
ou interdições impostas por sentença criminal, a título de pena acessória ou de
medida de segurança não privativa de liberdade.
O Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, passou a prever no n.º 2, do
artigo 138.º, do Código da Estrada, que quem praticasse qualquer acto, estando
inibido ou proibido de o fazer por sentença transitada em julgado ou decisão
administrativa que aplique uma sanção acessória era punido por um crime de
desobediência qualificada, passando, assim, a abranger as referidas condutas de
condução de veículo automóvel por quem estava proibido de o fazer, devido a ter
sido condenado por sentença criminal, transitada em julgado, na pena acessória
prevista no artigo 69.º, do Código Penal.
A pena prevista para o crime de desobediência qualificada no artigo 348.º, n.º
2, do Código Penal, é exactamente a mesma que se encontra estatuída no artigo
353.º, do Código Penal.
Do exposto resulta que o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, não
procedeu a uma nova incriminação, tendo apenas subtraído a incriminação desta
conduta da previsão geral do artigo 353.º, do Código Penal, para um tipo
especial, em razão da matéria da proibição, mas abrangendo também as
desobediências a sanções administrativas, incluído no Código da Estrada, sem
modificação do regime da incriminação.
A alteração levada a cabo pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro,
nesta matéria traduziu-se, pois, apenas numa diferente inserção sistemática da
tipificação como crime da conduta em causa.
Mas, como refere Karl Larenz, a posição sistemática de um preceito na lei pode
contribuir para conhecer o contexto significativo (em “Metodologia da ciência do
direito”, pág. 373, da trad. da 2ª ed. de “Methodenlehere der
Rechtswissenschaft”, da ed. de 1978, da Fundação Calouste Gulbenkian).
Na verdade, o local e a “companhia” da tipificação duma determinada conduta como
crime, fornecem dados interpretativos importantes sobre o seu conteúdo e
pressuposições, nomeadamente sobre o bem jurídico protegido com essa
incriminação.
Se não parece possível dizer-se, como faz o presente acórdão, que a mera
alteração sistemática pode provocar uma modificação do bem jurídico protegido
por uma dada incriminação, não deixa de ser verdade que, sendo essa modificação
significativa, ela emite sinais duma determinada vontade legislativa.
Daí que a inserção sistemática da tipificação criminal não seja um elemento
neutro, tendo antes um significado jurídico que não pode ser desprezado na
actividade interpretativa e aplicativa de um determinado tipo legal de crime.
Fornecendo a inserção sistemática sinais relevantes sobre a “vontade do
legislador” na criminalização de uma determinada conduta, ela só pode ser
efectuada por quem a Constituição autoriza a proceder à definição dos crimes,
penas e respectivos pressupostos, considerando a participação desse elemento
nessa definição.
Só o órgão a quem é atribuída a competência para legislar sobre tal matéria
poderá proceder à inserção sistemática dos tipos legais de crime por si criados,
uma vez que essa operação não deixa de transmitir informações sobre os
pressupostos, o conteúdo e as finalidades da operação de criminalização.
Sendo a definição de crimes, penas e respectivos pressupostos, matéria da
reserva relativa da Assembleia da República, o Governo só poderia proceder à
alteração aqui analisada com autorização específica daquele órgão.
Não tendo existido essa autorização, não podia o Decreto-lei n.º 44/2005, de 23
de Fevereiro, proceder à deslocação para o artigo 138.º, n.º 2, do Código da
Estrada, da incriminação da conduta aqui em causa, pelo que nessa parte tal
norma violou a Constituição.
João Cura Mariano