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Processo n.º 854/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78.º-A da
LTC:
“1. A., interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do
acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, em 14 de Março de 2007, no
Processo n.º 4118/06-4ª Sec., em que se decidiu que não havia que proceder ao
desconto, na duração da medida tutelar de internamento que, a final, lhe foi
aplicada, no Processo Tutelar Educativo n.º 468/06.1TMPRT, do 2º Juízo do
Tribunal de Menores e Família do Porto, do tempo da duração da medida cautelar
de guarda em centro educativo, em regime aberto, nos termos do artigo 56.º, da
LTE (Lei Tutelar Educativa), em oposição ao acórdão (fundamento) da Relação de
Lisboa, de 4.11.2004, da 9ª Sec. do Tribunal da Relação do Porto, exarado no
Processo n.º 6359/2004-9, onde se decidiu que na duração da medida de
internamento se devia imputar, descontando, o tempo de guarda em centro
educativo sofrido pelo menor.
Por acórdão de 8 de Outubro de 2008, o Pleno das Secções Criminais do Supremo
Tribunal de Justiça confirmou o acórdão recorrido, fixando a seguinte
jurisprudência:
“Não há lugar, em processo tutelar educativo, ao desconto do tempo de
permanência do menor em centro educativo, quando, sujeito a tal medida cautelar,
vem, posteriormente, a ser-lhe aplicada a medida tutelar de internamento.”
2. O recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC),
pretendendo “ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação das normas
consignadas nos artigos 2.º, 7.º, 56.º, 57.º, 129.º e 165.º da Lei Tutelar
Educativa, no artigo 80.º do Código Penal e no artigo 4.º do Código Civil, pela
forma como foram interpretadas, de forma ilegal e inconstitucional, e aplicadas
na decisão recorrida”.
3. Apesar de admitido (cfr. n.º 3 do artigo 76.º da LTC), o recurso não pode
prosseguir.
Com efeito, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC só
pode ser interposto pela parte que tenha suscitado a questão de
constitucionalidade, de modo processualmente adequado, perante o tribunal que
proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer
(n.º 2 do artigo 72.º da LTC).
E, uma vez que o recurso das decisões dos demais tribunais para o Tribunal
Constitucional, no sistema que a Constituição estabeleceu (artigo 280.º) e a Lei
do Tribunal Constitucional desenvolveu (artigo 70.º), só pode ter por objecto
normas (e não decisões do poder público de outra natureza, designadamente
decisões judiciais em si mesmo consideradas), para que esse ónus se considere
adequadamente cumprido, o recorrente tem de colocar a questão de
constitucionalidade ao tribunal de que pretende recorrer com a mesma natureza
com que ela pode, posteriormente, vir a ser objecto de recurso de fiscalização
concreta: como questão de constitucionalidade normativa. Dito de outro modo, o
interessado só cumpre o ónus a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º
da LTC se, no recurso para o tribunal de cuja decisão posteriormente vem a
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, tiver imputado a
inconstitucionalidade a uma determinada norma, assim convocando esse tribunal a
recusar-lhe aplicação, ao abrigo do artigo 204.º da Constituição. Não cumpre tal
ónus quando imputa a violação de normas ou princípios constitucionais à decisão
judicial que então submete a revisão.
Ora, nas alegações que apresentou ao abrigo do artigo 442.º do Código de
Processo Penal, no que à questão de constitucionalidade pode respeitar, o
recorrente limitou-se a dizer o seguinte:
“O Tribunal a quo ao decidir de forma diversa da atrás propugnada violou, por
manifesto erro de interpretação, o disposto nos artºs. 18.º e 27.º da
Constituição da República Portuguesa, 2.º, 7.º, 56.º,,57.º, 129.º e 185.º da Lei
Tutelar Educativa , 80.º do Código Penal e 4.º do Código Civil.”
Com esta afirmação (reproduzida na conclusão 7), o recorrente limita-se a
censurar a decisão do Tribunal da Relação, imputando-lhe a violação, por si
mesma, quer de preceitos constitucionais, quer de direito ordinário. Vale por
dizer que, como apresentou a questão no recurso extraordinário para fixação de
jurisprudência, a violação de normas constitucionais é obra dos juízes de cuja
decisão estava então a recorrer, não do legislador. Tal afirmação não colocou o
Supremo Tribunal de Justiça perante a pretensão de que, como passo necessário da
decisão a proferir, afastasse por inconstitucional, uma norma, ainda que
entendida como sentido normativo extraído de um determinado bloco legal mas, tão
somente, que interpretasse a lei de modo diverso daquele que a Relação adoptou.
Consequentemente, por não ter sido cumprido pelo recorrente o ónus de suscitação
da questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado – como
questão de constitucionalidade normativa, em termos de o Supremo Tribunal de
Justiça estar obrigado a dela conhecer –, o recurso de constitucionalidade não
pode prosseguir.
3. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar
o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 7 (sete) Ucs.”
2. O recorrente reclama desta decisão alegando, em síntese, que a questão de
constitucionalidade foi suscitada nos diversos requerimentos nas instâncias de
recurso, de forma clara, perceptível, coerente e minuciosa, tanto que foi
apreciada no Supremo Tribunal de Justiça, tendo a inconstitucionalidade do
acórdão de fixação de jurisprudência sido reconhecida nos votos de vencido a ele
apostos, pelo que sempre a hipotética falta de suscitação da questão deveria
considerar-se sanada.
O Ministério Público sustentou a improcedência da reclamação nos termos
seguintes:
“(…)
2º
Na verdade – e ao contrário do que parece supor o reclamante – a circunstância
de, em voto de vencido (que não integra o teor a decisão recorrida e respectiva
(fundamentação) serem tecidas considerações sobre certa questão de
constitucionalidade – não dispensa o recorrente do ónus de suscitar, em termos
processualmente adequados, a questão de inconstitucionalidade normativa a que
pretendia reportar o recurso.
3º
Não tendo cumprido adequadamente tal ónus, não pode o recorrente ser considerado
“parte vencida” na dita questão, carecendo, em consequência, de legitimidade
para interpor recurso de fiscalização concreta, estribado na alínea b) do n.º 1
do artigo 79.º, da Lei n.º 28/82.”
3. A reclamação assenta em dois argumentos: (i) a questão de
constitucionalidade foi suscitada no tempo e modo processualmente adequados;
(ii) ainda que o não tivesse sido, tal omissão estaria sanada, uma vez que o
Supremo Tribunal de Justiça tomou conhecimento efectivo da questão objecto do
recurso.
Nenhum destes fundamentos procede.
Quanto ao primeiro, o recorrente nada mais de concreto encontrou para pôr em
destaque (cfr. n.º 15 da reclamação) do que o excerto das alegações no recurso
perante o Supremo Tribunal de Justiça que a própria “decisão sumária”
evidenciara para afirmar a sua insuficiência para o fim em vista. Ora, pelas
razões elencadas nessa decisão e que o Tribunal reafirma, não se considera
suscitada nas alegações, de modo processualmente adequado, uma questão de
inconstitucionalidade normativa.
Efectivamente, a violação de preceitos constitucionais é imputada directamente
ao acórdão recorrido. E não se trata de um mero deslize verbal, que pudesse
esbater-se no contexto da peça processual, porque não há nesta um mínimo de
substanciação especificamente dirigida a demonstrar que a opção interpretativa
que se queria ver arredada pelo Supremo Tribunal de Justiça, suposto que fosse
havida como a solução normativa imputável ao legislador, violava os preceitos
constitucionais aí conjuntamente mencionados como disposição de direito
infra-constitucional. Para que uma questão desta natureza se considere suscitada
em termos de satisfazer este pressuposto não basta a referência a que um
preceito legal ou determinada interpretação dele viola a Constituição. É
necessário um módico de argumentação dirigida a colocar o juiz perante a
necessidade de apreciar tal questão sob pena de incorrer em omissão de
pronúncia, porque não é exigível que os tribunais decidam questões
(designadamente questões de constitucionalidade) sem que as partes lhes indiquem
as razões porque entendem que elas devem ser decididas num sentido e não noutro
(Esta tem sido a jurisprudência do Tribunal, não divergindo dos acórdãos que o
reclamante cita. A referência nestes a que o recorrente teria, ao menos, que
indicar a norma ou princípio constitucional infringido é argumento que releva na
situação nesses acórdãos examinada, não significando a contrario que essa
indicação tivesse sido julgada suficiente).
Quanto ao segundo fundamento da reclamação, começa por dizer-se que
não é exacto que o Acórdão recorrido tenha apreciado a questão de
constitucionalidade que agora se quer erigir em objecto do recurso de
constitucionalidade. À questão de constitucionalidade da interpretação normativa
que prevaleceu fazem referência os votos de vencido, mas ela não é, enquanto
tal, objecto de ponderação no discurso fundamentador da decisão da maioria que
fez vencimento.
De todo o modo, o certo é que o legislador exige, como condição de
legitimação para o recurso de constitucionalidade, que o interessado tenha
suscitado a questão de constitucionalidade de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar
obrigada a dela conhecer (artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e 72.º, n.º 2 da LTC).
Exigência que está em conformidade com o estipulado na alínea b) do n.º 1 do
artigo 280.º da Constituição e com a natureza impugnatória (recurso) da via de
acesso ao Tribunal Constitucional em fiscalização concreta. Se a decisão
recorrida tiver apreciado a questão, tal circunstância pode, num entendimento
funcional do referido ónus, tomar-se como um elemento revelador de que, afinal,
os termos duvidosos em que o interessado colocou a questão ainda foram idóneos
para convocar o tribunal a apreciá-la, mas não dispensam de um mínimo de
argumentação susceptível de autonomizá-la no plano da constitucionalidade
normativa. No caso, como vimos, não sucedeu uma coisa nem outra.
Assim, como diz o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, não tendo cumprido
adequadamente tal ónus, não pode o recorrente ser considerado “parte vencida” na
dita questão, pelo que não pode conhecer-se do objecto do recurso.
4. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o
reclamante nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Lisboa, 18 de Dezembro de 2008
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão