Imprimir acórdão
Processo n.º 156/2009
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
Relatório
1. A. reclama, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei n.º 28/82,
de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), do despacho do Sr. Juiz
Conselheiro Relator de 20 de Janeiro de 2009 que decidiu indeferir o
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional
apresentado pelo reclamante.
O despacho objecto da presente reclamação funda-se na circunstância de o ora
reclamante ter interposto recurso antes do trânsito em julgado do acórdão do
Supremo Tribunal de Justiça de fls. 1926 e segs., pelo que fora do prazo
previsto no n.º 2 do artigo 75.º da Lei do Tribunal Constitucional.
A reclamação apresentada tem o seguinte teor:
A., recorrente no Processo acima referenciado, vem, ao abrigo do disposto no
artigo 76.°, n.° 4, da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro (LTC), reclamar do
despacho do respectivo Relator, de 20.1.2009, a fls. 1971-1973, que indefere o
requerimento de interposição de recurso para esse Alto Tribunal, dos acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, de 24.9.2008 e 10.12.2008, a fls. 1847-1905 e
1926-1946, respectivamente, apresentado em 7 de Janeiro de 2009, a fls.
1949-1968 — o que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. A decisão de não admissão do recurso, a fls. 1973, tem por fundamento:
a) o facto de o requerimento de interposição do recurso ter sido apresentado
antes de ocorrido o trânsito em julgado do acórdão recorrido, de 10.12.2008, a
fls. 1926-1946;
b) o disposto no n.° 2 do artigo 75.° da LTC.
2. Tal decisão viola lei expressa. Com efeito, ninguém, no “mundo judicial”,
ignora que os recursos para o Tribunal Constitucional, tal como os recursos
ordinários, só podem ser interpostos antes do trânsito em julgado da decisão
recorrida. A letra da lei é clara e inequívoca: o prazo de interposição do
recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias e interrompe os prazos para
a interposição de outros que porventura caibam da decisão recorrida (cf. artigo
75.º, n.° 1, da LTC). Este prazo conta-se a partir da data da notificação da
decisão recorrida. O próprio despacho reclamado revela conhecimento dessa norma
(cfr. fls. 1973, 1.ª e 2.ª linhas).
3. Também é claro e inequívoco que a norma do n.° 2 do mesmo artigo só se
aplicaria se o requerimento de interposição do recurso tivesse por objecto
acórdão da Relação — o que não é, manifestamente, o caso. Assim, o despacho ora
impugnado, sendo ilegal, não pode deixar de ser revogado, ordenando-se a sua
substituição por outro que admita o recurso.
4. O presente requerimento será julgado nos termos do disposto no artigo 77.º da
LTC. Pelo que, terá de ter vista do Ministério Público antes do respectivo
julgamento (cfr. n.ºs 2 e3).
Admitindo a hipótese de o representante do Ministério Público nesse Alto
Tribunal, não se limitar a apor o seu visto, o Reclamante terá de ser notificado
da respectiva pronúncia antes de a conferência proferir decisão.
Só assim a norma do artigo 77.°, n.°s 2 e 3, da LTC, será conforme à
Constituição. Com efeito, a norma de que, quando o Ministério Público, na vista
do processo, não se limite a apor o seu visto, não tem de ser notificada ao
Reclamante, é inconstitucional conforme jurisprudência consagrada das secções e
do Plenário do Tribunal Constitucional.
4.1. Tal jurisprudência pode ser ilustrada com os acórdãos seguintes:
a) da 2.ª Secção, n.° 150/93, publicado no DR II Série, de 29.3.93, segundo o
qual “se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se
pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes
a possibilidade de responderem”;
b) da 1.ª Secção, n.° 469/97, publicado no DR II Série, de 16.10.97, que julgou
inconstitucional a norma do artigo 416.° do Código de Processo Penal,
interpretada em termos de não impor a notificação ao arguido, do parecer do
Ministério Público em que se suscita, pela primeira vez, a questão prévia de não
recebimento do recurso, por violação do disposto no artigo 32.°, n.°s 1, 5 e 8
da Constituição da República Portuguesa, e determinou a reformulação da decisão
recorrida em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade formulado;
c) do Plenário, n.° 533/99, publicado no DR II Série, de 22.11.99, que não
julgou inconstitucional a norma constante do artigo 664.° do Código de Processo
Penal de 1929, interpretada no sentido de que, se o Ministério Público, quando
os recursos lhe vão com vista, se pronunciar, deve ser dada aos réus a
possibilidade de responderem;
d) da 1.ª Secção, n.° 376/2000, publicado no DR II Série, de 13.12.2000, em que
se consignou: “o Tribunal tem entendido que a emissão de parecer do Ministério
Público tem de ser notificada aos arguidos ou recorrentes para estes poderem
responder, primeiro, sempre que a pronúncia era feita em termos de agravar a
posição dos réus e, ultimamente, sempre que a pronúncia vá além do simples visto
(cf. Acórdão n.° 53 3/99)”;
e) do Plenário, n.° 157/2001, publicado no DR 1.ª Série, de 10.5.2001, que
declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do
artigo 15.º do Dec. Lei n.° 267/85, de 16 de Julho, na redacção do Dec. Lei n.°
229/96, de 29 de Novembro, por violação do disposto no artigo 20.°, n.° 4, da
Constituição, por nela se prever a intervenção do representante do Ministério
Público, nas sessões de julgamento dos recursos, sem que o recorrente pudesse
responder;
f) da 2.ª Secção, n.° 279/2001, publicado no DR II Série, de 27.9.2001, que
julga inconstitucional a norma do artigo 416.° do Código de Processo Penal,
interpretado no sentido de permitir a emissão de parecer pelo Ministério Público
junto do tribunal superior, sem que dele seja dado conhecimento ao arguido para
se poder pronunciar, e determina a reforma da decisão recorrida em conformidade
com esse juízo de inconstitucionalidade;
g) do Plenário, n.° 137/2002, publicado no DR II Série de 26.9.2002, que
decidiu, em aplicação da jurisprudência fixada no acórdão n.° 533/99, não julgar
inconstitucional a norma do artigo 416.° do Código de Processo Penal,
interpretada com o sentido de que, quando o Ministério Público, quando os
recursos lhe vão com vista, se pronunciar, deve ser dada aos réus a
possibilidade de responderem.
4.2. Do acórdão do Plenário, n.° 157/2001, acima referido, o Reclamante
transcreve os textos seguintes:
a) «o Tribunal Constitucional já se pronunciou em sessão plenária, no sentido de
que, “se o Ministério Público, quando os recursos lhe vão com vista, se
pronunciar em termos de poder agravar a posição dos réus, deve ser dada a estes
a possibilidade de responderem” (...). “Em face da nova redacção do n.° 4 do
artigo 20.° da Constituição, há que alargar esta jurisprudência, em função das
normas em cada caso questionadas”;
b) «Quanto ao artigo 15.° do Decreto-Lei n.° 267/85» (...) «há que julgá-lo
inconstitucional, por violação do n.° 4 do artigo 20.° da Constituição, uma vez
que não permite às partes tomar conhecimento e discutir qualquer elemento da
intervenção do Ministério Público no processo que possa influenciar a decisão.
Não tem cabimento qualquer restrição aos casos de pronúncia possivelmente
desfavorável.»;
c) «Como fundamentação, assinalou-se especificamente neste Acórdão 412/2000: “as
razões que levam o Tribunal a confirmar aquele julgamento de
inconstitucionalidade radicam, desde logo, no facto de não poder ser indiferente
à circunstância — sublinhada no citado Acórdão n.° 345/99 — de a introdução, em
1997, da referência expressa ao direito a um processo equitativo no artigo 20.°,
n.° 4 da CRP ter obedecido ao confessado propósito de proceder a uma
transposição explícita do artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem» (...) «sendo certo que a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem vem entendendo que mesmo qualquer elemento oferecido por uma entidade
independente e objectiva (como por exemplo pareceres do Ministério Público) deve
ser comunicado às partes, a quem deve ser concedida a oportunidade de sobre ele
se pronunciar».
5. Por força do disposto nos artigos 70.°, n.° 3, e 79.°-A, n.° 3, da LTC, as
Reclamações são equiparadas aos Recursos. Assim, a norma em causa tem a mesma
relevância jurídico-constitucional que tem nos recursos. A circunstância de os
preceitos legais que constituem fonte da norma cuja inconstitucionalidade é,
agora, arguida, não incluírem o artigo 77.°, n.°s 2 e 3, da LTC, é irrelevante
para o efeito, dado que também constitui jurisprudência consagrada, do mesmo
Tribunal, a de que o objecto do recurso de constitucionalidade são as normas ou
critérios decisórios — não as fontes que lhes servem de suporte (fonte). Neste
sentido, invocam-se os acórdãos seguintes:
5.1. N.° 405/2003, do Plenário, publicado no DR, 1.ª Série-A, de 15.10, e
citação nele feita:
a) “É a lei tal como é aplicada que controlamos, não as questões abstractas e
académicas que ela pode suscitar nalguns casos mais duvidosos”;
b) “O essencial é tão-só saber se a eventual inconstitucionalidade ainda se
inscreve no enunciado linguístico do texto normativo ou se decorre apenas num
momento posterior, aquando da sua aplicação a determinadas situações da vida ou
casos particulares”.
5.2. Voto da Ilustre Juíza Conselheira Maria dos Prazeres Beleza no acórdão n.°
196/2003 (DR II Série, de 16.10):
a) “O objecto do recurso é a “norma, interpretativamente mediatizada pela
decisão recorrida, porque a norma deve ser apreciada no recurso segundo a
interpretação que lhe foi dada dessa decisão” — citando Gomes Canotilho;
b) “É a norma aplicada, interpretativamente extraída da respectiva fonte legal —
e não a fonte em si mesma considerada, como acto legislativo ou como disposição
legal — que constitui objecto do recurso de constitucionalidade previsto na
alínea b) do n.° 1 do artigo 70.° da Lei do Tribunal Constitucional”;
c) “objecto de controlo de constitucionalidade são as normas jurídicas e não os
preceitos normativos que os contêm” — citando Armindo Ribeiro Mendes;
d) “O Tribunal Constitucional vem entendendo, numa jurisprudência longamente
firmada, que invocar a inconstitucionalidade de uma dada interpretação de certa
norma jurídica é invocar a inconstitucionalidade da própria norma, nessa
interpretação”;
e) “quando um tribunal extrai, a partir de uma fonte, um critério normativo
válido para uma série de casos, utilizando um processo hermenêutico também
considerado válido para esses casos, não é o singular acto de julgamento que
está em causa nem a concreta decisão do tribunal em que esse acto se
consubstancia. Pelo contrário, nessas hipóteses, a questão é manifestamente de
constitucionalidade normativa”.
5.3. Voto, no mesmo acórdão 196/2003, do Ilustre Conselheiro Paulo Mota Pinto:
a) “Constitui, na verdade, jurisprudência constante deste Tribunal (vejam-se,
por exemplo, os Acórdãos n.°s 238/94 e 336/94, o primeiro publicado no Diário da
República, 2.ª Série, de 28 de Julho de 1994) que a questão de
inconstitucionalidade a apreciar no julgamento de recursos de
constitucionalidade tanto pode referir-se a uma norma ou a um seu segmento
normativo, considerados “em si mesmos” como apenas a uma sua determinada
interpretação “;
b) “Esta dimensão normativa, correspondente a um sentido interpretativo, é
susceptível de impugnação autónoma e de controlo pelo Tribunal Constitucional,
enquanto norma aplicada pelo tribunal recorrido, devendo distinguir-se entre a
fonte ou preceito (legal ou não) e a norma cuja apreciação é objecto de recurso
de constitucionalidade”;
e) É, aliás, evidente que tem de ser assim, não só por as normas não existirem
na prática enquanto aplicadas em decisões dos tribunais” (...) “a não ser na
interpretação com que foram aplicadas, como porque a solução contrária
conduziria, por conseguinte, ao esvaziamento da competência deste Tribunal para
julgar recursos de constitucionalidade: a interpretação de uma norma é uma
actividade sempre necessária, antes da sua aplicação, e o seu confronto com a
Constituição também pressupõe sempre essa interpretação”;
d) “A intervenção dos órgãos jurisdicionais na determinação da norma que o
Tribunal Constitucional aprecia, é pois, iniludível em todos os recursos de
constitucionalidade, não só nos casos em que está em causa essa norma “em si
mesma” — rectius na sua interpretação declarativa, ou em todas as suas
interpretações possíveis — mas também e sobretudo, quando apenas é impugnada uma
sua específica dimensão interpretativa”;
e) “Este Tribunal tem, na verdade, considerado que lhe compete apreciar também a
conformidade constitucional de normas criadas pelo julgador como critério para
integração de lacunas, nos termos do artigo 10.º, n.° 3, do Código Civil” (...)
“deixando claro que a “autoria” da norma pelo tribunal recorrido ou pelo
legislador não é decisiva para o objecto do recurso de constitucionalidade”;
f) “pode mesmo dizer-se que o controlo da conformidade constitucional de normas,
tal como aplicadas pelos tribunais, é o correlato necessário do controlo da
actividade de produção normativa do legislador, pois apenas os órgãos
jurisdicionais podem conferir às normas pleno conteúdo determinando o seu
conteúdo e criando, portanto law in action, em contraposição à law in the books”
(negrito nosso).
6. Assim, face ao disposto nos artigos 224.°, n.° 3, da Constituição, e 79.°-A,
n.ºs 2 e 3, 79.°-D, n.ºs 1 e 2, da LTC, na eventualidade de a questão de
(in)constitucionalidade ora suscitada ser julgada em sentido divergente com a
jurisprudência acima invocada, terá de ser promovido o julgamento em Plenário do
Tribunal Constitucional.
O Magistrado do Ministério Público em funções no Tribunal Constitucional emitiu
o seguinte parecer:
O recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do art. 70º da
Lei nº 28/82 pressupõe que – no momento da respectiva interposição – se
encontrem esgotados os meios impugnatórios normais ou ordinários, existentes no
âmbito da ordem jurisdicional em que foi proferida a decisão recorrida – neles
se incluindo os próprios incidentes pós‑decisórios, suscitados pelo recorrente
(cfr., v.g., acs. 534/04, 286/08, 331/08).
Daqui decorre que não é efectivamente admissível a interposição simultânea de
recurso para este Tribunal e de apresentação de requerimentos que corporizem
qualquer incidente pós‑decisório – sendo naturalmente oponível à parte que
“antecipe” o momento da interposição de recurso de constitucionalidade a
objecção decorrente de estar a impugnar uma decisão judicial que, nesse momento,
ainda se não configura como “definitiva”.
Adere-se, deste modo, às razões invocadas no douto despacho reclamado,
propugnando‑se pelo indeferimento da presente reclamação.
Pronunciando-se sobre este parecer, veio o reclamante dizer, no essencial, que,
“salvo o devido respeito por melhor entendimento do «DIREITO», atenta a lei de
processo aplicável in casu o Ministério Público não tem o direito de exarar nos
autos «pontos de vista» de »adesão» ao teor da decisão exarada a fls. 1972 e
1973 dos mesmos, n.º 3, de indeferimento do requerimento de interposição do
recurso constante de fls. 1964 a 1968, parte VIII, n.ºs 20 a 34, dos mesmos
autos”, concluindo que, “face ao disposto no artigo 3.º, n.º 3, da Lei
Fundamental, tal acto e o respectivo texto não podem deixar de ser declarados
inválidos por serem desconformes com a Constituição, e o neles «propugnado»
rejeitado.”
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
2. Não faz qualquer sentido a invocação pelo reclamante da questão de
constitucionalidade referida ao artigo 77.º, n.º 2, da Lei do Tribunal
Constitucional nem a impugnação do parecer emitido pelo Representante do
Ministério Público no Tribunal Constitucional a fls. 1997-verso e 1998 dos
autos. Com efeito, a presente reclamação visa, tão-somente, a apreciação dos
requisitos e pressupostos de admissibilidade e conhecimento do recurso de
constitucionalidade apresentado perante o Supremo Tribunal de Justiça.
3. Ora, na linha da jurisprudência deste Tribunal, importa acentuar que um dos
requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo do disposto na
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional traduz-se no
esgotamento dos recursos ordinários, resultando da consideração deste requisito
de recorribilidade que o recurso de constitucionalidade interposto a fls. 1949 e
segs., a par com a apresentação de dois requerimentos que consubstanciam
incidentes pós-decisórios, não era admissível, uma vez que, no momento da sua
interposição, a decisão de fls. 1926 e segs. ainda não era definitiva na óptica
do disposto nos n.os 2 e 3 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, por
ainda não ter sido proferida a última palavra dentro da ordem judicial de que
emergiu o recurso.
Tal circunstância não precludia ao recorrente a possibilidade de renovar o
requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade num momento em
que se tivesse tornado definitiva a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, o
que ocorreu com o despacho de fls. 1971 e segs.
Por esta razão, não podia, pois, admitir-se o recurso de constitucionalidade,
pelo que há que confirmar o despacho reclamado.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a
presente reclamação, confirmando o despacho reclamado.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 2 de Junho de 2009
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Rui Manuel Moura Ramos