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Processo n.º11/CPP
Plenário
ACTA
No primeiro dia do mês de Abril de dois mil e nove, achando-se presentes o
Excelentíssimo Conselheiro Presidente Rui Manuel Gens de Moura Ramos e os Exmos.
Conselheiros Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Ana Maria Guerra Martins, Carlos
José Belo Pamplona de Oliveira, Mário José de Araújo Torres, Gil Manuel
Gonçalves Gomes Galvão, Joaquim José Coelho de Sousa Ribeiro, Maria Lúcia
Amaral, José Manuel Cardoso Borges Soeiro, João Eduardo Cura Mariano Esteves,
Vítor Manuel Gonçalves Gomes, Maria João da Silva Baila Madeira Antunes e
Benjamim Silva Rodrigues, foram trazidos à conferência os presentes autos, para
apreciação.
Após debate e votação, foi ditado pelo Excelentíssimo Conselheiro Presidente o
seguinte:
ACÓRDÃO N.º 170/09
1.
1.1. Notificado que foi do Acórdão n.º 99/09, de 3 de Março, veio o arguido Abel
Saturnino da Silva Moura Pinheiro requerer a respectiva revogação com fundamento
na verificação das nulidades previstas nas alíneas a) e b) do número 1 do artigo
379º do Código de Processo Penal.
Subsidiariamente, requereu a revogação do mesmo Acórdão com fundamento na
existência de erro notório na apreciação da prova e de insanável contradição na
respectiva fundamentação, bem como a sua substituição por decisão absolutória do
arguido.
Concluiu a argumentação para o efeito apresentada através da formulação das
seguintes conclusões:
«a) O disposto no artigo 103º-A, nºs 1, 2 e 3 da Lei do Tribunal Constitucional,
conforme interpretado no Acórdão recorrido, constitui uma violação ao disposto
nos nºs 2 e 10 do artigo 32º da CRP.
b) O disposto no artigo 103-A, n.ºs 1, 2 e 3 da Lei do Tribunal Constitucional,
conforme interpretado no Acórdão recorrido, constitui uma restrição
desproporcional e inadmissível à liberdade de participação em partidos
políticos.
c) Ao recorrer a uma interpretação global e integrada do despacho de promoção
para obter os factos que fundamentam a condenação do Arguido, o Tribunal
Constitucional conheceu de matéria de facto que não podia conhecer,
sustentando-se na mesma para proferir a sua decisão.
d) O Acórdão recorrido é por isso nulo, conforme se estatui no n.º 1, alínea b)
do artigo 379º do Código de Processo Penal.
e) A fim de demonstrar a existência de dolo do Arguido, teria o Tribunal de
demonstrar, cabalmente, quais as medidas concretas não adoptadas pelo mesmo que
concretamente levaram à produção do resultado, o que não acontece, pelo que,
também por esta razão, é nulo o Acórdão proferido, conforme se estatui na alínea
a) do n.º 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal.
f) Os factos considerados provados assentam em erro notório na apreciação da
prova, não resultando daqueles factos (ou da falta dos mesmos) as consequências
jurídicas que daí se retiram no Acórdão.
g) O reconhecimento pelo Tribunal de que o Arguido desenvolveu “esforços no
domínio da organização e controlo da gestão do partido” e que tal “releva
positivamente pela via da culpa”, é incompatível com a conclusão de que o
Arguido agiu dolosamente, ainda que apenas com dolo eventual».
1.2. O Ministério Público respondeu ao requerimento apresentado pelo arguido,
considerando improcedentes as nulidades imputadas ao Acórdão condenatório, quer
por não se estar perante uma condenação por factos diversos dos contidos no
despacho de promoção (cfr. art. 379º, n.º1, al. b), do CPP), quer por existir
naquele fundamentação bastante e suficiente para a forma de processo em causa,
incluindo uma correcta e adequada apreciação da prova. Considerou ainda que,
para além de não constar do referido Acórdão qualquer aplicação ou interpretação
normativa desconforme com a Constituição, o poder jurisdicional se encontra
esgotado, não havendo recurso das decisões proferidas pelo Plenário (cfr.
Acórdão nº 557/06).
2. Cumpre apreciar e decidir, observando, quanto à consideração das questões
suscitadas, a ordem de precedência que resulta da relação de subsidiariedade em
que o arguido expressamente coloca as pretensões formuladas através do presente
requerimento
2.1. Da nulidade procedente da violação do disposto na al. b) do n.º1 do art.
379º do Código de Processo Penal.
Segundo o arguido, o Acórdão condenatório visado foi proferido com «base em
alegados factos que não constavam do despacho de promoção – e que resultarão sim
de uma interpretação global e integrada daquele», sendo por isso «manifesta a
existência de nulidade […], conforme se dispõe no n.º1, alínea b), do artigo
379º do Código de Processo Penal».
Concretizando tal ponto de vista, o arguido sustenta que o Tribunal recorreu a
uma «indecifrável interpretação global e integrada do despacho de promoção» para
obter os factos de que carecia para proceder à condenação do arguido, tendo-o
feito designadamente a propósito do preenchimento do tipo subjectivo do ilícito
contra-ordenacional imputado.
Conforme passará a demonstrar-se, a interpretação global e integrada feita do
despacho de promoção, não só não é indecifrável, como não conduziu à enunciação
de factos diversos daqueles que aí constavam.
Escreveu-se no Acórdão o seguinte:
«À semelhança de qualquer outro texto, mesmo que não jurídico, o despacho de
promoção carece de ser lido e interpretado de forma global e integrada, devendo
a avaliação que sobre ele incida tomar em conta a completude da unidade de
sentido cuja apreensão seja pelo mesmo globalmente proporcionável.
A hipótese factual que o despacho de promoção introduz em juízo dá conta de que,
no decurso de 2003, o arguido Abel Pinheiro: integrou a comissão directiva do
CDS-PP – órgão ao qual estatutariamente competia dirigir a organização
administrativa e financeira do partido e elaborar o seu Orçamento e Contas –,
tendo sido o responsável pelo sector financeiro do CDS/PP; tinha o domínio da
gestão financeira do partido, controlando, como tal, os aspectos estruturais da
organização financeira do partido susceptíveis de comprometer o cumprimento da
obrigação de apresentação de uma conta consolidada que abrangesse o universo das
estruturas partidárias; não adoptou as providências necessárias para assegurar a
oportuna observância de tal obrigação no ano de 2003; assim procedeu com
conhecimento de que se encontrava vinculado à apresentação de uma conta
consolidada que abrangesse o universo das estruturas partidárias» (itálico
nosso).
O despacho de promoção, cuja interpretação global e integrada conduziu à
enunciação da hipótese factual nele contida nos termos acabados de reproduzir,
incluía, por seu turno, as seguintes passagens:
«[…]
O mesmo não ocorre, porém, com outras infracções que, por estarem
inquestionavelmente ligadas a aspectos estruturais e essenciais da organização
financeira e contabilística dos partidos, não poderiam, ao menos numa análise
liminar e indiciária, ter escapado ao controlo dos titulares dos órgãos a quem
estava cometido, segundo os estatutos e regulamentos financeiros em vigor, o
“domínio” da gestão financeira dos partidos, nomeadamente:
[…]
II) a ausência de contas abrangendo todo o universo partidário
(verificada quanto ao PS, PPD/PSD e ao CDS-PP);
[…]
g) Quanto ao CDS-PP, compete à Comissão Directiva dirigir a organização
administrativa e financeira do partido e elaborar o seu Orçamento e Contas (art.
50º, n.º1, alíneas d) e f) dos Estatutos). No decurso do ano de 2003, o
responsável pelo sector financeiro do CDS/PP foi Abel Saturnino da Silva de
Moura Pinheiro. Este membro da Comissão Directiva e responsável financeiro bem
sabia face ao teor dos preceitos legais, das disposições estatutárias e à
reiterada jurisprudência deste Tribunal Constitucional, que estava vinculado à
apresentação de uma conta consolidada, que abrangesse o universo das estruturas
partidárias, devendo ter adoptado tempestivamente as providências adequadas para
que tal tivesse ocorrido no exercício de 2003, pelo que, não o tendo feito, se
mostra indiciado que participou, com dolo, no cometimento da infracção prevista
no artigo 10.º, n.º 4, promovendo-se a aplicação da coima prevista no artigo
14.º, n.º 3, da citada lei».
A consideração concatenada de ambos os textos em presença permite concluir que
os factos que o Tribunal entendeu resultarem de uma «interpretação global e
integrada do despacho de promoção» são rigorosamente aqueles que o Acórdão
seguidamente enunciou (em cima a itálico) e que todos os factos em tais termos
enunciados constavam já daquela peça processual, ainda que aí articulados sob
diversa organização.
A interpretação global e integrada do despacho de promoção conduziu apenas a
condensar numa fórmula mais compacta, sintetizada e estruturada a realidade
descrita e exposta ao longo do despacho de promoção, e não, conforme sustenta o
arguido, ao aditamento a esta de quaisquer factos que a mesma não comportasse
já, designadamente para efeitos da sua ulterior consideração no momento dedicado
à verificação dos pressupostos da responsabilidade contra-ordenacional imputada.
Foi, com efeito, a partir dos factos enunciados no Acórdão em estreita
correspondência com a descrição contida no despacho de acusação – e não também
de quaisquer outros que a esta se houvessem aditado em resultado da
interpretação global e integrada do texto apresentado pelo Ministério Público –
que se considerou preenchido o tipo de ilícito contra-ordenacional imputado e,
com tal fundamento, se decidiu condenar o arguido no pagamento de uma coima.
Uma vez mais contra o que sustenta o arguido, as considerações que o Acórdão
especialmente dedicou ao tipo subjectivo do ilícito imputado e que aquele
reproduz não dão conta de procedimento diverso.
Inserem-se elas no seguinte excerto do aresto criticado:
«A infracção que ao arguido se imputa é estruturalmente dolosa: o tipo legal
convocado pelo despacho de promoção supõe o dolo do agente – conhecimento da
factualidade típica e vontade de realização do tipo contra-ordenacional –, sendo
este admitido em qualquer das modalidades que concretamente pode revestir –
directo, necessário ou eventual (art. 14º do Código Penal, aplicável
subsidiariamente por força do disposto no art. 32º do RGCO).
Ora, lida e interpretada a versão constante do despacho de promoção, percebe-se
que a mesma dá globalmente conta de uma actuação consciente, baseada no
conhecimento da proibição legal – e, por consequência, no desvalor objectivo do
comportamento adverso –, expressando, deste ponto de vista, o mínimo
imprescindível à caracterização do nexo psicológico de ligação dos factos
imputados ao respectivo agente.
E se certo é que, na perspectiva da caracterização factual do dolo, outras
fórmulas narrativas mais extensivas, densas e pormenorizadas serão porventura
configuráveis e preferíveis até, não deixa de ser verdade que o thema probandum
fixado a partir do despacho de promoção não se encontra, também no que ao dolo
concerne, incompleto ou impreciso ao ponto de consentir na evanescência do seu
sentido e com isso comprometer a organização da defesa, tanto mais que o tipo
legal convocado, apesar de estruturalmente doloso, não é concomitantemente
integrado por qualquer um dos chamados “requisitos de intenção”».
Às afirmações acabadas de transcrever o arguido faz dois reparos, que concretiza
nos seguintes termos: em primeiro lugar, «não obstante a necessidade legal do
tipo em causa, o Ministério Público entendeu não apresentar qualquer elemento
probatório sobre a intenção com a qual o arguido havia alegadamente cometido o
tipo contra-ordenacional», sendo que «tal vício […] não foi tido em devida conta
pelo Tribunal Constitucional» que também aqui recorreu a uma «indecifrável
interpretação global e integrada do despacho de promoção, retirando conclusões
de onde não se encontravam quaisquer factos»; em segundo, «da leitura do
despacho de promoção não se vislumbra» e o «Tribunal nada esclarece a este
respeito, que elementos permitiram dar conta “globalmente” de uma actuação
consciente, baseada no conhecimento da proibição legal – e, por consequência no
desvalor objectivo do comportamento adverso».
Quanto ao primeiro, cabe começar por esclarecer que a objecção colocada pelo
arguido parte de uma confusão entre o plano da descrição dos factos contidos no
despacho de promoção e o da suficiência dos elementos probatórios apresentados
pelo Ministério Público em ordem à respectiva comprovação em juízo, quando certo
é que, em função do efeito processual a partir de tal objecção reivindicado, só
o primeiro pode estar verdadeiramente em causa.
Admitindo-se, pois, que o que se pretende dizer é que o Ministério Público, no
despacho de promoção, não imputou ao arguido qualquer particular intenção no
contexto do cometimento dos factos integradores do tipo objectivo de ilícito, a
crítica que deste ponto de vista é assim dirigida ao Acórdão questionado
encontra no que aí se escreveu a razão da sua improcedência.
Com efeito, ao ter-se feito notar que «o tipo contra-ordenacional em causa não é
[…] integrado por qualquer um dos chamados “requisitos de intenção”», colocou-se
justamente em evidência a circunstância de não se tratar aqui de um daqueles
tipos de ilícito construídos «de tal forma que uma certa intenção surge como uma
exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona e dele
se autonomiza» (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição,
pg.380). Somente nesta hipótese, não também na presente, é que a dita intenção
careceria de ser alegada no despacho de promoção.
Quanto à segunda das objecções colocadas pelo arguido, não parece difícil de
demonstrar o acerto da conclusão segundo a qual a afirmação de que «lida e
interpretada a versão constante do despacho de promoção, percebe-se que a mesma
dá globalmente conta de uma actuação consciente, baseada no conhecimento da
proibição legal – e, por consequência, no desvalor objectivo do comportamento
adverso –», não gera, nem implica qualquer ampliação da hipótese factual contida
no despacho de promoção.
Com efeito, afirmar-se, como faz o despacho de promoção, que a ausência de uma
conta que abrangesse o universo das estruturas partidárias foi determinada por
«aspectos estruturais e essenciais da organização financeira e contabilística
dos partidos» que «não poderiam […] ter escapado ao controlo dos titulares dos
órgãos» é o equivalente a dizer-se, como faz o Acórdão, que o arguido, enquanto
titular de um desses órgãos, desenvolveu uma «actuação consciente».
Do mesmo modo, afirmar-se, como é feito no Acórdão, que o arguido desenvolveu
uma actuação «baseada no conhecimento da proibição legal» é o mesmo que dizer,
como é dito no despacho de promoção, que o arguido «bem sabia […] que estava
vinculado à apresentação de uma conta consolidada, que abrangesse o universo das
estruturas partidárias».
Finalmente, afirmar-se, como faz o Acórdão, que o arguido actuou com
conhecimento do «desvalor objectivo do comportamento adverso» corresponde a uma
mera explicitação lógica da afirmação de que o mesmo «agiu com conhecimento da
proibição legal», já que o conhecimento da proibição legal envolve
necessariamente o conhecimento do desvalor objectivo do comportamento que a
viole.
É assim de julgar improcedente a nulidade que, sob invocação do disposto na al.)
do n.º1 do art. 379º, do Código de Processo Penal, vem imputada ao Acórdão
condenatório.
2.2. Da nulidade procedente da violação do disposto na al.a) do n.º1 do art.379º
do Código de Processo Penal.
Sustenta o arguido que, «a fim de demonstrar a existência de dolo, teria o
Tribunal de demonstrar, cabalmente, quais as medidas concretas não adoptadas
pelo mesmo que concretamente levaram à produção do resultado», o que, não tendo
ocorrido, determinará a «falta de fundamentação do Acórdão» criticado, esta por
seu turno geradora da respectiva nulidade nos termos do disposto nos arts. 374º,
n.º 2, e 379º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal.
Conforme é consensualmente reconhecido na doutrina, o dolo implica o
conhecimento ou a representação pelo agente das circunstâncias do facto que
preenche um tipo de ilícito (vide, por todos, Figueiredo Dias, ob. cit.,
pg.351).
Tratando-se, no presente caso, do tipo de ilícito procedente da previsão dos
art. 10º, n.º 4, e art. 14º, n.º 3, ambos da Lei n.º 56/98, de 18.08, na
redacção conferida pela Lei n.º 23/2000, de 23.08, tais circunstâncias são as
seguintes: a existência de um dever legal que obriga o partido a apresentar
contas anuais que abranjam todo o universo partidário; a qualidade do agente
enquanto membro da Comissão Directiva do Partido responsável pela respectiva
direcção e organização administrativa e financeira; a insuficiência das medidas
desenvolvidas para assegurar o cumprimento pelo partido daquele dever; o
efectivo não cumprimento do mesmo.
Daqui se segue que, do ponto de vista da estruturação do dolo, a circunstância
do facto típico que carece de encontrar-se abrangida pela representação do
agente é a insuficiência das medidas adoptadas e a existência de outras
susceptíveis de reduzir ou anular o risco de incumprimento pelo partido – pelo
quinto ano consecutivo – do dever de apresentação de uma conta que abrangesse o
universo das estruturas partidárias, e não também necessariamente as
particulares características daquelas últimas, seja por referência à totalidade
das possíveis e cogitáveis ou apenas a uma parte delas.
O raciocínio seguido para ter por verificado o dolo não faz, pois, incorrer o
Acórdão questionado em falta de fundamentação, o que conduz a julgar
improcedente a segunda das nulidades que lhe são imputas pelo arguido.
2.3. Da revogação do Acórdão condenatório e da sua substituição por outro que
determine a absolvição do arguido e o consequente arquivamento dos autos.
Pretendendo a revisão do julgado através da reapreciação da causa pelo mesmo
tribunal, o arguido desenvolve o discurso argumentativo com que fundamenta tal
pretensão sob dois distintos momentos, o primeiro dos quais dedicado à exposição
dos motivos que deverão tornar processualmente admissível tal pretensão
independentemente da sua qualificação jurídica como recurso ou reclamação e o
segundo centrado na apresentação das razões que, no caso presente, deverão
conduzir à intentada revogação.
Reconhecendo que o legislador não consagrou, no âmbito do processo previsto no
art. 103º-A da LTC, «qualquer tipo de mecanismo especial de recurso», antes
tendo conferido ao «plenário do Tribunal Constitucional a competência para
proferir decisão sobre esta matéria (cfr. n.º 3 do artigo 103º-A da CRP)», o
arguido sustenta que tal processo tem, no entanto, «estrutura inquisitória» e
que a mesma «não se afigura consentânea com a exigência, constitucionalmente
consagrada, de imparcialidade do órgão jurisdicional (cfr. artigos 202.º, n. 2 e
artigo 266º, n.º 2 da CRP)», concluindo que, em tal contexto, se mostraria
«bizarro um entendimento no sentido de que a falta de previsão literal do
direito ao recurso deveria ser entendida como falta de consagração legal do
mesmo».
Para o arguido, estar-se-á em presença de «um processo cuja
estrutura assenta numa lógica de inquisitório», uma vez que «no caso concreto
existe uma inquestionável coincidência entre instrutor e decisor do processo, o
que, desde logo acarreta a impossibilidade de garantir a imparcialidade do
Tribunal».
De acordo ainda com a perspectiva seguida, «o n.º 1 do artigo 103º-A da referida
Lei, ao conferir aos […] Juízes deste Tribunal competência para verificar o
incumprimento da Lei do Financiamento dos Partidos Políticos, elimina qualquer
possibilidade de manutenção da imparcialidade do Tribunal, fazendo com que o
processo comece para o arguido quando este já se encontra na sua fase conclusiva
para o Tribunal, i.e., quando a convicção dos […] Juízes está já formada quanto
à verificação do ilícito». Tratar-se-á, em suma, de «um processo cuja estrutura
assenta numa lógica de inquisitório, apreciando e verificando os […] Juízes
deste Tribunal o incumprimento da Lei n.º 58/98, e somente depois dando vista ao
Ministério Público para “promover a aplicação da respectiva coima”», que veda ao
arguido a possibilidade de «discutir perante um Tribunal imparcial, ainda não
comprometido com decisões anteriormente tomadas acerca dos factos, todos os
elementos que conformam a alegada infracção».
Considerados os próprios termos em que a pretensão expressa pelo arguido vem
formulada, a primeira nota a salientar é a de que a mesma remete para uma figura
processual híbrida ou de tertium genius, situada a meio caminho entre os
institutos processuais do recurso e da reclamação.
Com efeito, pretendida que é a reapreciação da causa pelo mesmo tribunal que a
julgou, tal figura partilharia com o recurso a característica de poder conduzir
a uma revisão do julgado e com a reclamação a particularidade de, tal como esta,
se destinar a ser decidida pelo Tribunal que proferiu a decisão criticada.
Sobre a questão da legitimidade constitucional da irrecorribilidade
do Acórdão proferido pelo plenário do Tribunal Constitucional no âmbito dos
processos especiais previstos no art. 103º-A da LTC, designadamente no confronto
com os n.ºs 1 e 10º do art. 32º da CRP, teve este Tribunal já ocasião de se
pronunciar, tendo-o feito no Acórdão n.º 557/06 e, no seguimento deste, no
Acórdão n.º 86/08.
A tal propósito, escreveu-se neste último o seguinte:
«A primeira nota que cumpre salientar é a de que, ao invés do que vem afirmado,
o n.º 1 do art. 32º da Constituição não é aplicável aos processos de
contra-ordenação.
A demonstração disso mesmo encontra-se feita no Acórdão nº 313/07, cuja
fundamentação, aqui retomada, inclui as seguintes passagens:
“A introdução do nº 10 no artº 32º, da C.R.P., efectuada pela revisão
constitucional de 1989, quanto aos processos de contra-ordenação, e alargada,
pela revisão de 1997, a quaisquer processos sancionatórios, ao visar assegurar
os direitos de defesa e de audiência do arguido nos processos sancionatórios não
penais, os quais, na versão originária da Constituição, apenas estavam
expressamente assegurados aos arguidos em processos disciplinares no âmbito da
função pública (artigo 270.º, n.º 3, correspondente ao actual artigo 269.º, n.º
3), denunciou o pensamento constitucional que os direitos consagrados para o
processo penal não tinham uma aplicação directa aos demais processos
sancionatórios, nomeadamente ao processo de contra-ordenação.
Assim, o direito ao recurso actualmente consagrado no nº 1, do artº 32º, da
C.R.P. (introduzido pela revisão de 1997), enquanto meio de defesa contra a
prolação de decisões jurisidicionais injustas, assegurando-se ao arguido a
possibilidade de as impugnar para um segundo grau de jurisdição, não tem
aplicação directa ao processo de contra-ordenação.
Conforme se sustentou no Acórdão nº 659/06, deste Tribunal, cuja fundamentação
acompanhamos de perto, nos direitos constitucionais à audiência e à defesa,
especialmente previstos para o processo de contra-ordenação e outros processos
sancionatórios, no nº 10, do artº 32º, da C.R.P., não se pode incluir o direito
a um duplo grau de apreciação jurisdicional. Esta norma exige apenas que o
arguido nesses processos não-penais seja previamente ouvido e possa defender-se
das imputações que lhe sejam feitas, apresentando meios de prova, requerendo a
realização de diligências com vista ao apuramento da verdade dos factos e
alegando as suas razões.
A não inclusão do direito ao recurso no âmbito mais vasto do direito de defesa
constante do n.º 10, do art. 32º, da C.R.P., ressalta da diferença de redacção
dos nº 1 e 10, deste artigo, sendo que ambas foram alteradas pela revisão de
1997, e dos trabalhos preparatórios desta revisão, em que a proposta no sentido
de assegurar ao arguido “nos processos disciplinares e demais processos
sancionatórios…todas as garantias do processo criminal”, constante do art. 32º
- B, do Projecto de Revisão Constitucional, nº 4/VII, do PCP, foi rejeitada
(leia-se o debate sobre esta matéria no D.A.R., II Série – RC, nº 20, de 12 de
Setembro, de 1996, pág. 541-544, e I Série, nº 95, de 17 de Julho de 1997, pág.
3412 a 3466)”.
É certo que as situações tratadas, quer no Acórdão acima parcialmente
transcrito, quer no Acórdão n.º 659/06, aí citado, emergiram de processos
através dos quais se pretendia reagir contra uma coima aplicada por uma entidade
administrativa cuja decisão havia sido impugnada judicialmente, limitando-se por
isso a discussão à possibilidade de o impugnante vir a fazer uso, no interior da
ordem dos tribunais judiciais, de um duplo grau de jurisdição.
Mais radicalmente, o que aqui está em causa é a exclusão da própria
possibilidade de provocar a revisão da decisão que pela primeira vez conhece dos
pressupostos e consequências da responsabilidade contra-ordenacional.
Simplesmente, se assim ocorre de facto, não pode esquecer-se que o
pronunciamento a ter lugar no âmbito dos processos previstos no art. 103º-A da
LTC, para além de ser já um pronunciamento jurisdicional (o que impede a
ocorrência de violação do art. 20º da CRP), encontra-se legalmente cometido ao
Plenário do Tribunal Constitucional, o que, conferindo-lhe óbvias
especificidades, é de modo a justificar a previsão de um regime processual
diferenciado.
Isso mesmo foi reconhecido no Acórdão nº 557/06, em cuja fundamentação se
escreveu o seguinte:
“Não existe entre o processo particular previsto no artigo 103º-A da LTC e os
processos de aplicação de coimas por decisão de autoridades administrativas
regulados pelo Decreto-Lei nº 433/82, em que das decisões dessas autoridades é
admitida impugnação judicial perante o tribunal em cuja área territorial tenha
sido consumada a infracção (artigos 59º e seguintes), qualquer analogia
substancial que implique ou sequer legitime a aplicação analógica das
disposições que regulam estes últimos ao processo previsto no artigo 103º-A da
LTC. Na verdade, a aplicação das sanções aos partidos políticos é decidida, nos
casos semelhantes ao vertente, após audição dos interessados sobre a
factualidade que lhes é imputada a título de infracção, por um tribunal (o
Tribunal Constitucional), e por um tribunal agindo numa formação (o plenário)
que não torna possível que as suas decisões sejam reapreciadas por uma instância
superior (ou sequer diversa). Donde resulta que não infringe a garantia do
direito ao recurso consagrada no artigo 32º, nº 1, da Constituição a não
previsão, neste caso, de uma via de reacção legal (com o sentido de reapreciação
daquela decisão do Tribunal Constitucional em sessão plenária por uma outra e
superior instância – um recurso) que faculte a impugnação pelos interessados
daquelas decisões”.
Reiterando a jurisprudência seguida no acórdão acabado de citar, conclui-se,
também aqui, que a norma adjectiva contida no art. 103º-A da LTC não é
materialmente inconstitucional».
Aos termos em que o problema da viabilidade constitucional da irrecorribilidade
do Acórdão proferido pelo Plenário do Tribunal Constitucional no âmbito do
processo previsto no art. 103º-A da LTC foi enunciado e resolvido pelos arestos
acabados de considerar adita, porém, o arguido um elemento novo, este não
ponderado ainda.
Segundo a tese exposta pelo arguido, a circunstância de o processo previsto no
art. 103º-A da LTC apresentar uma estrutura de tipo e lógica inquisitória e de
esta comprometer a independência e a imparcialidade do Tribunal competente para
o julgamento obrigará ao reequacionamento do problema, conduzindo a uma resposta
para ele de sentido diverso daquela que foi já dada.
Será assim?
Segundo consensualmente descrito na doutrina, o processo de estrutura
inquisitória caracteriza-se por ser um processo «em que ao juiz […] compete
simultaneamente inquirir, acusar e julgar; em que a ele pertence o domínio
discricionário do processo, quer no seu se (promoção processual), quer no seu
como (objecto processual e consequente fixação do thema probandum e do thema
decidendum), quer na sua concreta tramitação» (Figueiredo Dias, Direito
Processual Penal, 1974, pgs.61-62).
Conforme passará a demonstrar-se, de nenhuma destas características participa o
processo instaurado ao abrigo do disposto nos artigos 13º, n.º 2 e 14º, n.º 3,
ambos da Lei n.º 56/98, e 103º-A da Lei do Tribunal Constitucional.
Segundo dispõe o art. 13º, n.º 2, da Lei n.º 56/98, «o Tribunal Constitucional
pronuncia-se sobre a regularidade e a legalidade das contas referidas no artigo
anterior [contas anuais dos partidos políticos] no prazo máximo de seis meses a
contar do dia da sua recepção [ …]».
Decorre, por seu turno, do art. 14º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 56/98, na redacção
conferida pela Lei n.º 23/2000, que serão punidos com coima os partidos
políticos que não cumprirem as obrigações impostas no respectivo capítulo II,
bem como os dirigentes dos partidos políticos que pessoalmente participem em
tais infracções.
Finalmente, preceitua o art.103º-A da Lei do Tribunal Constitucional:
«1. Quando, ao exercer a competência prevista no n.º 2 do artigo 13º da Lei n.º
72/93, de 30 de Novembro, o Tribunal Constitucional verificar que ocorreu o
incumprimento de qualquer das obrigações que, nos termos do capítulo II do mesmo
diploma legal, impendem sobre os partidos políticos, dar-se-á vista nos autos ao
Ministério Público, para que este possa promover a aplicação da respectiva
coima.
2. […]
3. Promovida a aplicação de coima pelo Ministério Público, o Presidente do
Tribunal ordenará a notificação do partido político arguido, para este
responder, no prazo de 20 dias, e, sendo caso disso, juntar a prova documental
que tiver por conveniente ou, em casos excepcionais, requerer a produção de
outro meio de prova, após o que o Tribunal decidirá, em sessão plenária».
Conforme se escreveu no Acórdão ora questionado, «da concatenação das
disposições acima transcritas resulta que o processo nos presentes autos
instaurado se encontra adstrito a uma dupla finalidade: a verificação da
regularidade e da legalidade das contas dos partidos políticos e o apuramento,
em momento subsequente, consequente e sempre eventual, da responsabilidade
contra-ordenacional pelas infracções que lhes possam estar associadas».
Desenvolvendo tal constatação na direcção exigida pela resposta ao problema
colocado, acrescentar-se-á que a circunstância de ambas as referidas finalidades
se realizarem através da intervenção do plenário do Tribunal Constitucional não
faz esquecer que entre um e outro dos momentos que lhes correspondem tem lugar a
obrigatória intervenção do Ministério Público e que apenas nos casos em que
este, de acordo com a sua própria apreciação do caso, promova a aplicação de
coima contra determinadas entidades singulares e/ou colectivas com base na
imputação dos factos que considere indiciados é que se segue, relativamente às
entidades visadas, o apuramento judicial dos pressupostos da responsabilidade
contra-ordenacional imputada, sempre dentro dos limites temáticos previamente
definidos no despacho de promoção.
Daqui se segue que o tribunal ao qual compete o julgamento das contra-ordenações
imputadas, ainda que haja verificado, em anterior momento, a regularidade e a
legalidade das contas dos partidos, não é titular de qualquer poder de
iniciativa no plano da prossecução processual – e por isso não lhe pertence o se
do processo –, nem dispõe de qualquer faculdade de fixação oficiosa do
respectivo objecto – e por isso não lhe pertence o como do processo –, antes se
limitando a julgar sob acção processual do Ministério Público e dentro dos
limites colocados pelo despacho através do qual é promovida a aplicação de
coima, definindo este o thema probandum e o thema decidendum no caso.
A circunstância de o plenário do Tribunal Constitucional se pronunciar
previamente sobre a regularidade e a legalidade das contas dos partidos
políticos, não sendo prestável para a caracterização como inquisitória da
estrutura do processo, deverá conduzir, ainda assim, ao reconhecimento de que a
concomitante atribuição àquela instância de competência para proceder ao
julgamento das contra-ordenações que venham a ser imputadas «não se afigura
consentânea com a exigência, constitucionalmente consagrada, de imparcialidade
do órgão jurisdicional (cfr. artigos 202.º, n.º 2 e artigo 266º, n.º 2 da CRP)»?
O problema da relação entre as intervenções pretéritas do juiz do julgamento e o
respeito pela garantia da imparcialidade do órgão jurisdicional é habitualmente
tratado no âmbito do processo penal, contexto em que conhece abundante
desenvolvimento jurisprudencial, em especial no plano constitucional.
O essencial do pensamento jurisprudencial a tal propósito desenvolvido é
sintetizável a partir da exposição feita no Acórdão n.º 297/03, onde se escreveu
o seguinte:
«4 - É extensa a jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a
constitucionalidade da norma do artigo 40º do Código de Processo Penal, quer na
redacção inicial do preceito, quer na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º
3/99, de 13 de Janeiro - o Acórdão n.º 114/95, in ATC 30º vol., págs. 665 e
segs., é o primeiro sobre tal matéria.
[…]
É nos Acórdãos n.ºs 219/89 e 124/90 in ATC 13º - II vol., págs.703 e segs e 15º
vol., págs. 407 e segs., respectivamente, que o Tribunal Constitucional vem a
desenvolver a sua doutrina sobre a acumulação de funções, orgânica ou
subjectiva, do juiz em processo penal, face ao disposto no artigo 6º n.º 1 da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, enquanto confere ao arguido o direito
a que a sua causa seja examinada por um tribunal imparcial, e ao consagrado no
artigo 32º n.º 5 da Constituição enquanto impõe a estrutura acusatória para o
processo penal; estava, então, em causa a constitucionalidade das normas dos
artigos 365º do CPP de 1929, 59º da Lei n.º 82/77, de 6 de Dezembro e 8º do
Decreto-Lei n.º 269/78, de 1 de Setembro, por força das quais as funções de
emitir o despacho de pronúncia e de julgar se congregavam no mesmo juiz.
Considerou-se, no primeiro acórdão citado, que o princípio do acusatório impunha
a separação da função de investigação e acusação da função de julgamento como
garantia de imparcialidade do julgador. Mas como se entendeu que a pronúncia, no
caso de se manter nos limites da acusação, não participa do acto acusatório,
assumindo uma dimensão 'puramente garantística' – o despacho de pronúncia
limitar-se-ia 'a evitar a ida a julgamento de indivíduos injustamente acusados'
– concluiu-se que as referidas normas não padeciam de inconstitucionalidade.
A mesma tese vem a fazer vencimento no segundo acórdão, onde se acentua que 'o
despacho de pronúncia não representa (...) uma qualquer antecipação de um juízo
de condenação do arguido' e que 'destinando-se (...) a evitar que se seja
submetido a julgamento por um crime grave, nem o arguido nem o público em geral
podem ver no juiz que profere esse despacho alguém que está predisposto a
condená-lo'.
As garantias de imparcialidade e objectividade no julgamento continuam a ser o
elemento determinante de aferição da constitucionalidade, mas neste último
aresto retoma-se (no Acórdão n.º 135/88 a questão foi - como se viu - aflorada)
a ponderação da aparência de imparcialidade do julgador - a imparcialidade 'aos
olhos do público'.
Não pode dizer-se que, relativamente à tese vencedora, os votos de vencido
exarados nestes dois acórdãos assentem num entendimento diverso do princípio do
acusatório. O que é substancialmente diferente é a avaliação do despacho de
pronúncia no ponto em que, sem desmerecer a dimensão garantística deste
despacho, aqueles votos fazem relevar o que nele se contém de pré-juízo, de
prognose, sobre a séria probabilidade de o acusado vir a ser condenado pelos
factos de que é acusado - 'o juiz é necessariamente envolvido na acusação, sendo
forçado a uma pré-compreensão (ainda que provisória) sobre a responsabilidade do
acusado', lê-se no voto de vencido do Consº Vital Moreira). E, por outro lado,
vincam a necessidade de o sistema não deixar 'qualquer lugar para a mínima
suspeita da opinião pública' sobre a imparcialidade do julgador.
O Tribunal Constitucional volta a pronunciar-se no Acórdão n.º 114/95 sobre a
estrutura acusatória do processo criminal e a exigência constitucional de
independência dos juízes, quando chamado a ajuizar da constitucionalidade da
norma do artigo 40º do CPP de 1987, na sua versão originária.
[…]
No aresto, depois de se citar a doutrina sustentada nos Acórdãos n.ºs 219/89 e
124/90 e a jurisprudência do TEDH sobre o artigo 6º n.º 1 da CEDH que 'reflecte
a exigência de um juízo imparcial não apenas numa perspectiva subjectiva – o que
o juiz pensa no seu foro íntimo em determinada circunstância é uma vertente da
imparcialidade que se presume até prova em contrário – mas também numa visão
objectiva, de modo a dissiparem-se quaisquer reservas: deve ser recusado todo o
juiz de quem se possa temer uma falta de imparcialidade para preservar a
confiança que, numa sociedade democrática, os tribunais devem oferecer aos
cidadãos (...)', escreveu-se:
[…]
Deste acórdão retira-se em síntese que:
- O artigo 40º do CPP, na sua versão originária, deve ser interpretado em termos
de abranger outras situações – mas não todas – em que o julgador interveio na
fase do inquérito;
- As garantias de imparcialidade do julgador exigem que a intervenção deste em
fase de inquérito não condicione a sua isenção e objectividade, nem ponha em
crise a confiança que o arguido e o público devem ter nessas isenção e
objectividade;
- Deve ser ponderado e avaliado o tipo concreto de intervenção do julgador na
fase do inquérito, relevando a sua dimensão (garantística, ou não) e a fase em
que ela ocorre».
Percorrendo seguidamente e em detalhe as diversas interpretações normativas
fiscalizadas por este Tribunal a propósito da aplicação do art. 40º do Código de
Processo Penal, o Acórdão que vimos acompanhando concluiu tal levantamento nos
seguintes termos:
«Finalmente, o Acórdão n.º 423/00, in ATC 48º vol., págs. 243 e segs., versou
sobre a constitucionalidade da norma do artigo 40º do CPP, já na redacção dada
pela Lei n.º 59/98, na interpretação que permite a intervenção como julgador do
juiz que na fase de inquérito procedeu ao primeiro interrogatório do arguido,
determinando a respectiva libertação mediante a adopção de medidas de coacção
não privativas de liberdade e posteriormente as manteve.
Uma vez mais, seguindo a fundamentação dos acórdãos anteriores, o Tribunal
Constitucional considerou que aquela primeira intervenção do juiz no inquérito,
'numa fase bastante embrionária do processo', em que, citando o alegado pelo
Ministério Público, 'carece ostensivamente de sentido sustentar que o juiz
formulou logo aí uma convicção segura sobre a culpabilidade da arguida', não
permite 'que se formule uma dúvida séria sobre as suas condições de
imparcialidade e isenção ou a gerar uma desconfiança geral sobre essa mesma
imparcialidade e independência'.»
O pensamento constitucional acabado de sintetizar dá inquestionavelmente conta
de que, no mais exigente âmbito do processo penal, apenas um limitado conjunto
de anteriores intervenções do juiz de julgamento é considerado susceptível de
fazer perigar a «exigência, constitucionalmente consagrada, de imparcialidade do
órgão jurisdicional (cfr. artigos 202.º, n. 2 e artigo 266º, n.º 2 da CRP)».
Com apoio ainda no discurso desenvolvido no Acórdão n.º 297/03, pode dizer-se
que tais intervenções são, para o Tribunal, somente aquelas que hajam convertido
o julgador em «órgão de acusação» ou que, pela sua frequência, intensidade ou
relevância, o hajam conduzido «a pré-juízos ou pré-compreensões sobre a
culpabilidade dos arguidos que firam a sua objectividade e isenção».
No âmbito do processo previsto no art. 103º-A, da LTC, a intervenção do Plenário
do Tribunal na verificação da legalidade e da regularidade das contas anuais dos
partidos políticos não apresenta qualquer uma destas características.
Com efeito, não é essa intervenção, por um lado, que fixa o objecto do processo,
mas sim o despacho do Ministério Público com que é promovida a aplicação de
coima; por outro lado, os poderes cognitivos do Plenário do Tribunal
Constitucional encontram-se limitados, no âmbito de tal intervenção, à
verificação das irregularidades constantes das contas dos partidos políticos,
não incluindo (nem sequer implicando) qualquer juízo sobre a relevância
contra-ordenacional das irregularidades verificadas, seja do ponto de vista da
possibilidade da sua imputação objectiva a uma pessoa, singular ou colectiva,
seja na perspectiva da viabilidade da sua imputação subjectiva, designadamente
por via da verificação do dolo.
Trata-se, outrossim, de uma intervenção preliminar de natureza meramente
declarativa, que não envolve qualquer pré-juízo, de prognose, sobre a séria
probabilidade de o ulterior e eventual visado pelo despacho de promoção vir a
ser condenado pelos factos que aí lhe vierem a ser imputados pelo Ministério
Público.
Daqui se retira em suma que, mesmo prescindindo do acréscimo argumentativo que
não deixaria de associar-se à circunstância de nos situarmos no plano do direito
contra-ordenacional e não do direito processual penal, os critérios neste
seguidos, ainda que aplicados sem afrouxamento, não deixariam de obstar à
possibilidade de considerar-se comprometida a exigência de imparcialidade do
Plenário do Tribunal Constitucional pelo facto de, no âmbito do processo
previsto no art. 103º-A, da LTC, tal instância haver previamente verificado a
regularidade das contas dos partidos políticos.
Não podendo considerar-se comprometida tal exigência, inexiste fundamento para,
nos termos preconizados pelo arguido, reponderar a questão da viabilidade
constitucional da irrecorribilidade do Acórdão do Plenário do Tribunal
Constitucional que condena os dirigentes dos partidos políticos no pagamento de
uma coima ao abrigo do disposto no art. 14º, n.º 3, da Lei n.º 56/98, na
redacção conferida pela Lei n.º 23/2000.
Sendo tal Acórdão irrecorrível, não há lugar à reapreciação do decidido; e mesmo
que se configurasse a argumentação do arguido como imputação de alguma
vicissitude susceptível de correcção nos termos em que esta é legalmente
admissível sempre ficaria por verificar a existência de qualquer erro, lapso,
obscuridade ou ambiguidade capaz de justificar o exercício de tal faculdade.
3. Por tudo o que exposto fica, decide-se:
a) julgar improcedentes as nulidades invocadas pelo arguido;
b) indeferir a pretendida revogação do Acórdão condenatório.
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Carlos Pamplona de Oliveira
Mário José de Araújo Torres
Gil Galvão
Joaquim de Sousa Ribeiro
Maria Lúcia Amaral
José Borges Soeiro
João Cura Mariano
Vítor Gomes
Maria João Antunes
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos