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Processo n.º 561/08
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José Borges Soeiro
Acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I − Relatório
1. A., Recorrida nos autos em que figura como Recorrente o Ministério Público,
requereu, junto do Centro Distrital de Segurança Social de Coimbra, concessão de
apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e
demais encargos com o processo. Por decisão de 10 de Agosto de 2007, tal
requerimento foi indeferido por não ter a mesma comprovado a sua insuficiência
económica, nos termos do artigo 8.º, do Anexo I da Lei n.º 34/2004, de 29 de
Julho, e do artigo 3.º, da Portaria 1085-A/2004, de 31 de Agosto, bem como pelo
facto de, notificada para tal, não ter junto quaisquer documentos comprovativos
da situação de desempregada bem como da alegada ausência de rendimentos
relativamente ao ano de 2006.
Notificada do indeferimento, a requerente deduziu impugnação judicial desse acto
junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Coimbra, invocando, nomeadamente, o
seguinte:
“É certo que a ora recorrente não juntou aos autos os documentos solicitados,
nem prestou qualquer esclarecimento à Segurança Social, uma vez que não possuía
a ora recorrente quaisquer dos documentos solicitados e não percebeu que lhe era
solicitado um esclarecimento sobre os dados apurados pela Segurança Social, nem
quais as consequências da falta de tal esclarecimento.
Não foi, nem é possível à ora recorrente juntar cópia da Declaração de
Rendimentos relativa ao ano de 2006, porque lhe foi transmitido pelo seu (ainda)
marido que ficou encarregado de a apresentar, que ainda o não fez, não tendo
ainda entregue tal declaração de IRS.
Esclarece-se que a ora recorrente está separada de facto do seu marido desde
cerca de meados de Dezembro de 2006, ambos fazendo vidas completamente autónomas
e separadas.
Vive por favor em casa emprestada pelos seus sogros, a título precário,
recebendo do pai das crianças a quantia mensal de 200,00 euros a título de
pensão de alimentos devida aos filhos menores de ambos, sem que, no entanto, se
encontre ainda regulado o poder paternal dos mesmos (o processo n° 2877/07 AMF,
que foi também indeferido e do qual também recorrerá, destina-se, precisamente,
a obter apoio judiciário para intentar acção de Regulação do Poder Paternal dos
menores).
Tal quantia de 200,00€ é, actualmente, todo o dinheiro de que a ora recorrente
dispõe mensalmente para prover e fazer face à satisfação das necessidades
básicas e diárias dos seus filhos e de si própria, o que apenas consegue com a
ajuda dos seus pais, sendo certo que não possui quaisquer bens geradores de
rendimentos.
É que a ora requerente não conseguiu ainda encontrar emprego, desde que se viu
forçada a encerrar, de facto, definitivamente a laboração da empresa, em Janeiro
de 2006 sendo certo que há muito já não auferia quaisquer quantias a título de
remuneração de gerência, ou a qualquer outro título.
Pretende ainda a ora recorrente intentar Acção de Divórcio, onde requererá lhe
seja paga pensão de alimentos própria, uma vez que dela necessita absolutamente,
destinando-se o processo n° 2876/07 AMF, que foi também indeferido e do qual
também recorrerá, a obter apoio judiciário para tal fim.
Convirá esclarecer que só agora a ora recorrente com as presentes comunicações
da Segurança Social, descobriu que continua a constar na base de dados desta
como auferindo remuneração enquanto gerente, o que de facto, não corresponde a
verdade há vários anos.
Intrigada, contactou o que julgava ser o ‘antigo’ contabilista da firma, uma vez
que esta já não exerce qualquer actividade há mais de um ano, desde Janeiro de
2006, ficando a saber que o mesmo não tinha conhecimento da acta ora junta e que
continuava a enviar e a cumprir as obrigações de entrega das declarações de IVA
(embora o fizesse a ‘zeros’), bem como a comunicar à Segurança Social as
‘remunerações’ da ora recorrente, embora bem soubesse que esta as não auferia.
De facto, por dever deontológico e profissional e apesar de ter já comunicado à
Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas que iria deixar tal contabilidade, o
contabilista da empresa não deixou de cumprir as suas funções, apesar de não
mais ter tido contacto com a ora recorrente.
Não requereu, por tal razão, a cessação de actividade da empresa, pelo que,
formalmente, a mesma continua em laboração, apesar de, na realidade, tal não
suceder desde Janeiro de 2006.”
2. Por decisão de 18 de Abril de 2008, aquele tribunal recusou a aplicação do
artigo 27.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, na parte em que estatui que é apenas
admissível, para efeito de dedução do pedido de impugnação, prova documental,
com fundamento em inconstitucionalidade, nos seguintes termos:
“A referida norma apenas admite prova documental.
A impugnante A. veio alegar factos que carecem de prova testemunhal.
Além disso acrescem factos que só através deste meio de prova poderá
demonstrá-los.
São estes: vive em casa emprestada pelos sogros; vive com ajuda económica dos
pais para a satisfação das necessidades básicas dos seus filhos menores uma vez
que não tem emprego nem rendimentos para além da prestação mensal de 200€ que
recebe do seu marido de quem está separada de facto desde finais de 2006.
Acontece, porém que a norma que regula este tipo de recurso não admite prova
para além da documental (art. 27°, n°2 da Lei 34/04 de 29/7 que nesta parte não
sofreu alterações com a Lei n° 47/07 de 28/8 de 29/7)
Contudo, afigura-se-nos que tal norma à luz da Constituição da República
Portuguesa poderá ser inconstitucional, em concreto violando o art. 20° da Lei
Fundamental.
Com efeito tem-se entendido que a efectiva garantia de acesso ao direito e aos
Tribunais importa a ‘consagração de um verdadeiro ‘direito de prova’ e ‘a
eliminação de disposições especiais que (...) limitassem o tipo de meios
probatórios admissíveis’.
Não se pretende, como é claro, que o princípio seja interpretado como a
consagração constitucional da livre admissibilidade dos meios de prova. A lei
ordinária consagrava várias limitações ao exercício do direito de defesa no
acesso aos meios probatórios umas de índole material, (como as dos arts. 364° e
393° do Código Civil) e outras adjectivas, com finalidades como a eficácia e
celeridade processuais.
No presente caso a lei determina que ‘recebida a impugnação, esta é distribuída
e imediatamente conclusa ao juiz, que por meio de despacho concisamente
fundamentado, decide’ por conseguinte a produção da prova testemunhal não é
incompatível com tal procedimento.
Apesar de o prazo para tal efeito não ter sido fixado na lei, ele não poderá ser
menor que aquele que está previsto para os processos urgentes, e, também, não se
vê que a eficácia da actuação da administração ou do cidadão saia prejudicada.
Diga-se por fim que, no âmbito do processo tributário, inúmeros processos
urgentes (recurso da decisão do órgão de execução fiscal, arrolamentos e
arresto) comportam prova testemunhal sem qualquer prejuízo para a celeridade
processual.
A oportunidade da admissão deste meio de prova é, no direito tributário,
concretamente ponderada pelo juiz, que poderá dispensar ou não as provas através
de um juízo de prognose sobre a necessidade da mesma.
Por outro lado, ainda sob a motivação de descongestionamento dos tribunais foi
substancialmente reformulado o regime decorrente dos DLs 387/87, de 29/12 e
391/88 de 26/10, através da Lei 30-E/00, de 20/12 e das portarias n°s
1200C/2000, de 20/12 e 1223-A/2000, de 29/12, atribuindo aos serviços de
segurança social a apreciação dos pedidos de concessão de apoio judiciário, mas
manteve sempre a prova da insuficiência económica por qualquer meio idóneo,
também a prova testemunhal, não se olvidando que a mais das vezes esta é a prova
mais adequada e a única para determinados factos que estão em apreciação no
âmbito da necessidade de apoio judiciário.
Não há dúvida que uma tutela efectiva tem de passar também pela consagração
efectiva de um processo equitativo que assegure a igualdade de armas na
tramitação processual, como decorre do n°4 do art. 20° da Lei Fundamental.
Não é, por isso, difícil descortinar que a prova testemunhal nestes processos,
em que está em causa insuficiência ou até ausência de meios económicos para
assegurar a defesa dos seus direitos em tribunal, se apresente como a mais
adequada e até a única capaz de esclarecer alguns dos factos controvertidos.
Desta feita, julgando-se materialmente inconstitucional, à luz do art. 20° da
Constituição, a norma do art. 27, n°2 do 34/04 de 29/7, na parte em que estatui
que: ‘sendo apenas admissível prova documental’, impede o recurso à prova
testemunhal, admito a inquirição da prova arrolada.”
3. Vem então o presente recurso de constitucionalidade interposto pelo
Ministério Público ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do
Tribunal Constitucional, para apreciação da norma contida no artigo 27.º, n.º 2,
da Lei n.º 34/2004, na medida em que, prescrevendo a admissibilidade exclusiva
da prova documental, impede o recurso à prova testemunhal, em face do disposto
no artigo 20.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
Notificado para alegar, o Exmo. Representante do Ministério Público junto deste
Tribunal, veio dizer o seguinte:
“1. Da questão de inconstitucionalidade suscitada.
1. Conforme requerimento de fls. 113, o Ministério Público junto do Tribunal
Administrativo e Fiscal de Coimbra, interpôs recurso, obrigatório, ao abrigo do
artigo 70.º, n° 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional, porquanto o Mm°
Juiz daquele Tribunal, em decisão profenda nos autos, recusou a aplicação da
norma do artigo 27°, n° 2, da Lei n° 34/04, de 29/07, “na parte em que estatui
que ‘sendo apenas admissível prova documental ‘impede o recurso a prova
testemunhal’, já que (é) ‘materialmente inconstitucional, à luz do artigo 20° da
Constituição’.
2. A questão de apreciação de inconstitucionalidade normativa é, assim, a de
saber se o artigo 27°, n° 2, da Lei n° 34/04, de 29/07, ao excluir a prova
testemunhal como meio probatório em sede de impugnação judicial de concessão de
apoio judiciário viola o disposto no artigo 20° da Constituição da República
Portuguesa que define o acesso ao direito e aos tribunais como um direito
fundamental.
II. Da decisão sub-judice.
1. A interessada A. requereu à Segurança Social a concessão de apoio judiciário.
Pedido esse que foi indeferido.
2. Suscitou então no Tribunal competente a pertinente impugnação judicial,
apresentando ‘prova testemunhal’ para prova dos factos por si alegados na dita
impugnação.
3. O Mm° Juiz a quo entende que há factos alegados que ‘carecem de prova
testemunhal’, sendo certo que a Lei não admite um tal meio de prova.
4. O Mm° Juiz é do entendimento de que ‘a efectiva garantia de acesso ao direito
e aos tribunais importa quer a ‘consagração’ de um verdadeiro ‘direito de prova’
quer a ‘eliminação de disposições especiais que limitassem o tipo de meios
probatórios admissíveis’ (citando Lopes do Rego, “Comentários do Código de
Processo Civil, pág. 15).
Por outro lado adita um argumento sobre a não incompatibilidade de um tal meio
de prova no procedimento sub-judice, para além de não ver que a eficácia da
actuação da administração ou do cidadão seja prejudicada.
Invoca outros procedimentos (processo tributário) urgentes que comportam prova
testemunhal sem prejuízo para a celeridade processual.
Ainda no seu entendimento, tal meio de prova, no caso, é o ‘adequado’ ou ‘único’
para o esclarecimento de factos controvertidos.
Finalmente refere que “uma tutela efectiva tem de passar também pela consagração
efectiva de um processo equitativo que assegure a igualdade de armas na
tramitação processual”.
III. Do Regime Jurídico do Acesso ao Direito e aos Tribunais.
1. De acordo com o artigo 1.º da Lei n° 34/2004, de 29 de Julho ‘O sistema de
acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a ninguém seja
dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por
insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos
seus direitos’.
2. Tal sistema decorre do direito fundamental previsto no artigo 20.º na
Constituição da República Portuguesa, consagrando, no dizer de Gomes Canotilho e
Vital Moreira ‘Um direito fundamental independentemente da sua recondução a
direito, liberdade e garantia ou a direito análogo aos direitos, liberdades e
garantias’.
3. Logo, e tendo presente o disposto no artigo 18°, da Constituição da República
Portuguesa, a intermediação legislativa que concretize juridicamente um tal
direito terá de, cuidadosamente, evitar atingir a essencialidade do direito por
soluções arbitrárias ou soluções ‘gravosas’.
4. A secção IV, da Lei n° 34/2004, de 29 de Julho, dispõe sobre o procedimento,
isto é, quanto à tramitação do pedido em fase administrativa — junto da
Segurança Social — (artigos 19° a 26°) e quanto à tramitação da impugnação
judicial (artigo 27° e seguintes).
5. Do excurso pelas soluções legislativas procedimentais conclui-se que o
legislador pretendeu consolidar uma tramitação rápida e simples.
Com efeito, é o próprio interessado que pode intentar a impugnação, mesmo sem
auxílio de advogado (27/01) e o requerimento não necessita de ser articulado
(27/02). Já na fase da apreciação e decisão judicial as soluções precipitadas na
lei são estas: a impugnação é imediatamente conclusa ao juiz (18/04); só aprecia
prova documental (27/02); profere despacho concisamente fundamentado (28/04); a
decisão é irrecorrível (28/05).
6. Se se compreendem (certas) soluções propiciadoras de uma decisão rápida, há,
todavia que atentar que este é um procedimento que se esgota — nos termos da lei
— na decisão judicial de 1.ª Instância, porquanto essa decisão é irrecorrível, o
que deverá colocar graus de exigência suplementar quanto à adequada tramitação
processual que a antecede!
7. Por outro lado, sendo certo não estar o procedimento qualificado
expressamente como ‘urgente’, dúvidas não há sobre a agilização que se pretendeu
imprimir àquele por forma a obter, em prazo curto, uma decisão final. Veja-se,
nesse sentido o prazo de 30 dias para decisão administrativa (25/01); o prazo
ser contínuo (25/01) e a tramitação em férias judiciais (25/01). Porém, estas
soluções convivem a par de outras menos ‘céleres’ — pouco comuns em processos
urgentes — como os prazos de 15 dias para impugnar a decisão administrativa
(27/01) e de 10 dias para uma decisão/envio pela Segurança Social (27/03).
Diríamos assim que estamos presente um procedimento que se pretende célere, sem
todavia se poder qualificar como urgente!
IV. Da apreciação da solução normativa que exclui a ‘prova testemunhal’.
1. Vimos já — e é essa a questão de fundo — que a norma veda a produção de prova
testemunhal nos procedimentos (maxime na fase da impugnação judicial) de acesso
ao direito.
2. Ora, perante a exigência de prova de factos alegados para verificação de
‘insuficiência de meios económicos’, e de acordo com a necessidade de recurso a
meio probatório adequado em função da natureza do facto alegado, aquela
restrição é, ou não, proporcionada em função das formalidades que se pretendem
atingir (concessão do patrocínio judiciário) e em função da natureza do
procedimento? Isto é, tendo por um lado, um direito fundamental, e, tendo, por
outro lado, um procedimento que, pretendendo-se rápido, não é ‘urgente,
justificar-se-á uma tal ‘exclusão’ do meio probatório testemunhal?
3. Afigura-se-nos que não! Com efeito, há manifestamente factos — relevantes -
para prova dos quais não é possível produzir um documento (como se prova uma
separação de facto? Como se prova o viver em casa emprestada pelos pais? Como se
prova a ‘ajuda dos pais’?). Considerando que esses factos serão essenciais para
prova da situação alegada, não é proporcional nem adequada uma tal restrição,
coarctando ao juiz a possibilidade de atender a outros meios de prova,
indispensáveis, disciplinando embora o seu uso e os timings para obtenção de uma
decisão em tempo oportuno.
V. Identidade de casos pendentes neste Tribunal
O Ministério Público teve já oportunidade de, em três processos em curso neste
Tribunal (Processo n° 559/08, Processo n° 589/08 e Processo n° 588/08), se
pronunciar sobre a mesma questão, suscitada, aliás, pelo mesmo juiz no âmbito da
mesma matéria, e invocando-se, nomeadamente a jurisprudência deste Tribunal
plasmada no Acórdão n° 157/2008 no tocante à relevância constitucional do
‘direito à prova’, ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais,
propugnando, assim, por um julgamento de inconstitucionalidade da norma em
apreço,
V. Conclusão
Nesta conformidade e face ao exposto, conclui-se:
1. A norma constante do n° 2 do artigo 27° da Lei n° 34/04, de 29/07, na parte
em que estabeleceu uma limitação absoluta à prova documental a apresentar pelo
interessado que pretende impugnar o indeferimento pela Segurança Social do apoio
judiciário, independentemente da natureza dos factos controvertidos e das
efectivas possibilidades probatórias do requerente, envolve restrição ou
limitação substancial ao conteúdo do direito de acesso aos tribunais, consagrado
no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa.
2. Termos em que deverá confirmar-se o juízo de inconstitucionalidade formulado
na decisão recorrida.
Não houve contra-alegações.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Na situação em apreço está em causa a recusa da aplicação do n.º 2 do artigo
27.º da Lei n.º 34/04 de 29 de Julho, na parte em que estatui que “sendo apenas
admissível prova documental”, impede o recurso a prova testemunhal. Ora tal
dimensão normativa não viola qualquer preceito constitucional, já que da
Constituição da República, não resulta a obrigatoriedade de consagração da
admissibilidade da prova testemunhal, nomeadamente quando se reporta a situações
do tipo referido, em que a requerente prescindiu da junção aos autos dos meios
de prova necessários. Situações essas que aliás, já foram analisadas no Acórdão
n.º 530/2008 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) que se transcreve:
“Através da decisão ora recorrida, o Tribunal Administrativo e Fiscal de
Coimbra, no âmbito de uma impugnação judicial da decisão dos serviços de
segurança social que indeferiu à requerente o pedido de apoio judiciário,
recusou a aplicação da norma constante do n.º 2 do artigo 27º da Lei n.º
34/2004, de 29 de Julho, na parte em que torna apenas admissível a prova
documental, considerando a referida norma inconstitucional por violação do
direito de acesso a justiça e à tutela jurisdicional consagrado no artigo 20º da
Constituição da República.
De acordo com a factualidade que decorre dos elementos dos autos, a impugnante
apresentou, em 12 de Julho e 17 de Setembro de 2007, vários pedidos de protecção
jurídica em vista à propositura de acção de divórcio e de regulação de poder
paternal e à dedução de oposição em acções executivas, tendo declarado
encontrar-se desempregada, não possuir quaisquer rendimentos e viver em economia
comum com os seus dois filhos menores que constituem o agregado familiar, sem
juntar qualquer documentação comprovativa.
Os serviços de segurança social realizaram oficiosamente diligências
instrutórias, mediante a consulta de bases de dados, concluindo existirem
registos salariais relativos à actividade profissional da impugnante na
qualidade de sócia gerente de uma firma, pelo que, em sede de audiência de
interessado, e para efeito de «se comprovarem devidamente os rendimentos actuais
do [seu] agregado familiar», notificaram a requerente, nos termos do artigo 3º,
n.º 1, da Portaria n.º 1085-Q/2004, de 31 de Agosto, para vir juntar ao processo
cópias da declaração de IRS relativa ao ano de 2006, do pacto social da firma
«Centro de Malhas Algodão, Lda», da acta de renúncia à gerência ou da sua
destituição ou prova de que deixou de ser gerente remunerada da firma, e
documento emitido pelos Serviço de Finanças que comprove a eventual cessação da
actividade da firma.
Não tendo a requerente juntado os documentos solicitados nem apresentado
qualquer esclarecimento sobre a sua situação económica, os serviços de segurança
social indeferiram o pedido de apoio judiciário, por considerar que não foram
«avaliados os rendimentos anuais líquidos do [seu] agregado familiar e, do,
mesmo modo, não se comprovou a [sua] insuficiência económica».
A requerente deduziu então impugnação judicial contra o despacho de
indeferimento, alegando que se encontra separada de facto desde Dezembro de
2006, vive por tolerância e a título precário em casa cedida pelos sogros,
aufere apenas a quantia de € 200 a título de alimentos devidos aos filhos
menores, encontra-se desempregada desde que a empresa cessou a sua laboração e
desde há muito que já não recebia as remunerações de gerência.
Requereu para o efeito a produção de prova testemunhal, que o juiz veio a
admitir, pela decisão ora recorrida.
O tribunal recorrido efectuou entretanto diversas diligências complementares em
vista a apurar a situação actual da empresa «Centro de Malhas Algodão, Lda»,
tendo sido informado pelo serviço de finanças que não foi comunicada até ao
momento a cessação de actividade, ainda que não existam indícios de que a
empresa se mantenha em laboração.
3. Os requerimentos de apoio judiciário deram entrada em Julho e Setembro de
2007, pelo que o regime aplicável é o da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, na sua
redacção originária, ainda que entretanto, e já na pendência da impugnação
judicial, tenha entrado em vigor a Lei n.º 47/2007, de 28 de Agosto, que
introduziu diversas alterações ao regime jurídico do acesso ao direito e aos
tribunais.
O sistema de acesso ao direito e aos tribunais destina-se a assegurar que a
ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou
cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício
ou a defesa dos seus direitos (artigo 1º, n.º 1).
Conforme ainda o disposto no artigo 8º, n.º 1, encontra-se em situação de
insuficiência económica aquele que, tendo em conta factores de natureza
económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas
para suportar pontualmente os custos de um processo.
A prova e a apreciação da insuficiência económica é feita de acordo com os
critérios estabelecidos no anexo à Lei, tomando por base o rendimento relevante
para efeitos de protecção jurídica, calculado nos termos definidos pela Portaria
n.º 1085-B/2004, de 31 de Agosto (entretanto revogada pela Portaria n.º 11/2008,
de 3 de Janeiro).
A Lei regula ainda o procedimento de protecção jurídica, que decorre perante os
serviços de segurança social da área da residência ou sede do requerente,
prevendo que a decisão de indeferimento possa ser objecto de impugnação judicial
nos termos dos artigos 27º e 28º.
É este artigo 27º que está agora particularmente em causa, ao dispôr:
1 - A impugnação judicial pode ser intentada directamente pelo interessado, não
carecendo de constituição de advogado, e deve ser entregue no serviço de
segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica ou no conselho
distrital da Ordem dos Advogados que negou nomeação de patrono, no prazo de 15
dias após o conhecimento da decisão.
2 - O pedido de impugnação deve ser escrito, mas não carece de ser articulado,
sendo apenas admissível prova documental, cuja obtenção pode ser requerida
através do tribunal.
3 - Recebida a impugnação, o serviço de segurança social ou o conselho distrital
da Ordem dos Advogados dispõe de 10 dias para revogar a decisão sobre o pedido
de protecção jurídica ou, mantendo-a, enviar aquela e cópia autenticada do
processo administrativo ao tribunal competente.
Em consonância com o assim estabelecido, o subsequente artigo 28.º, no seu n.º
4, determina que «[r]ecebida a impugnação, esta é distribuída, quando for caso
disso, e imediatamente conclusa ao juiz, que, por meio de despacho concisamente
fundamentado, decide, concedendo ou recusando o provimento, por extemporaneidade
ou manifesta inviabilidade.
4. Conforme tem sido afirmado em diversas ocasiões pelo Tribunal Constitucional,
o direito à tutela jurisdicional efectiva para defesa dos direitos e interesses
legalmente protegidos dos cidadãos, genericamente proclamado no artigo 20.º, n.º
1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), implica «um direito a uma
solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com
observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando‑se,
designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em
termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de
direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e
discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» (acórdão n.º 86/1988,
reiterado em jurisprudência posterior e, por último, no acórdão n.º 157/2008).
No entanto, como tem sido também sublinhado, o direito à prova não implica a
total postergação de determinadas limitações legais aos meios de prova
utilizáveis, desde que essas limitações se mostrem materialmente justificadas e
respeitadoras do princípio da proporcionalidade. Dentro desta linha de
entendimento, o Tribunal Constitucional não se pronunciou no sentido da
inconstitucionalidade no tocante a diversas disposições legais que em relação a
certos procedimentos jurisdicionalizados apenas admitem um específico tipo de
prova (assim, os acórdãos n.ºs 395/89, 209/95, 452/2003; uma recensão da
jurisprudência constitucional, com sucinta referência à argumentação em cada
caso aduzida, no já citado acórdão nº 157/2008).
Acresce – como esclarece Teixeira de Sousa - que as próprias normas de direito
probatório constantes do Código Civil ou do Código de Processo Civil estabelecem
certas limitações quanto aos meios de prova permitidos em direito, em qualquer
tipo de processo e relativamente a qualquer objecto do litígio, e mesmo certas
limitações quantitativas na produção de determinados meios de prova, sem que a
sua constitucionalidade algo vez tenha sido posta em causa - assim, por exemplo,
os artigos 353º e 354º do Código Civil, sobre a eficácia e admissibilidade da
declaração confessória, os artigos 393.º e 394.º do mesmo Código sobre a
admissibilidade da prova testemunhal, e, bem assim, os artigos 632º e 633º do
Código de Processo Civil sobre o limite de número de testemunhas a arrolar pela
parte e que podem ser inquiridas por cada facto (As partes, o objecto e a prova
na acção declarativa, Lisboa, 1995, pág. 228).
A questão essencial que se coloca – tal como se expendeu no acórdão nº 646/2006,
que também abordou esta temática - é, pois, a de saber se, na emissão de uma
norma restritiva do uso dos meios de prova, o legislador respeitou,
proporcionada e racionalmente, o direito de acesso à justiça na sua vertente de
direito de o interessado produzir a demonstração dos factos que, na sua óptica,
suportam o «direito» ou o «interesse» que visa defender pelo recurso aos
tribunais. Uma resposta negativa a essa questão apenas pode perspectivar-se,
neste contexto, quando se possa concluir que a norma em causa determina, para a
generalidade de situações, que o interessado se veja constrito à impossibilidade
de uma real defesa dos seus direitos ou interesses em conflito.
5. Revertendo ao caso concreto, não pode deixar de reconhecer-se que o regime
legal decorrente da mencionada norma do artigo 27º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004,
ao circunscrever a prova a produzir apenas à de natureza documental, é, em
regra, susceptível de garantir ao interessado a demonstração da sua situação de
insuficiência económica, visto que as declarações de rendimentos a entregar
perante o serviço de finanças, bem como as declarações contributivas para efeito
de aplicação do regime de segurança social, que apresentam sempre um suporte
documental, fornecerão normalmente uma indicação suficientemente precisa quer
quanto à situação laboral do requerente do apoio judiciário, quer quanto ao
nível dos respectivos proventos económicos.
Deve notar-se, a este propósito, que a opção legislativa tem certamente por base
a consideração de que os meios de prova documentais são os que se apresentam
como possuindo maior eficácia e fiabilidade de que quaisquer outros e que são
também os que melhor se compadecem com a natureza instrumental do processo, que
tem unicamente em vista assegurar, com a necessária celeridade, que o requerente
possa obter a protecção jurídica para efeito de defender os seus direitos e
interesses em acção judicial. E importa igualmente reter duas outras
circunstâncias: por um lado, os documentos exigíveis encontram-se ao dispor dos
interessados, por respeitarem a declarações pessoais que decorrem do cumprimento
de deveres fiscais e contributivos, podendo ser obtidos, por isso, sem grande
dificuldade, por outro lado - como decorre do contexto verbal do citado artigo
27º -, o pedido de impugnação judicial pode ser formulado directamente pelo
interessado, não exigindo a constituição de advogado, nem carecendo de ser
articulado, podendo o impugnante limitar-se a requerer ao tribunal a obtenção da
prova documental adequada (cfr. nºs 1 e 2 dessa disposição).
Ou seja, embora a lei imponha a utilização de um certo meio de prova, não faz
incidir sobre o impugnante o ónus processual de apresentar essa prova – ao
contrário do que sucede no regime geral que decorre do Código de Processo Civil
(cfr. artigos 523º e 524º) -, impondo antes ao tribunal um dever oficioso de a
realizar, desde que o interessado indique quais os elementos documentais que
considera demonstrativos da sua situação de insuficiência económica.
Sem dúvida que se não encontra excluída a possibilidade de, em certas situações,
a prova documental não permitir efectuar a demonstração dos factos em que
assenta o pedido impugnatório. Poderá ser o caso em que tenha ocorrido a perda
ou diminuição dos meios de fortuna do interessado que se não encontre ainda
patenteada nas declarações tributárias, que apenas se referem aos anos fiscais
transactos; ou que tenha havido despesas que devam ser ponderadas para efeito da
apreciação do pedido de apoio judiciário e que não sejam susceptíveis de prova
documental.
Será necessário avaliar, em qualquer dessas hipóteses, se o regime probatório
restritivo do artigo 27º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004 – excluindo, à partida e em
todos os casos, a prova testemunhal – não poderá afectar de forma intolerável o
exercício do direito de acesso aos tribunais.
Mas não é seguramente esse o caso dos autos.
O que se constata, na situação vertente, é que a requerente do apoio judiciário
não juntou, com o requerimento inicial, qualquer documentação atinente à sua
situação económica, e absteve-se de satisfazer a notificação feita, na fase de
audiência do interessado, no sentido de apresentar documentos que fossem
suscepíveis de esclarecer qual o montante de rendimentos que poderia auferir,
tais como a declaração de IRS, o pacto social da firma de que era gerente, a
acta de renúncia ou destituição da gerência, o documento de comunicação de
cessação da actividade da firma (todos eles especificamente identificados no
ofício de notificação).
Por outro lado, no pedido de impugnação judicial, a requerente alegou certos
factos indiciários da sua insuficiência económica – encontra-se separada de
facto desde Dezembro de 2006, vive por tolerância e a título precário em casa
cedida pelos sogros, aufere apenas a quantia de € 200 a título de alimentos
devidos aos filhos menores, encontra-se desempregada desde que a empresa cessou
a sua laboração e desde há muito que já não recebia as remunerações de gerência
-, mas absteve-se de apresentar ou requerer a obtenção de prova documental,
limitando-se a solicitar a inquirição de testemunhas.
Ou seja, a impugnante prescindiu, na fase procedimental, de demonstrar
documentalmente a sua situação de desemprego e de carência de rendimentos, e
pretende agora através do pedido de impugnação judicial efectuar a prova
substitutiva mediante a comprovação, por inquirição de testemunhas, de factos
indiciários da insuficiência económica quando essa demonstração poderia ser
feita desde logo por via documental e estava ainda em tempo de ser efectuada por
esse meio na fase de impugnação judicial.
Não restam dúvidas de que estaria ao alcance da impugnante preencher e
apresentar no competente serviço fiscal a declaração de rendimentos relativa ao
ano de 2006, bem como a declaração de cessação de actividade da empresa, tal
como poderia obter através do serviço de segurança social próprio o documento
comprovativo da sua situação de desempregada. Podendo demonstrar-se a
insuficiência económica através de prova documental – que a requerente poderia
ter obtido facilmente através do cumprimento de qualquer dessas formalidades -,
e tendo até sido dada oportunidade, na fase procedimental, de satisfazer essas
exigências probatórias, não é possível afirmar – como faz a sentença recorrida –
que a prova testemunhal era a mais adequada e até única capaz de esclarecer os
factos controvertidos. Na verdade, a impugnante não pretende mais do que fazer a
prova, através da inquirição de testemunhas, de factos instrumentais que
indiciariamente permitam ao juiz concluir, através de presunção judicial, pela
existência de uma situação de insuficiência económica – facto essencial de que
depende a procedência da pretensão deduzida em juízo -, quando a esse mesmo
resultado probatório poderia ser obtido, desde logo, por via de elementos
documentais que evidenciariam directamente essa situação de carência económica.
Não é possível, por conseguinte, extrair a ilação – tal como se concluiu, em
situação algo similar, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 395/89 – de que
a exigência de prova documental como único meio de prova admissível no âmbito da
impugnação judicial do indeferimento do pedido de protecção jurídica é
susceptível de pôr em causa o direito de acesso aos tribunais e à tutela
jurisdicional efectiva.
Estamos, em todo o caso, perante uma situação muito díspar daquela que foi
analisada no acórdão n.º 157/2008, que julgou inconstitucional, por violação do
direito à tutela jurisdicional efectiva e do princípio da proporcionalidade, a
norma constante do n.º 2.º, n.º 1, da Portaria n.º 52/91, de 18 de Janeiro,
interpretada no sentido de restringir aos de natureza documental os meios de
prova utilizáveis para o reconhecimento dos períodos contributivos para a
segurança social verificados nos ex-territórios ultramarinos; o Tribunal
chegou a esse juízo de inconstitucionalidade, por ter constatado, no caso, uma
absoluta indisponibilidade de meios de prova documentais, por virtude da
extinção da instituição de previdência para a qual o interessado terá efectuado
contribuições e do subsequente desaparecimento dos correspondentes arquivos,
vindo a concluir, em conformidade, que a exclusão total e abstracta da
admissibilidade de meios de prova não documental era susceptível de afectar
desproporcionadamente a efectividade da tutela jurisdicional de um direito
constitucionalmente consagrado – o de ver relevar, para o cálculo das pensões de
velhice e invalidez, todo o tempo de trabalho, independentemente do sector de
actividade em que tiver sido prestado (artigo 63.º, n.º 4, da CRP).
Tais premissas não são de todo transponíveis para o caso dos autos, nada
justificando, por tudo o que anteriormente se expôs, a manutenção do julgado.”
Assim, não se julga inconstitucional a norma cuja aplicação foi recusada.
III – Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se:
Conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, devendo ser
reformada de acordo com o juízo de não inconstitucionalidade agora formulado.
Sem custas.
Lisboa, 10 de Dezembro de 2008
José Borges Soeiro
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
Rui Manuel Moura Ramos