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Processo n.º 688/08
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos
do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorridos o Ministério
Público, B. e o Hospital Conde de São Bento – Santo Tirso, o relator proferiu
decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso com fundamento no
seguinte:
«2. O recorrente pretende ver apreciadas três questões:
i) inconstitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser inadmissível o recurso
quanto ao crime de violação na forma tentada, apesar de a pena aplicável ao
conjunto de crimes pelos quais estava acusado e foi condenado ser superior a
oito anos;
ii) inconstitucionalidade das normas dos artigos 127.º e 24.º, n.º 1, do Código
Penal, interpretadas no sentido de ser possível ignorar o teor de um exame
especializado que constituiu, aliás, a única prova para considerar provada a
prática de um crime e de excluir a aplicação desta última norma quando o
Tribunal não consegue apurar as razões que levaram o agente a não consumar a
tentativa;
iii) inconstitucionalidade da norma do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, na
interpretação que o Tribunal fez para decidir não suspender a execução da pena.
Constata-se, no entanto, não estarem preenchidos os pressupostos necessários ao
conhecimento do objecto do recurso, em relação às três questões, o que justifica
a prolação de decisão sumária, ao abrigo do artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC.
Na verdade, o recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, qualquer
questão de inconstitucionalidade normativa. Designadamente, não o fez na
motivação do recurso que interpôs para o Supremo Tribunal de Justiça, o que
facilmente se conclui da leitura das respectivas conclusões. Nem suscitou tais
questões no requerimento de aclaração do acórdão daquele Supremo Tribunal, que,
de todo o modo, já não poderia considerar-se o momento atempado para o fazer.
Resta dizer que, em qualquer dos três casos, era exigível ao recorrente que
tivesse suscitado a inconstitucionalidade das normas em causa antes de proferido
o acórdão final e, consequentemente, esgotado o poder jurisdicional do tribunal
recorrido.
O incumprimento do disposto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC, obsta, só por si, ao
conhecimento do objecto do recurso.»
2. Notificado da decisão, o recorrente veio reclamar para a conferência, ao
abrigo do artigo 78.º-A, n.º 3, da LTC, com os seguintes fundamentos:
«[…] 4º
Ora, em primeiro lugar, cumpre referir que não é verdade o que se afirma na
decisão reclamada, dado que, no que respeita a uma das alegadas
inconstitucionalidades (a do art. 24.° do CP) ela foi expressamente suscitada
pelo recorrente na motivação do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (cfr,
nomeadamente a conclusão XI), e todas elas foram, clara e expressamente,
identificadas no requerimento de aclaração da decisão proferida pelo STJ (é o
que se retira, com facilidade, da leitura — mesmo que superficial — do referido
requerimento de aclaração).
5°
Pelo que, é incompreensível a conclusão do Exm.º Senhor Relator de que o
recorrente “... nem suscitou tais questões no requerimento de aclaração do
Acórdão daquele Supremo Tribunal.. .“
6°
Questão diferente será a de saber se esse seria o momento próprio para o fazer.
7°.
Mas, mesmo que se aceite que o requerimento de aclaração da decisão final não é
já o momento para alegar a inconstitucionalidade de normas aplicadas em tal
decisão, para efeitos de cumprimento do pressuposto processual estatuído no art.
70.° da LTC — invocação durante o processo — certo é que, como se disse, tal
“vício” não abrangia todas as questões de constitucionalidade levantadas pelo
recorrente,
8°
E não poderia ser determinante do não conhecimento do objecto do recurso quanto
às restantes (apenas invocadas naquele requerimento), porquanto se impunha que,
no caso concreto, não fosse exigida a verificação daquele pressuposto.
9°.
É certo que, fazendo-se caso julgado com a prolação de uma decisão final, e
verificando-se o esgotamento do poder jurisdicional do Juiz “a quo “, não será,
em princípio, processualmente adequado que a parte suscite um incidente
pós-decisório em matéria de inconstitucionalidade ou ilegalidade, já que o juiz
do tribunal recorrido não dispõe já de competência para apreciar.
10°
Mas, obviamente, qualquer regra comporta excepções! Excepções essas que têm
vindo a ser reveladas criativa e correctivamente pela jurisprudência deste
Tribunal.
11°
De facto, este tem maleabilizado o rigor interpretativo inicial, recusando um
entendimento estritamente formal do segmento normativo “durante o processo”, em
favor de um sentido ‘funcionalmente adequado” deste importante pressuposto de
admissibilidade do recurso, que condiciona a legitimidade do recorrente.
12°
Ora, uma leitura atenta dos autos não poderá deixa de conduzir à conclusão de
que o recorrente arguiu as referidas inconstitucionalidades atempadamente.
Senão vejamos,
13º
No que concerne à invocada inconstitucionalidade do art. 400.º do CPP, tem que
se admitir que foi a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que eliminou um dos
graus de recurso a que o reclamante tinha direito pela condenação global que lhe
havia sido imposta, superior a oito anos, fazendo uma interpretação do artigo
400.° do CPP, nomeadamente do disposto no seu n.° 1, na sua alínea f),
desconforme com o texto constitucional.
Assim,
14º
Sendo verdade que o recorrente, antes do recurso para este Tribunal, só suscitou
tal questão no requerimento de aclaração do Acórdão do STJ, não é menos exacto
que tal questão não se colocou, nem se podia obviamente colocar, em momento
anterior. Melhor dizendo, em momento em que fosse possível ao recorrente obter
do tribunal “a quo” a “alteração” da sua decisão.
Ou seja,
15º
A questão da inconstitucionalidade do art. 400.°/1/f) do CPP só surge com a
decisão proferida pelo STJ, pelo que não podia ter sido a1eada em momento
anterior.
Com efeito,
16°
O recorrente não podia, razoavelmente, contar com a decisão que veio a ser
proferida pelo Tribunal, nem lhe era exigível que “adivinhasse” a mesma.
De facto,
17º
Não obstante constituir pressuposto processual do recurso de constitucionalidade
interposto nos termos do disposto na alínea b) do art. 70.º da LTC, a arguição
da inconstitucionalidade “durante o processo”, o Tribunal Constitucional tem
considerado que, em casos “excepcionais” e “anómalos”, isso não é exigível.
Nomeadamente, se a aplicação de norma inconstitucional se verifica apenas na
decisão final que já não é susceptível de recurso ordinário, o recurso de
constitucionalidade tem que ser admissível sem verificação daquele pressuposto,
sob pena de se admitirem situações de aplicação de normas inconstitucionais
insindicáveis.
18°
No caso sub júdice, a questão da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente
prende-se unicamente com a decisão tomada “ex-novo” pelo Supremo Tribunal de
Justiça, que lhe postergou as mais elementares garantias de defesa, sem que
fosse possível antecipar que essa será a decisão do tribunal.
Acresce que,
19º
Idêntica situação se verifica no que concerne à alegada inconstitucionalidade do
art. 3.° do CPC, dada a implícita interpretação que dele fez o STJ no aresto
recorrido.
Com efeito,
20°
No requerimento de recurso para o Tribunal Constitucional, salientou o ora
reclamante o efeito surpresa da decisão do STJ relativamente ao não conhecimento
da parte do recurso respeitante ao crime de violação na forma tentada, sem que o
recorrente fosse previamente chamado para poder pronunciar-se sobre a mesma.
21º
Não se tendo, portanto, observado o princípio do contraditório, imposto pelo
art. 3.° CPC, aplicável ao caso por força do art. 40 do Código de Processo
Penal, verificando-se que a interpretação que foi feita destes preceitos legais
acarreta a sua inconstitucionalidade por violação designadamente dos arts. 18.°
20.º. e 32.° da CRP.
22°
Tal questão somente “nasceu” com o aresto do STJ, não sendo possível ao ora
reclamante antecipá-lo por forma a tê-la suscitado em momento anterior.
Acresce ainda que,
23°
Raciocínio idêntico se terá que aplicar no que respeita à invocada
inconstitucionalidade do artigo 50.° n.º 1 do Código Penal, na interpretação que
o Supremo Tribunal de Justiça dele fez. Tal questão só se veio a colocar após o
aresto do STJ.
Aliás,
24°
Aquando do recurso para o Tribunal da Relação do Porto só poderia haver lugar à
suspensão da execução da pena se a pena de prisão aplicada não fosse superior a
3 anos. Ora, atendendo à moldura penal dos crimes pelos quais o
arguido/recorrente foi condenado não lhe era possível “beneficiar” da suspensão
da execução da pena. Pelo que, naturalmente, tal questão apenas foi abordada
nesse recurso na perspectiva da absolvição de algum dos crimes e da aplicação do
regime dos jovens adultos delinquentes.
Com efeito,
25°
Só com a entrada em vigor da lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, que alterou a
redacção do artigo 50.º do CP, alargando o âmbito de aplicação da suspensão da
execução da pena de prisão a crimes em que tenha sido aplicada pena de prisão em
medida não superior a cinco anos, passou a ser possível que o recorrente
beneficiasse de tal medida, quer em termos abstractos quer em face da pena
aplicada pelo Tribunal da Relação.
26°
Desta forma, como é bom de concluir, o recorrente só poderia suscitar esta
questão no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, e assim o fez, em 2 de
Novembro de 2007, explicitamente na conclusão XVIII.
27°
E foi neste aresto que, pela primeira vez no processo, se considerou a aplicação
do disposto no art. 50.° n.º 1 do Código Penal (até então tal era impossível
atendendo à moldura penal dos crimes em causa nos autos).
Ora,
28°
Não era possível, nem exigível, que o recorrente antecipasse a forma como o STJ
iria interpretar e aplicar aquela norma, alegando antecipadamente a
inconstitucionalidade de uma interpretação que nada fazia supor que pudesse
ocorrer. Com efeito, a norma em causa apenas padece de inconstitucionalidade com
o conteúdo que o STJ no Acórdão recorrido lhe deu.
29°
Temos pois, que também neste caso não é possível exigir ao reclamante que
tivesse, em momento anterior à decisão do STJ, invocado tal
inconstitucionalidade.
Por outro lado,
30°
No que se refere à arguição da inconstitucionalidade do art. 24.° n.° 1 do C.
Penal, por violação do princípio “in dubio pro reo”, com consagração
constitucional no art. 32.° n.º 1 e n.° 2 da CRP, a mesma foi invocada durante o
processo.
31°
Esta questão foi claramente invocada na motivação de recurso para o Tribunal da
Relação (cfr, Conclusão XXII) e no recurso para o STJ (cfr, pág. 12 e conclusão
XI).
Com efeito,
32°
E como é evidente, quando o recorrente se referiu conjugadamente ao art. 24.° e
ao princípio “in dubio pro reo “, quis precisamente alegar que a interpretação
dada pelo Tribunal da Relação ao art. 24.° do CP acarretou a sua
inconstitucionalidade, a qual se manterá caso o STJ não perfilhe outra
interpretação. Foi precisamente o que se veio a verificar, o STJ manteve o
entendimento do Tribunal da Relação e, por isso, manteve-se a aplicação de norma
inconstitucional. […]»
3. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional
pronunciou-se nos seguintes termos:
«1°
A presente reclamação é manifestamente improcedente.
2°
Assim, em primeiro lugar, não é exacto que o ora reclamante haja suscitado, em
termos processualmente adequados, na motivação do recurso, a questão de
inconstitucionalidade da norma do artigo 24.° do Código Penal, sendo evidente
que, no local apontado, não se mostra cumprido o ónus de delinear uma verdadeira
questão de inconstitucionalidade normativa em tomo de tal preceito.
3º
Tal como evidentemente não foi suscitada qualquer questão de
inconstitucionalidade em torno do regime de suspensão da pena — sendo, aliás,
evidente que, na sua argumentação, o recorrente se limita a questionar a
concreta valoração, feita pelo Supremo Tribunal de Justiça, face à
especificidade do caso concreto, dos pressupostos de tal suspensão de execução
da pena — o que, além do mais, constitui matéria obviamente desprovida de
natureza normativa.
4º
Finalmente — e atenta a data da interposição do recurso para o Supremo, o quadro
normativo então em vigor e o reiterado entendimento jurisprudencial sobre a
imediata aplicação da lei nova aos recursos interpostos após a sua vigência, não
pode seguramente constituir “decisão-surpresa”, de conteúdo insólito e
imprevisível, a que foi, sobre tal tema, efectivamente proferida pelo Supremo
Tribunal de Justiça — o que significa que, em tais circunstâncias, não estava o
recorrente dispensado do ónus de prevenir a suscitação de tal questão, no âmbito
do recurso que interpôs.»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. No presente recurso pede-se a apreciação da constitucionalidade das seguintes
normas:
i) inconstitucionalidade da norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código
de Processo Penal, quando interpretada no sentido de ser inadmissível o recurso
quanto ao crime de violação na forma tentada, apesar de a pena aplicável ao
conjunto de crimes pelos quais estava acusado e foi condenado ser superior a
oito anos;
ii) inconstitucionalidade das normas dos artigos 127.º e 24.º, n.º 1, do Código
Penal, interpretadas no sentido de ser possível ignorar o teor de um exame
especializado que constituiu, aliás, a única prova para considerar provada a
prática de um crime e de excluir a aplicação desta última norma quando o
Tribunal não consegue apurar as razões que levaram o agente a não consumar a
tentativa;
iii) inconstitucionalidade da norma do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, na
interpretação que o Tribunal fez para decidir não suspender a execução da pena.
A decisão reclamada pronunciou-se no sentido do não conhecimento do objecto do
recurso com o fundamento − comum às três questões − de que o ora reclamante
incumpriu o ónus de suscitação de tais questões, perante o tribunal recorrido.
Esta conclusão é de manter.
Desde logo, porque o reclamante não suscitou as questões de constitucionalidade
no momento processualmente adequado, ou seja, antes da prolação do acórdão
recorrido, assim impossibilitando o tribunal recorrido de sobre elas se
pronunciar.
Nas conclusões da motivação do recurso que interpôs junto do Supremo Tribunal de
Justiça, que, como é sabido, delimitam o objecto do recurso, não há qualquer
referência expressa a tais questões. Contrariamente ao afirmado na reclamação,
na conclusão XI de tal motivação (fls. 1355), o reclamante não questionou
qualquer dimensão normativa do artigo 24.º do Código Penal, pondo-a em confronto
com a Constituição. O que equivale a dizer que não suscitou uma questão de
inconstitucionalidade susceptível de ser apreciada em recurso de fiscalização
concreta.
Além disso, o pedido de aclaração do acórdão daquele Supremo Tribunal já não é o
momento processualmente oportuno para suscitar questões de constitucionalidade,
sendo certo que, no caso, não se verifica qualquer situação excepcional que
pudesse justificar essa suscitação tardia. Pelo contrário, no que respeita,
designadamente, à primeira questão acima referida, como bem salienta o
Ministério Público, «atenta a data da interposição do recurso para o Supremo, o
quadro normativo então em vigor e o reiterado entendimento jurisprudencial sobre
a imediata aplicação da lei nova aos recursos interpostos após a sua vigência,
não pode seguramente constituir “decisão-surpresa”, de conteúdo insólito e
imprevisível, a que foi, sobre tal tema, efectivamente proferida pelo Supremo
Tribunal de Justiça — o que significa que, em tais circunstâncias, não estava o
recorrente dispensado do ónus de prevenir a suscitação de tal questão, no âmbito
do recurso que interpôs».
Por último, e sem prejuízo, sempre se dirá que as segunda e terceira questões −
que, repete-se, o reclamante não suscitou atempadamente no decurso do processo −
não têm natureza normativa e, como tal, não podem ser objecto de recurso de
constitucionalidade. Antes se apresentam, mesmo na formulação utilizada no
requerimento de interposição do recurso, como meras discordâncias com o modo
como o tribunal recorrido aplicou o direito ordinário ao caso concreto.
Termos em que se conclui pela manifesta improcedência da reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, levando-se em conta o benefício de apoio judiciário
documentado a fls. 1484 e s., fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2008
Joaquim de Sousa Ribeiro
Benjamim Rodrigues
Rui Manuel Moura Ramos