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Processo n.º 976/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
Nuns autos de processo especial abreviado em que era arguido A., o juiz do 1º
Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa (TPICL), por despacho
de 17 de Janeiro de 2008, decidiu:
a) recusar por inconstitucional, a interpretação dada aos arts, 119° al. f) e
391°-D do Código de Processo Penal e a sua subsequente aplicação, no sentido de
que a inviabilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias a contar da
dedução da acusação constitui uma nulidade insanável, porquanto tal conduz à
alteração da forma de processo abreviado para a forma de processo comum, e
assim, de forma mediata, à alteração das regras prévias e expressas que fixam a
competência dos tribunais, neste caso, do Tribunal de Pequena Instância Criminal
e dos Juízos Criminais de Lisboa, em violação dos arts. 22°, 23°, 100°, 102°,
n°1 da Lei 3/99 de 13/01, art. 119º, al. e) do Código de Processo Penal, e art.
32°, n°9 da Constituição da República Portuguesa.
b) em consequência, declarar o tribunal incompetente para a realização do
julgamento e recusa-se o recebimento destes autos.
O Ministério Público interpôs recurso de nos termos do disposto no artigo 70º,
nº 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional e neste tribunal, alegou e
concluiu que “[T]endo em conta que a fundamentação que subjaz ao despacho
recorrido se abriga na violação de normas legais ordinárias, relativas à
aplicação da lei no tempo quanto aos requisitos da forma especial de processo,
há que concluir, assim, não se estar perante uma verdadeira questão de
inconstitucionalidade normativa, pelo que não deve tomar-se conhecimento do
recurso”.
Não houve contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
Sobre a questão de constitucionalidade que constitui o objecto do presente
recurso foram, já após a produção de alegações pelo Ministério Público,
proferidos nesta 3ª Secção os Acórdãos n.ºs 152/09 e 153/09, ambos de 25 de
Março (respectivamente, no Processo n.º 966/08 e 1004/08).
Em ambos os Acórdãos se decidiu não conhecer do objecto do recurso, pelos
seguintes fundamentos:
“[…]
4. Sustenta o Ministério Público, nas alegações, que o fundamento essencial para
a decisão tomada e por este invocada expressamente é o entendimento que o
tribunal a quo professa sobre o sentido e a aplicação de disposições
infra-constitucionais respeitantes quer à competência dos tribunais, quer aos
requisitos do processo abreviado e à qualificação da eventual inobservância do
prazo de julgamento quer ao regime de aplicação da lei processual penal no tempo
das novas normas relativas à forma de processo abreviado. Crucial é a
divergência sobre essas questões de direito ordinário entre os dois tribunais
que declinaram a competência. Para o juiz do TPICL, já não sendo possível
cumprir o prazo (inovadoramente) estabelecido pelo artigo 391.º-D do CPP, não
poderia continuar a seguir-se a forma de processo abreviado. Segundo o despacho
recorrido esse entendimento seria errado, mantendo-se a forma de processo
abreviado e a consequente competência funcional do TPICL, quer porque a lei nova
não se aplica aos processos em que a competência desse tribunal se fixara com
base em acusação validamente deduzida anteriormente nessa forma processual, quer
porque a inobservância do prazo estabelecido pelo citado artigo 391.º‑D não
implica nulidade processual.
Sendo assim, não estaríamos, segundo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, perante
uma verdadeira “questão de inconstitucionalidade normativa” mas, na prática,
perante um conflito negativo de competência, pelo que não deveria conhecer-se do
presente recurso.
5. Esta interpretação do despacho recorrido não é inteiramente exacta.
É nesse despacho discernível uma questão de constitucionalidade, embora “não […]
linear e [revestindo-se] de alguma complexidade” como o tribunal a quo
(re)afirma no despacho de fls. 64. Consiste ela no entendimento de que viola o
disposto no n.º 9 do artigo 39.º da Constituição (princípio do juiz natural) a
hipotética norma extraída dos artigos 119.º, alínea f) e 391.º-D do Código de
Processo Penal quando conjugadamente interpretados no sentido de que a
inviabilidade do julgamento no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação
constitui uma nulidade insanável, implicando a alteração da forma de processo
abreviado para processo comum e a consequente deslocação da competência do
âmbito do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o Tribunal Criminal, nas
comarcas onde exista tal distribuição funcional de competência, como sucede em
Lisboa. Aliás, o despacho recorrido dá a essa questão a devida ênfase,
destacando no próprio dispositivo a resposta que para ela propugna. O mais que
poderá dizer-se é que, para que a base legal da norma desaplicada fique
completa, falta explicitar os preceitos que contém as regras de organização
judiciária de que resulta a subtracção da causa ao juiz inicialmente competente
em função da alteração da forma de processo.
6. Todavia, o Ministério Público não deixa de ter razão quando pugna pelo não
conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, a fim de que o
dissídio sobre a competência seja resolvido pelos meios ordinários.
Com efeito, apesar do particular empenho do tribunal a quo em sublinhar o juízo
de inconstitucionalidade que lança sobre a interpretação e aplicação feita no
despacho do TPICL, é também inegável a adopção pelo despacho recorrido da
pluralidade de fundamentos que o Ministério Público salienta. No plano da
interpretação do direito ordinário, o despacho recorrido faz uma opção clara e
um sustentada defesa do entendimento de que a inobservância do prazo de 90 dias
a que se refere o artigo 391.º-D constitui uma mera irregularidade que não
impede o prosseguimento do caso na forma de processo abreviado. E, igualmente de
modo claro e sustentado, repudia a aplicabilidade da lei nova nas circunstâncias
do caso. O despacho expressa o entendimento de que o despacho do primitivo juiz
do processo, que está na origem da sua remessa aos juízos criminais, errou na
aplicação imediata da lei processual nova, na interpretação das normas de
orgânica judiciária perante alterações do direito posteriores à fixação da
competência e na interpretação das novas normas processuais relativas ao uso da
forma de processo abreviado. Na lógica do despacho recorrido, qualquer destes
fundamentos, cuja análise o tribunal a quo entende compreender-se no âmbito da
determinação da própria competência, é susceptível de alicerçar a declinação
dessa competência.
Posto isto, constatada a existência de fundamentos alternativos da decisão, isto
é, de pluralidade de fundamentos, um ou vários dos quais estranhos ao objecto do
recurso de constitucionalidade e por si só suficientes para assegurar o sentido
da decisão recorrida ainda que esta viesse a ser revogada na parte respeitante à
questão da inconstitucionalidade, não deve conhecer-se do objecto do recurso. O
eventual provimento do recurso de constitucionalidade eliminaria um dos
fundamentos da decisão, mas não seria de molde a repercutir-se no sentido desta,
que sempre subsistiria com base na interpretação do direito ordinário que a
decisão professa.
7. A tanto não obsta a circunstância de se tratar de recurso obrigatório,
interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º 3 do artigo
72.º da LTC.
Reconhece-se que, na sua grande maioria, as decisões de não conhecimento do
recurso de constitucionalidade por existência de fundamentos alternativos na
decisão recorrida surgem em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC, nos quais, por força da regra da prévia exaustão dos
recursos ordinários, a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional coincide
com a decisão final da causa na ordem jurisdicional respectiva, e, por isso, o
eventual provimento do recurso de constitucionalidade se apresenta como
insusceptível de afectar, mais do que o sentido da decisão recorrida, o
desfecho da causa. Mas também assim tem vindo a ser maioritariamente decidido
em recursos interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC (Em sentidos divergentes, acórdão n.º 113/2006 e acórdão n.º
256/2004, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, Cfr. também, a
jurisprudência citada por Victor Calvete, “Interesse e Relevância da Questão de
Constitucionalidade e Utilidade do Recurso de Constitucionalidade - Quatro Faces
de uma mesma Moeda”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da
Costa, 404).
Com efeito, se a sentença vier a ser confirmada quanto ao fundamento que
consiste na interpretação e aplicação do direito ordinário que na decisão se
propugna, nunca a apreciação da questão de constitucionalidade se revestirá de
interesse para a decisão da causa (Aliás, o mesmo parece suceder se a decisão
for revogada mas com fundamento na preclusão da questão relativa à forma do
processo por não ter sido impugnada pelos sujeitos processuais a decisão do TPIC
– cfr. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/9/2008, 6/10/2008,
23/10/2008 e 15/1/2009, em processos 6376/2008-9, 6653/2008-5, 6354/2008-9 e
10999/2008-5, respectivamente). E se, nesse aspecto, a decisão vier a ser
revogada terá, então, de ser enfrentada a questão de constitucionalidade das
normas aplicadas e bem pode suceder que o tribunal superior não confirme o juízo
de inconstitucionalidade.
Assim, o conhecimento imediato da questão de constitucionalidade suscitada não
se reveste da utilidade inerente à função instrumental do recurso de
fiscalização concreta de constitucionalidade: a susceptibilidade de repercussão
no sentido da decisão da questão em que se enxerta, no momento de proceder à
reforma da decisão recorrida de acordo com o julgamento sobre a questão de
constitucionalidade.
Aliás, em casos deste género pode mesmo sustentar-se que, apesar da afirmação de
inconstitucionalidade da interpretação adversa, enquanto se mantiver o
fundamento alternativo adoptado na sentença, não existe efectiva desaplicação da
norma em causa. Da norma, como a decisão recorrida a interpreta e aplica, não
resulta a verificação do efeito jurídico que, por não respeitar a Constituição,
se quer evitar (o alegado desaforamento do processo). O sentido inconstitucional
é atribuído a uma outra interpretação que se tem por errada e a que o tribunal
não se sente vinculado, sequer por mecanismos de preclusão processual, pelo que
esse juízo não se apresenta como condição sine qua non da decisão, no plano
intrínseco desta. Assim, a vontade do legislador precipitada na norma não pode
dizer-se objectivamente afastada pelo juiz por desconformidade à Constituição,
pelo que o entendimento de que não deve conhecer-se do recurso também não
conflitua com as razões que levaram a Constituição (artigo 280.º, n.º 3, da CRP)
e a lei (artigo 72.º, n.º 3, da LTC) a configurar o recurso como obrigatório
para o Ministério Público.”.
É esta a fundamentação que, também agora, se acolhe.
III. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, não se conhece do objecto do
presente recurso.
Sem custas.
Lisboa, 15 de Abril de 2009
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Vítor Gomes
Gil Galvão