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Processo n.º 16/09
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
No âmbito do processo n.º 1392/05.OTAVCD, pendente no Tribunal Judicial da
Comarca de Vila do Conde, a arguida A. foi acusada pela prática de um crime de
associação criminosa, p.p. pelo artigo 299.º, n.º 2, do Código Penal (C.P.), de
um crime de lenocínio, na forma continuada, p.p. pelo artigo 169.º, n.º 1, do
C.P., e de um crime de auxílio à emigração ilegal, p.p. pelo artigo 134.º- A,
n.º 2, e 183.º, n.º 1, da Lei 23/2007, de 4 de Julho, por referência a acção de
fiscalização realizada em 11-11-2005.
A referida arguida requereu a abertura da instrução em que, além do mais, arguiu
a incompetência territorial do tribunal da comarca de Vila do Conde para
conhecer dos crimes de que vem acusada e a nulidade das escutas telefónicas
efectuadas, por violação dos requisitos formais e materiais exigidos por lei.
Realizada a instrução, foi proferida decisão instrutória em 9-10-2008,
pronunciando a arguida pelos factos constantes da acusação e indeferindo, além
do mais, a excepção de incompetência territorial do tribunal e as nulidades
imputadas às escutas telefónicas.
Inconformada com a decisão instrutória, na parte em que indeferiu a excepção de
incompetência territorial e as nulidades imputadas às escutas telefónicas, a
arguida interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, em 23-10-2008.
Este recurso não foi admitido por despacho proferido em 4-11-2008.
Deste despacho reclamou a arguida para o Presidente do Tribunal da Relação do
Porto, tendo a Vice-Presidente deste Tribunal, por decisão proferida em
24-11-2008, indeferido a reclamação com os seguintes fundamentos:
“A questão a decidir na presente reclamação é a de saber se é ou não aplicável a
lei nova. Na verdade, com a actual redacção do art. 310º, 1 do CPP, introduzida
pela Lei 48/2007, de 29 de Agosto, é indiscutível que a decisão instrutória que
pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação pública é irrecorrível,
mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou
incidentais.
A reclamante sustenta, no essencial, que tal alteração representa uma clara
diminuição das garantias de defesa do arguido (eliminação do direito ao
recurso), tomando inaplicável a lei nova quanto a este ponto concreto (direito
ao recurso da decisão instrutória, na parte em que aprecia nulidades e outras
questões prévias ou incidentais).
Vejamos a questão.
A regra sobre a aplicação da lei no tempo, em processo penal, é a da aplicação
imediata da lei nova e está consagrada no art. 5º, 1 do CPP: “A lei processual
penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos praticados na
vigência da lei anterior”.
Subjacente a esta ideia está o entendimento de que a nova lei corresponde a uma
melhor forma de efectivar os direitos em causa (ideia de progresso inerente a
qualquer alteração da lei) que a todos deve beneficiar. No entanto, admitem-se
excepções a esta regra, quando a nova lei, afinal (e em casos pontuais), vem
agravar a posição do arguido. Dai que, no termos do art. 5º, n.º 2, al. a), a
lei processual penal se não aplique aos processos iniciados anteriormente à sua
vigência, quando da sua aplicação imediata possa resultar: “agravamento sensível
e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação
do seu direito de defesa”.
Na presente reclamação, a arguida põe a tónica precisamente na limitação do seu
direito de defesa, resultante da aplicação da lei nova, pois deixa de poder
recorrer, quando na vigência da lei antiga podia fazê-lo.
A meu ver, a arguida não tem razão.
O que decorre do art. 310º, n.º 1 do CPP é, em rigor, uma dilação ou um
adiamento do direito ao recurso, o que não limita qualquer direito de defesa. As
questões decididas nos autos (incompetência territorial e nulidade das escutas)
não fazem caso julgado formal, precisamente porque da respectiva decisão não
cabe recurso e, por isso, as mesmas podem vir a ser invocadas no recurso da
decisão final, caso a arguida venha a ser condenada.
Assim, o que do aludido preceito (art. 310º, 1) decorre, para a posição
processual do arguido, é apenas a possibilidade de o mesmo ser sujeito a
julgamento, antes de reapreciada a decisão que julgou a arguida nulidade. Daí
que não seja rigoroso dizer-se que há, no caso, uma limitação do direito ao
recurso, mas sim a sujeição do arguido a julgamento, antes de ser reapreciada a
decisão sobre a nulidade.
Pode dizer-se que está em causa, apenas, uma certa regulação do processo penal
sobre a oportunidade ou sobre o momento em que deve ser admitido o recurso da
decisão instrutória que aprecia nulidades e outras questões prévias ou
incidentais: antes ou depois do julgamento.
A opção por uma ou outra fase do processo não se repercute sobre as garantias de
defesa do arguido, pelo que não está em causa um regime que traduza um
agravamento sensível da situação processual do arguido, nomeadamente uma
limitação do seu direito de defesa.
Deste modo, creio que deve aplicar-se a lei nova, por ser essa a regra geral e
não se verificar, no caso, qualquer situação que caiba na excepção a que alude o
art. 5º, n.º 2 al. a) do CPP.
Esta visão não afronta os arts. 20º, 29 e 32º, 2 da CRP, uma vez que a
interpretação acolhida pressupõe que o direito ao recurso da decisão sobre a
incompetência territorial e sobre as invocadas nulidades subsista na esfera
jurídica do arguido e, portanto, não haja a menor limitação no seu conteúdo.
Sobre um caso similar pronunciou-se já o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º
460/08, de 25 de Setembro de 2008, confirmando decisão por mim proferida, no
sentido de não haver, na interpretação acima referida, qualquer
constitucionalidade.
“Da interpretação adoptada deriva, tão-somente (concluiu a decisão sumária do
relator no TC) a aplicação do novo regime em termos de adiar para um momento
posterior – em sede de recurso da decisão final – a apreciação das questões que
o Recorrente pretendia imediata. E isto contende apenas com a conformação do
regime legal dos meios impugnatórios de decisões judiciais que, não implicando
qualquer ofensa do núcleo fundamental das garantias de defesa do arguido, cai
inteiramente no espaço conformativo do legislador, consubstanciando opção de
política legislativa cuja sindicância não tem lugar em sede de fiscalização da
constitucionalidade.
Em recurso da decisão sumária do Relator, o Tribunal Constitucional manteve a
decisão do relator e concluiu:
“Não resultando, por conseguinte, da norma que determina a irrecorribilidade da
decisão instrutória, que, ao determinar a pronúncia pelos factos constantes da
acusação, decide questões prévias ou incidentais, a violação das garantias de
defesa, nomeadamente da presunção de inocência e do direito ao recurso, a
aplicabilidade imediata da lei nova que estabelece tal regime processual,
correspondendo a uma legítima opção político-legislativa, não merece censura do
ponto de vista constitucional.”.
A arguida recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional nos seguintes
termos:
“Constitui objecto do recurso a interpretação dos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, e
310.º n.º 1, do Código de Processo Penal dada pela Vice-Presidente da Relação do
Porto na referida reclamação – segundo a qual o regime de recursos da decisão
instrutória previsto pela Lei nova é imediatamente aplicável, na medida em que
esta norma não preclude o direito de defesa, limitando-se a introduzir uma
“dilação” do direito ao recurso para o momento posterior à sentença, não
ocorrendo, assim, um agravamento sensível e evitável da situação processual do
arguido, nomeadamente na limitação do seu direito de defesa.
Este foi, com efeito, o critério decisório que norteou o despacho da Exma.
Vice-Presidente da Relação do Porto que, em sede de reclamação, confirmou a não
admissão do recurso tentado interpor do despacho instrutório que pronunciou a
arguida pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
Importa, assim, que o Tribunal Constitucional analise e se debruce sobre a
interpretação efectuada das normas citadas de modo a aferir da sua
incompatibilidade ou não com a Lei fundamental.
E, na sua modesta opinião, (da recorrente) o entendimento seguido na reclamação
comporta um agravamento sensível da situação processual da arguida, nos termos
do artigo 5.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, em termos de ferir a garantia
constitucional do direito de defesa, no seguimento que a aplicação da Lei nova
(art.º 310.º, n.º 1 do CPP) traduz uma limitação do seu direito de defesa,
violando frontalmente os artigos 20.º, 29.º e 32.º, n.º 2 da CRP.”
Posteriormente, a recorrente apresentou alegações com as seguintes conclusões:
“1. Com o presente recurso para o Tribunal Constitucional, suscita-se a
inconstitucionalidade da interpretação dos artigos 5º, n.º 1 e 2 e 310º, n.º 1,
todos do Código de Processo Penal – dada pela Vice-Presidente da Relação do
Porto na referida reclamação – segundo a qual, o regime de recursos da decisão
instrutória previsto pela lei nova é imediatamente aplicável, na medida em que
esta norma não preclude o direito de defesa, limitando-se a introduzir uma
“dilação” do direito ao recurso para o momento posterior à sentença, não
ocorrendo, assim, um agravamento sensível e evitável da situação processual do
arguido, nomeadamente, uma limitação do seu direito de defesa.
2. É entendimento da requerente que a interpretação seguida na reclamação,
comporta um agravamento sensível da sua situação processual, nos termos do art.
5º nº 1 do C.P.P., em termos de ferir a garantia Constitucional do direito de
defesa, no seguimento que a aplicação da lei nova (art. 310º n.º 1 do C.P.P.)
traduz uma limitação do seu direito de defesa, violando frontalmente os artigos
20º, 29º e 32º n.º 2 da C.R.P..
3. A lei nº 48/2007, de 29.08 consagrou a irrecorribilidade do despacho de
pronúncia que confirma os factos da acusação do M.P., inclui a apreciação sobre
as nulidades e outras questões prévias e incidentais.
4. Esta não é, contudo, a boa doutrina Constitucional.
5. A nova regra legal (art. 310º n.º1) encurta de maneira inadmissível as
garantias de defesa e, em particular, o direito de recurso, quando o juiz de
instrução indefira nulidades ou questões prévias ou incidentais que obstem ao
conhecimento do mérito da causa, como, por exemplo, a excepção do caso julgado,
a amnistia do crime ou a prescrição do procedimento criminal, a incompetência
territorial (esta é uma nulidade sanável caso não seja declarada pelo juiz de
instrução até o início do debate instrutório ou pelo tribunal de julgamento até
ao início da audiência de julgamento. Assim, uma vez declarada aberta a
audiência de julgamento, não pode mais o Juiz declarar a incompetência
territorial - art. 32º n.º 2 al. b) do C.P.P.) – Neste sentido Ac. S.T.J. de 11.
12. 97 in C.J. Acs. do S.T.J. V, 3, p. 254.
6. Com efeito, a irrecorribilidade do despacho de pronúncia que indeferiu
questões desta natureza prejudica irremediavelmente a situação processual do
arguido, sem que ele possa recolocar a questão na fase de julgamento (devido ao
caso julgado formal sobre a mesma) ou submeter a questão a um tribunal superior
(devido à irrecorribilidade do despacho de pronúncia).
7. Aliás, o exemplo do caso submetido ao Acórdão do T.C., n.º 216/99 é
paradigmático: o arguido viu indeferido o seu requerimento de nulidade das
escutas telefónicas por despacho instrutório e, porque se tratava de uma
pronúncia, ficou sem qualquer meio de reacção contra o dito indeferimento, que
entretanto fez caso julgado.
8. É pois, nosso entendimento, que o art. 301.º, n.º 1 do C.P.P. é
inconstitucional, por violar o art. 32.º, n.º 1 da C.R.P.
9. É certo que o legislador introduziu uma novidade no direito processual penal
– art. 310.º, n.º 2 – que no entendimento do Prof. Paulo Pinto de Albuquerque,
p. 775, “é uma solução contrária a toda a teoria do caso julgado formal.”
10. Mas tal solução (art. 310º n.º2) não salva a constitucionalidade do art.
310º, n.º 1. E isto, por duas razões: Primeiro, porque há mais nulidades e
questões prévias ou incidentais para além das provas proibidas e cuja relevância
é tão ou mais importante do que a questão da admissibilidade das provas, podendo
dizer respeito, por exemplo, à própria subsistência da pretensão primitiva do
Estado. Não se concebe que sejam irrecorríveis as decisões do juiz de instrução
tomadas sobre, nomeadamente, a excepção do caso julgado, a amnistia do crime ou
a prescrição do procedimento criminal – só porque foram tomadas no despacho de
pronúncia. Segundo, porque também o arguido pode ser irremediavelmente
prejudicado pela decisão (irrecorrível) do juiz de instrução de exclusão de
provas proibidas tomadas no despacho instrutório de pronúncia.
11. A exclusão de uma prova apresentada pela defesa por ser proibida nos termos
do art. 126º, n.º 1 e 2 do C.P.P., ficaria sem qualquer controlo do tribunal
superior, no que se restringiria de modo inadmissível as garantias de defesa,
incluindo o direito ao recurso.”
O Ministério Público apresentou contra-alegações onde concluiu pela
improcedência do recurso.
*
Fundamentação
1. Do objecto do recurso
No requerimento de interposição de recurso a recorrente solicitou a fiscalização
de constitucionalidade dos artigos 5.º, n.ºs 1 e 2, e 310.º n.º 1, do Código de
Processo Penal (C.P.P.), na interpretação segundo a qual o regime de recursos da
decisão instrutória previsto pela Lei nova (redacção do artigo 310.º, n.º 1, do
C.P.P., dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto) é imediatamente aplicável
aos processos pendentes.
Efectivamente, na decisão recorrida entendeu-se que o regime da
inadmissibilidade do recurso da decisão instrutória, na parte em que aprecia
nulidades e outras questões prévias ou incidentais, consagrado na redacção do
artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P., introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de
Agosto, é de aplicação imediata aos processos pendentes.
Tendo em consideração a natureza instrumental do recurso de constitucionalidade,
deve o critério normativo que se pretende sindicar restringir-se à aplicação da
lei no tempo do concreto regime de recursos que foi aplicado pela decisão
recorrida, ou seja, à aplicação retroactiva do novo regime de inadmissibilidade
do recurso da decisão instrutória, na parte em que aprecia nulidades e outras
questões prévias ou incidentais.
Além disso, nas alegações apresentadas, a recorrente, além de invocar a
inconstitucionalidade do critério sobre a aplicação da lei processual penal no
tempo seguido pela decisão recorrida, também pretende discutir a
constitucionalidade do próprio sistema de recursos do despacho de pronúncia,
consagrado na nova redacção do artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P..
Contudo tal pretensão traduz-se numa inadmissível ampliação do objecto do
recurso constitucional, o qual ficou inicialmente delimitado pelo conteúdo do
respectivo requerimento de interposição, pelo que apenas se apreciará a
constitucionalidade da norma contida nos artigos 5.º, n.º 1 e 2, e 310.º, n.º 1,
do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação segundo a qual a
inadmissibilidade do recurso da decisão instrutória na parte em que aprecia
nulidades e outras questões prévias ou incidentais, prevista na redacção dada
pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto ao artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P., é
imediatamente aplicável aos processos pendentes.
2. Do mérito do recurso
A questão sobre que versa o presente recurso respeita à aplicação da lei
processual penal no tempo.
Questiona-se a constitucionalidade da aplicação imediata aos processos já
pendentes da alteração ocorrida no regime de recursos da decisão instrutória,
resultante da alteração do disposto no artigo 310.º, n.º 1, do CPP, efectuada
pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto.
O artigo 310.º, n.º 1, do CPP, na redacção anterior e vigente no momento em que
se iniciou o processo, a qual lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de
17 de Fevereiro, dispunha:
“A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da
acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos
autos ao tribunal competente para o julgamento.”
Durante a sua vigência foram proferidas pelos Tribunais das Relações decisões
contraditórias sobre se essa irrecorribilidade se estendia ou não à parte do
despacho de pronúncia que decidia sobre nulidades, excepções ou questões prévias
ou incidentais, o que levou a que o Supremo Tribunal de Justiça tenha fixado
jurisprudência no sentido de que as decisões sobre essas matérias eram
recorríveis (Acórdão n.º 6/2000, de 19 de Janeiro de 2000, publicado no Diário
da República, I-A Série, de 7 de Março de 2000).
Posteriormente, perante nova querela jurisprudencial sobre o regime de subida
deste recurso, o Supremo Tribunal de Justiça teve necessidade de emitir novo
acórdão de uniformização de jurisprudência, fixando agora que aquele recurso
deveria subir imediatamente (Acórdão n.º 7/2004, de 21 de Outubro, publicado no
Diário da República, I-A Série, de 2 de Dezembro de 2004).
Entretanto, o Tribunal Constitucional proferiu várias decisões no sentido de não
serem inconstitucionais quer as interpretações normativas que consideravam
aquelas decisões não recorríveis (Acórdãos n.º 216/99, de 21-4-1999, em
“Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 43.º, pág. 239, e 387/99, de
23-6-1999, acessível no site www.tribunalconstitucional.pt), quer as que,
admitindo o recurso, diferiam o momento da sua subida (Acórdão n.º 242/05, de
4-5-2005, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”, vol. 62.º, pág. 365).
Foi neste quadro que o legislador de 2007, visando impor maior celeridade ao
processo penal, entendeu consagrar expressamente a solução da irrecorribilidade
da decisão instrutória que pronuncia o arguido pelos factos constantes da
acusação deduzida pelo Ministério Público, incluindo as decisões que apreciam a
arguição de nulidades e outras questões prévias ou incidentais, passando o
referido artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P., a dispor:
“A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da
acusação do Ministério Público formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4,
do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e
outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos
ao tribunal competente para o julgamento.”
Apesar deste processo se ter iniciado quando se encontrava em vigor a redacção
do Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, a decisão recorrida entendeu que a
nova redacção dada ao artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P., era de aplicação imediata,
nos termos do disposto no artigo 5.º, do C.P.P., pelo que considerou
inadmissível um recurso interposto de um despacho de pronúncia proferido já no
domínio da nova redacção do artigo 310.º, n.º 1, do C.P.P., na parte em que
havia indeferido a arguição da excepção de incompetência territorial do tribunal
para julgar o processo e das nulidades imputadas a escutas telefónicas.
Não cumpre a este tribunal apreciar da conformidade desta decisão com o direito
infra-constitucional, mas sim verificar se o critério que lhe presidiu fere
algum parâmetro constitucional.
Entre os princípios constitucionais básicos em matéria de punição criminal
encontram-se os princípios da não retroactividade da lei penal desfavorável, que
se traduz na impossibilidade de ser aplicada lei que qualifique como crimes ou
que agrave as penas relativamente a factos que lhe são anteriores, valendo
apenas para o futuro, e o da retroactividade da lei penal mais favorável que
impõe que a lei despenalizadora ou que puna menos severamente determinado crime
se aplique aos factos passados (artigo 29.º, n.º 1 a 4, da C.R.P.).
Na doutrina tem-se sustentado que, na medida imposta pelo conteúdo de sentido
destes princípios, eles também são aplicáveis a algumas normas do processo
penal, cuja natureza justifique tal extensão.
Assim, ainda na vigência da Constituição de 1933, Figueiredo Dias já defendia
que “…o princípio jurídico-constitucional da legalidade se estende, em certo
sentido, a toda a repressão penal e abrange, nesta medida, o próprio direito
processual penal…importa que a aplicação da lei processual penal a actos ou
situações que decorrem na sua vigência, mas se ligam a uma infracção cometida no
domínio da lei processual antiga, não contrarie nunca o conteúdo da garantia
conferida pelo princípio da legalidade. Daqui resultará que não deve aplicar-se
a nova lei processual penal a um acto ou situação processual que ocorra em
processo pendente ou derive de um crime cometido no domínio da lei antiga,
sempre que da nova lei resulte um agravamento da posição processual do arguido
ou, em particular, uma limitação do seu direito de defesa” (In “Direito
Processual Penal”, 1º vol., pág, 112, da ed. de 1974, da Coimbra Editora). E
citava em abono desta extensão do âmbito de aplicação do princípio da legalidade
penal não só as opiniões de Caeiro da Mata (em “Apontamentos de processo
criminal, pág. 31, da 2ª ed.) e de Castanheira Neves (em “Sumários de processo
criminal”, 1968), mas também o próprio conteúdo de anteriores preceitos
constitucionais (o § 10.º, do artigo 145.º, da Carta Constitucional de 1826, e o
n.º 21, do artigo 3º, da Constituição de 1911).
Apesar da actual Constituição também não enunciar especificamente qualquer
critério de aplicação da lei processual penal no tempo, na doutrina continua a
defender-se que aqueles princípios são extensíveis não só às normas processuais
que condicionam a aplicação das sanções penais (v.g. as relativas à prescrição,
ao exercício, caducidade e desistência do direito de queixa, e à reformatio in
pejus), mas também às normas que possam afectar o direito à liberdade do arguido
(v.g. as relativas à prisão preventiva) ou que asseguram os seus direitos
fundamentais de defesa, todas elas apelidadas de normas processuais penais
substantivas (vide, com cambiantes quanto às razões desta extensão e quanto à
fixação do momento-critério da determinação da lei processual aplicável,, MAIA
GONÇALVES, em “Código de Processo Penal anotado”, pág. 66-68, da 16.ª ed., da
Almedina, FIGUEIREDO DIAS, em “Direito processual penal”, pág. 92-94, ed. pol.
de 1988-1989, GOMES CANOTILHO, na R.L.J., Ano 123, pág. 94-96, ANTÓNIO
BARREIROS, em “Manual de processo penal”, pág. 237 e seg., da ed. de 1989, da
Universidade Lusíada, TAIPA DE CARVALHO, em “Sucessão de leis penais”, pág. 347
e seg., da 3ª ed., da Coimbra Editora, MARIA FERNANDA PALMA, em “Linhas
estruturais da reforma penal. Problemas de aplicação da lei processual penal no
tempo”, em “Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão”,
vol. II, pág. 1373-1377, e PEDRO CAEIRO, em “Aplicação da lei penal no tempo e
prazos de suspensão da prescrição do procedimento criminal: um caso prático”, em
“Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues”, pág. 231 e seg.).
Foi também no sentido de estender as regras do artigo 29.º, da C.R.P., à
sucessão de algumas normas processuais penais que se pronunciaram os acórdãos
deste Tribunal n.º 250/92, de 1-7-1992 (em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, vol. 22.º, pág. 709) n.º 451/93, de 15-7-1993 (acessível no
site www.tribunalconstitucional.pt), e n.º 183/2001 (em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, vol. 49.º, pág. 667), afastando-se de anterior jurisprudência
(acórdãos n.º 155/88, de 29-6-1988, em “Acórdãos do Tribunal Constitucional”,
11.º vol., pág. 1049, e n.º 70/90, de 15-3-1990, em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 15.º vol., pág. 267).
A subordinação às regras do artigo 29.º, da C.R.P., das situações de sucessão no
tempo de normas de processo que condicionam a responsabilidade penal resulta
duma simples operação de subsunção, uma vez que elas se inserem claramente no
âmbito de previsão daquele preceito constitucional, atenta a sua influência
directa na punição criminal.
Já relativamente às normas processuais que possam afectar o direito à liberdade
do arguido ou que asseguram os seus direitos fundamentais de defesa, a sua
aplicação imediata a processos em curso resulta sempre na atribuição duma
eficácia retroactiva imprópria (Pedro Caeiro, na ob. cit., pág. 241-242). Se é
verdade que na aplicação imediata a nova lei apenas atinge os actos processuais
ocorridos após a sua entrada em vigor, o que é certo é que ela acaba por se
aplicar a processos iniciados e em que se julgam factos que tiveram lugar no
domínio da lei antiga.
Nestas situações, tal como ocorre com as normas de direito penal, a necessidade
de protecção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão, como emanação do
princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º, da C.R.P.), exige a
proibição da aplicação com efeitos retroactivos, mesmo que impróprios, de
normas que, dispondo em matéria de direitos, liberdades e garantias
constitucionais do arguido, agravem a sua situação processual, de modo a
evitar-se um possível arbítrio ou excesso do poder estatal. Com esta proibição
impede-se que o poder legislativo do Estado diminua de forma direccionada e
intencional o nível de protecção da liberdade e dos direitos fundamentais de
defesa dos arguidos, em processos concretos já iniciados.
Nesta lógica se situa, aliás, a proibição expressa de atribuição de efeito
retroactivo às normas restritivas dos direitos, liberdades e garantias, imposta
no artigo 18.º, n.º 3, da C.R.P..
No caso sub iudicio, estamos perante a aplicação a processo criminal já pendente
duma nova lei que determinou a irrecorribilidade das decisões instrutórias na
parte em que apreciam a existência de nulidades e outras questões prévias ou
incidentais, quando o arguido é pronunciado pelos factos constantes da acusação
deduzida pelo Ministério Público.
A irrecorribilidade duma decisão desfavorável ao arguido resulta numa restrição
do direito ao recurso enquanto instrumento do direito à defesa em processo
penal, pelo que importa verificar se a introdução da referida solução da
irrecorribilidade das decisões proferidas em despacho de pronúncia que apreciem
a existência de nulidades e outras questões prévias ou incidentais, quando o
arguido é pronunciado pelos factos constantes da acusação deduzida pelo
Ministério Público, veio agravar a posição processual do arguido relativamente à
solução da lei vigente na altura em que o processo se iniciou.
Na solução jurisprudencial que fez vencimento no domínio da redacção do artigo
310.º, n.º 1, do C.P.P., introduzida pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de
Fevereiro, aquelas decisões eram recorríveis, mas quando se tornavam definitivas
faziam caso julgado formal no processo, não podendo voltar a ser apreciadas.
Na nova redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, aplicada
neste processo, tais decisões passaram a ser irrecorríveis, mas de acordo com a
leitura da decisão recorrida, no seguimento da opinião daqueles que no domínio
da redacção anterior já defendiam a tese da irrecorribilidade, e com apoio no
actual n.º 2, do mesmo artigo 310.º, tais decisões apenas valem para a pronúncia
do arguido, não tendo a força do caso julgado formal, pelo que pode o tribunal
do julgamento voltar a apreciar tais questões, com possibilidade de recurso
para o tribunal superior.
A decisão instrutória que se considera irrecorrível à luz da lei nova não
apresenta os mesmos efeitos que a decisão instrutória reputada recorrível
segundo a lei antiga (vigente no início do processo): enquanto a primeira não é
dotada da força de caso julgado formal, a segunda tinha essa autoridade.
Não é possível, pois, equiparar as duas decisões, para concluir que a solução da
irrecorribilidade agrava a posição do arguido no processo penal.
De acordo com a lei nova, por um lado, o arguido perde a vantagem
consubstanciada pela possibilidade das questões relativas à existência de
nulidades e outras questões prévias ou incidentais serem apreciadas em sede de
instrução segundo o sistema de duplo grau de jurisdição; mas, por outro lado,
segundo a própria decisão recorrida, o arguido ganha a possibilidade de ver tais
questões novamente apreciadas, ainda em primeira instância, pelo juiz de
julgamento, sem prejuízo do direito de recurso desta segunda apreciação.
Torna-se impossível, portanto, dizer que a nova redacção do artigo 310.º, n.º 1,
do C.P.P., na leitura que dela faz a decisão recorrida, agrave a posição
processual do arguido, pelo que a sua aplicação imediata a processos pendentes
não fere qualquer parâmetro constitucional, nomeadamente, a necessidade de
protecção dos direitos, liberdades e garantias do cidadão, como emanação do
princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º, da C.R.P.), o direito do
acesso ao direito (artigo 20.º, da C.R.P.), as regras de aplicação da lei
criminal no tempo (artigo 29.º, da C.R.P.) ou os direitos de defesa do arguido
(artigo 32.º, da C.R.P.).
Neste mesmo sentido já decidiu este Tribunal no Acórdão n.º 460/08, de 25-9-2008
(acessível no site www.tribunalconstitucional.pt).
Por estas razões deve improceder o recurso interposto.
*
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto para o Tribunal
Constitucional por A., da decisão da Vice-Presidente do Tribunal da Relação do
Porto proferida nestes autos em 24-11-2008.
*
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta,
ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º
303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de Maio de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres (Vencido,
nos termos da declaração de voto junto)
Rui Manuel Moura Ramos
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido por considerar que a norma do artigo
310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), na redacção dada pela Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, enquanto declara irrecorrível a decisão instrutória na
parte em que aprecia nulidades e outras questões prévias e incidentais, quando
do eventual provimento do recurso pudesse resultar a não sujeição do arguido a
julgamento, é sempre inconstitucional, por violação das garantias de defesa em
processo criminal (englobando necessariamente o direito de recurso)
consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa
(CRP).
Na verdade, como sustentei no voto de vencido aposto ao
Acórdão n.º 242/2005, expressando posição que continuo convictamente a defender,
entendo que, pelo menos quando estejam em causa infracções criminais de certa
gravidade, que ultrapassem as meras “bagatelas penais”, do princípio da
presunção de inocência decorre o direito a não ser submetido a julgamento sem
que estejam regularmente comprovados indícios suficientes da prática de um
crime, embora não se exija, naturalmente, uma apreciação exaustiva das provas,
reservada à fase de julgamento: cf. declarações de voto da Conselheira Maria
Fernanda Palma, apostas aos Acórdãos n.ºs 964/96, 1205/96 e 459/2000 (esta
mantida no Acórdão n.º 78/2001), e da Conselheira Maria dos Prazeres Beleza,
aposta ao Acórdão n.º 68/2000 (mantida nos Acórdãos n.ºs 371/2000, 46/2001 e
350/2002). Não acompanho, assim, a concepção, reiteradamente afirmada desde o
Acórdão n.º 474/94, de que, porque a CRP determina, no n.º 2 do artigo 32.º, que
todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de
condenação, “o simples facto de se ser submetido a julgamento não pode
constituir, só por si, no nosso ordenamento jurídico, um atentado ao bom nome ou
reputação”.
Como se assinalou na declaração de voto da Conselheira
Maria dos Prazeres Beleza, aposta ao Acórdão n.º 387/99:
“3. Na verdade, a pronúncia determina a continuação do processo, mediante a
sujeição do arguido a julgamento.
Da continuação do processo resulta necessariamente a imposição – ou manutenção
da imposição – ao arguido do termo de identidade e residência, previsto no
artigo 196.º do Código de Processo Penal.
A submissão do arguido a julgamento acarreta, inegavelmente, a compressão da
sua liberdade pessoal, tendo em conta o tempo necessário à organização da sua
defesa e à comparência na audiência, compressão tanto mais significativa quanto
mais complexa for a matéria dos autos, e que pode, em certos casos, colocar em
causa a continuação da sua actividade profissional.
A aceitação pelo Tribunal de Instrução de que existem indícios suficientes da
verificação dos pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena
ou de uma medida de segurança implica entender que existe uma «possibilidade
razoável» de tal pena ou medida de segurança vir a ser aplicada (n.º 2 do artigo
283.º e n.ºs 1 e 2 do artigo 308.º) em julgamento. O que leva, de facto, apesar
da força jurídica do princípio da presunção de inocência, à submissão do
arguido a uma forte censura social, que uma eventual decisão final absolutória
não consegue, as mais das vezes, apagar.
Acresce que, após a recente revisão do Código de Processo Penal (cf. n.º 1 do
artigo 86.º, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), o
processo penal é público a partir da decisão instrutória, quando seja proferida,
cessando nesse momento o segredo de justiça.
Recorde‑se ainda que o n.º 1 do artigo 6.º do Estatuto Disciplinar dos
Funcionários e Agentes da Administração Central, Regional e Local (aprovado pelo
Decreto‑Lei n.º 24/84, de 16 de Janeiro), não julgado inconstitucional pelo
Acórdão n.º 439/87 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 10.º, págs. 523 e
seguintes), estabelece como consequência do trânsito em julgado do despacho de
pronúncia em processo de querela – independentemente de saber se tal norma se
aplica aos processos regidos pelo Código de Processo Penal de 1987 – a suspensão
de funções e do vencimento até à decisão final.”
A este elenco pode mesmo acrescentar‑se a norma do
artigo 157.º, n.º 4, da CRP, que prevê a suspensão do mandato de Deputado quando
este for “acusado definitivamente” em processo criminal, suspensão que é
obrigatória quando se trate de crime doloso a que corresponda pena de prisão
cujo limite máximo seja superior a três anos.
Tudo isto (para não falar na constatação de que, na
prática judiciária, a pronúncia do arguido é geralmente vista como um elemento
que, tornando mais plausível a condenação, pode determinar o aumento do receio
de fuga e, assim, justificar mais facilmente o decretamento da prisão
preventiva) demonstra que, não apenas sociológica, mas também juridicamente, a
pronúncia de um arguido, com subsequente sujeição a julgamento, representa o
agravamento da sua situação, constituindo negação da realidade a afirmação de
que esse agravamento não se verifica só porque está constitucionalmente
consagrado o princípio da presunção de inocência.
Face a uma decisão inequivocamente gravosa para a
posição jurídica do arguido, é constitucionalmente fundada a exigência do
reconhecimento do direito de recurso dessa decisão e de um recurso que seja
eficaz, o que, no caso, reclama a sua subida imediata.
O STJ, tendo uniformizado a jurisprudência no sentido de
que “A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da
acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria
relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às
demais questões prévias ou incidentais” (“Assento” n.º 6/2000), veio
posteriormente a fixar a seguinte jurisprudência: “Sobe imediatamente o recurso
da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do
inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que
o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério
Público” (Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2004). Embora este último
acórdão se tenha fundamentado essencialmente numa interpretação da expressão
“decisão instrutória”, usada na alínea i) do n.º 1 do artigo 407.º do CPP, tida
por mais correcta, no sentido de abranger, não só a parte “substantiva” dessa
decisão (a decisão de pronúncia), mas também a parte “formal” (sobre nulidades e
questões prévias), não deixou de assinalar, em apoio da razoabilidade da
solução, que “não faria (...) muito sentido que o tribunal pudesse, ultrapassada
a fase da instrução, vir a conhecer em conjunto dos recursos interpostos da
decisão final e de outros interpostos de decisões intercalares, dada a vocação
de estanquicidade das fases de inquérito, instrução e processo”. Não deixando de
reconhecer que a lei, ao estabelecer a regra de que os recursos de decisões
intercalares sobem, em princípio, com o recurso da decisão final, privilegia a
celeridade processual em detrimento da economia processual, o referido acórdão
salienta que a essa regra foram estatuídas diversas excepções, nas várias
alíneas do n.º 1 do artigo 407.º do CPP, que admitem a subida imediata de
recursos interpostos de decisões interlocutórias, prevendo no n.º 2 da mesma
norma uma válvula de segurança que permite a subida imediata dos recursos cuja
retenção os torne absolutamente inúteis.
No presente caso, a irrecorribilidade da decisão
instrutória na parte em que desatendeu a arguição de nulidade de meios de prova
em que tal decisão se baseou, impedindo o arguido de, através do recurso,
conseguir obter a invalidação dessa prova e a possibilidade de se vir a dar por
insubsistente a acusação contra ele deduzida, assim evitando a sua sujeição a
julgamento, não respeita o direito de recurso dos arguidos contra decisões que
afectem direitos fundamentais.
Nem se diga que tal questão poderá vir a ser suscitada
em recurso da decisão final, pois, como se demonstrou no aludido voto de
vencido, essa possibilidade é meramente ilusória e nunca assume a efectividade
de um recurso imediato da decisão instrutória.
Na verdade, face a uma decisão final absolutória, o
conhecimento do recurso da decisão instrutória respeitante às nulidades e
questões prévias deixa de ter obviamente qualquer interesse. No caso de decisão
final condenatória, versando o recurso da decisão instrutória sobre alegada
insuficiência do inquérito e da instrução por utilização de prova proibida, de
duas uma: ou essa prova não foi admitida no julgamento e se, mesmo assim, o
arguido foi condenado, impõe‑se a mesma conclusão da perda de interesse do
recurso da decisão instrutória; ou a produção dessa prova foi admitida em
audiência de julgamento e então é perante esta nova decisão que o arguido tem de
reagir, conformando‑se com ela ou impugnando‑a, sendo certo que qualquer uma
destas atitudes retira relevância autónoma ao recurso “retido” da decisão
instrutória.
Depois – e decisivamente –, na perspectiva que perfilho,
visando a admissibilidade do recurso em causa a protecção do “direito a não ser
submetido a julgamento sem que estejam [regularmente (isto é, por meios de
provas lícitos)] comprovados indícios suficientes da prática de um crime”, a
norma ora em causa não salvaguarda esse direito, pelo que viola o n.º 1 do
artigo 32.º da CRP, sendo, para este efeito, irrelevante a determinação de qual
será o regime mais favorável (embora me pareça evidente que o regime mais
favorável era o anterior às alterações introduzidas pela Lei n.º 48/2007, que
assegurava o recurso).
Mário José de Araújo Torres