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Processo nº 985/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Administrativo e
Fiscal de Coimbra interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, da sentença proferida por
aquele tribunal a 11 de Setembro de 2007.
Nesta decisão, o TAF de Coimbra – julgando em recurso interposto de despacho do
Director de Finanças distrital que, nos termos dos artigos 89º-A da Lei Geral
Tributária e 65º do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares,
fixara matéria colectável de acordo com os métodos de avaliação indirecta –
decidira não aplicar (de acordo com o requerimento de interposição do recurso)
as normas constantes dos artigos 75º-2, d), 87º, d) e f), e 89º-A, nºs 1, 3, 4,
e 5 da Lei Geral Tributária, por entender que tais normas seriam contrárias ao
disposto nos artigos 20º, 26º, nº 4, 104º, nº 2 e 268º, nº 4 da CRP.
Recebidos os autos no Tribunal Constitucional ordenou-se a
produção de alegações, tendo sido no entanto convidado o requerente a
indicar, com precisão, qual a norma cuja aplicação fora, por razões de
inconstitucionalidade, recusada.
2. Respondendo a tal convite, disse, iniciando as suas alegações, o
representante do Ministério Público no Tribunal Constitucional:
Procedendo (…) a uma mais precisa delimitação do objecto do recurso (…)
afigura-se que a norma efectivamente desaplicada é que decorre do estipulado no
artigo 89º-A, nºs 1,3,e 4, conjugado com a alínea a) do artigo 75º, nº 2, da Lei
Geral Tributária, enquanto permite à Administração Fiscal proceder a uma
avaliação indirecta da matéria colectável, nos casos em que o contribuinte
declare rendimentos que mostrem uma desproporção superior a 50%, para menos,
relativamente ao rendimento-padrão, sendo excluída a presunção de veracidade da
declaração de IRS e cabendo-lhe o ónus de provar que correspondem à realidade os
rendimentos declarados e de que é outra a fonte das manifestações de fortuna
evidenciadas, com a cominação de, não o fazendo, se considerar tais valores como
rendimento tributável.
Entendeu o recorrente que esta norma, assim delimitada, não violava nem o
princípio constitucional da tributação do rendimento real nem o princípio da
proporcionalidade, concluindo assim as suas alegações:
(…)
2°
Na verdade, tal regime legal – determinado por evidentes objectivos de luta
contra fraude e evasão fiscais – limita-se a – de acordo com regras de
experiência e padrões de normalidade – inferir que não é normalmente viável a
aquisição (no caso) de bens imóveis de valor totalmente desproporcionado
relativamente ao patamar do rendimento normalmente auferido, salvo se for
diversa a fonte da aquisição patrimonial que permitiu tal compra.
3º
Dispondo o contribuinte da plena disponibilidade e controlo dos fluxos
pecuniários e da sua situação patrimonial global, não pode considerar-se de
cumprimento excessivamente oneroso o ónus previsto no citado n° 3 do artigo
89°-A da Lei Geral Tributária.
4º
Termos em que deverá proceder o presente recurso, em conformidade com o juízo de
não inconstitucionalidade das normas desaplicadas.
3. Nas suas contra-alegações começou o recorrido por colocar a seguinte questão
prévia:
“Considerando o teor da decisão recorrida, seja a um nível meramente “formal”
seja, com maior propriedade, a um nível “intencional”, constata-se, no entanto,
que o Tribunal acabou por efectivamente aplicar o disposto no artigo 89º-A da
LGT sustentando-se numa concreta leitura normativa que não se encontra erigida
em objecto do presente recurso de constitucionalidade, razão pela qual, apesar
das doutas considerações que foram expendidas no avisado juízo recorrido, impõe
concluir-se que, estando a sua ratio decidendi reportada a um segmento normativo
diferenciado daquele que se definiu como objecto do recurso, não deve o Tribunal
tomar conhecimento do pedido”. E concluiu do seguinte modo:
“3 – Quando muito, a entender-se que existe uma recusa de aplicação normativa,
esta incide apenas sobre o artigo 89º-A, Nº 4 da LGT, quando interpretado no
sentido de não permitir subtrair ao rendimento tributável (construído a partir
do valor da aquisição de um imóvel) os valores cuja aquisição haja sido
justificada pelo contribuinte.
4 – Estando o objecto do recurso delimitado em torno de uma norma cuja aplicação
não foi recusada e não estando em causa nesse objecto a verdadeira ratio
decidendi do juízo recorrido, não estão reunidas as condições para que o
Tribunal Constitucional possa tomar conhecimento do seu objecto.
5 – Sem conceder, o artigo 89º-A, nº 4, interpretado no sentido de não permitir
subtrair ao rendimento tributável (construído a partir do valor da aquisição de
um imóvel) os valores cuja aquisição haja sido justificada pelo contribuinte (e
que não constituam acréscimos patrimoniais não justificados), é materialmente
inconstitucional por violação do princípio da igualdade, do princípio da
proporcionalidade e do princípio da capacidade contributiva”.
4. Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia colocada pelo recorrido
nas suas contra-alegações, veio o Ministério Público reiterar que a norma – a
cuja delimitação antes procedera – fora objecto de recusa expressa de aplicação,
e que tal recusa constituíra a ratio decidendi da solução alcançada.
II
Fundamentos
5. O recorrente, nas suas alegações, recorta como objecto do presente recurso o
regime constante da Lei Geral Tributária, que permite à Administração Fiscal
lançar mão dos meios de avaliação indirecta da matéria colectável, sempre que os
rendimentos declarados pelo contribuinte se afastem, para menos, e sem razão
justificativa, de padrões de rendimento que razoavelmente possam sustentar
manifestações de fortuna pelo mesmo evidenciadas. Tal regime tem,
fundamentalmente, o seguinte conteúdo:
(i) exclui-se a presunção da veracidade da declaração de IRS sempre que os
rendimentos declarados pelo contribuinte se afastarem para menos, sem razão
justificativa, de padrões de rendimento que razoavelmente possam sustentar
certas “manifestações de fortuna” (alínea d) do nº 2 do artigo 75º da LGT);
(ii) nestas circunstâncias, a Administração Fiscal procede à avaliação indirecta
da matéria colectável, quando a declaração de rendimentos mostre uma
desproporção superior a 50%, para menos, em relação ao rendimento padrão (nº 1
do artigo 89º-A); (iii) cabendo então ao contribuinte a prova de que
correspondem à realidade os rendimentos declarados e de que é outra a fonte dos
rendimentos evidenciados (nº 3 do artigo 89º-A); (iv) com a cominação de, não o
fazendo, ser considerada pela administração fiscal como matéria tributável
aquela que resulta do rendimento padrão fixado pela tabela inscrita no nº 4 do
artigo 89º-A.
A decisão do tribunal a quo apresenta um longo iter argumentativo, onde pontuam
considerações sobre a possível inconstitucionalidade deste regime, assim mesmo
considerado. No entanto, tais considerações não chegam a prefigurar uma decisão
de recusa de aplicação de norma da qual caiba recurso para o Tribunal, de acordo
com o disposto na alínea a) do nº 1 do artigo 280º da Constituição e na alínea
a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82. É sabido que tal recurso só se abre se
o tribunal a quo tiver rejeitado, por razões de inconstitucionalidade, a
aplicação, a um caso, de certa norma ou de certo sistema de normas, e se tal
rejeição tiver efectivamente influído na decisão a proferir sobre a questão de
fundo. Ora nem uma nem outra coisa ocorreram na sentença do TAF de Coimbra.
A decisão recorrida comporta dois passos fundamentais. No primeiro, revoga-se o
acto da Administração Tributária (o despacho do Director de Finanças) na parte
em que determinara, por métodos indirectos, a matéria colectável do IRS devido
pelo recorrido quanto ao ano de 2005. Entendeu o tribunal que, quanto a esse
ano, não exteriorizara o contribuinte qualquer manifestação de fortuna. No
segundo passo, e quanto ao ano de 2004, o TAF julgou parcialmente procedente a
impugnação do acto tributário [de determinação indirecta da matéria colectável],
por entender que este deveria ter tido em conta o montante de um certo
empréstimo que o recorrido afirmara (e provara) ter contraído.
Relembrem-se brevemente os contornos do caso. Estava nele em causa uma
“manifestação de fortuna”, resultante, no ano de 2004, da aquisição de um
imóvel, que o contribuinte não reflectira na declaração de rendimentos
correspondente a esse ano. De acordo com o disposto no artigo 89º-A, nº 3, da
LGT, o mesmo contribuinte, recorrido nos presentes autos, procurara provar que
corresponderiam à realidade os rendimentos declarados, e que seria outra a fonte
de manifestações de fortuna evidenciadas. Apenas se provou a contratação de um
empréstimo bancário no montante de 350 mil euros. Perante a prova, decidiu o TAF
de Coimbra que o montante do empréstimo deveria ser imputado à matéria
colectável, a qual não poderia ser calculada em função da aplicação automática
(ou sem consideração da prova feita) das tabelas de rendimento padrão constante
do nº 4 do artigo 89º-A da Lei Geral Tributária.
É o que se depreende do seguinte excerto:
Com efeito, o recorrente contraiu em 2005 um empréstimo de 350 mil euros para
pagar o restante preço da compra, pelo menos este valor terá que ser deduzido ao
valor da aquisição (750 mil euros), encontrando‑se, assim, o montante para
efeitos do n° 4 e à mingua de outros elementos demonstrados pelo contribuinte.
(…)
Por tudo quanto expendido fica, o Tribunal decide julgar a impugnação
parcialmente procedente, por provada, revogando‑se a decisão do Sr. Director
relativamente ao ano de 2005 e revogando‑se parcialmente nos termos expostos na
parte respeitante ao ano de 2004.
Assim, as considerações sobre a [possível] inconstitucionalidade do regime
contido nos artigos 75º e 89º-A da Lei Geral Tributária, que se foram fazendo ao
longo do iter argumentativo que precedeu a decisão tomada pelo TAF de Coimbra,
não se traduziram em recusa de aplicação de norma que tenha fundado o julgamento
do caso. Na verdade, este último foi decidido de acordo com esse mesmo regime,
interpretado (sobretudo o disposto no nº 4 do artigo 89º‑A da LGT) em função das
circunstâncias de facto dadas como provadas. É certo que, para fundar essa
interpretação, se invocam exigências constitucionais; mas não menos certo é que
tal ocorre ainda no âmbito estrito de aplicação do direito infraconstitucional,
âmbito esse que – como bem se
sabe – se situa claramente fora dos poderes cognitivos do Tribunal
Constitucional.
Como o Tribunal tem dito em jurisprudência abundante (vejam-se,
por último, os Acórdãos nºs 153/2009 e 182/2009, disponíveis em
www.tribunalconstitucional.pt) não é preclusiva desta última ideia o facto de o
recurso ter sido interposto pelo Ministério Público ao abrigo da competência
obrigatória que lhe é devolvida nos termos do nº 1, alínea a), e nº 3 do
artigo 280º da Constituição. Decorre da própria lógica do sistema constitucional
que só se abra esta via de recurso naqueles casos em que, havendo efectiva
recusa de aplicação de norma, o juízo de desaplicação tenha fundado a decisão da
causa. Nada disto ocorreu no caso em juízo.
IIII
Decisão
Nestes termos, o Tribunal decide não conhecer do objecto do recurso.
Lisboa, 27 de Outubro de 2009
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão