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Processo nº 891/08
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal Central de Instrução Criminal, em que
é recorrente A. e são recorridos o Ministério Público, B. e C., foi interposto
recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional
(LTC), do despacho daquele Tribunal de 14 de Outubro de 2008.
2. Em 10 de Dezembro de 2008 foi proferida decisão de não conhecimento do
objecto do recurso interposto. Para o que agora releva, com o seguinte
fundamento:
«Requer-se, ainda, a apreciação de outras normas – reportadas aos artigos 287º,
nº 3, alínea f), 188º, nº 3, 188º, nº 3, e 283º, nº 3, alínea f), e 126º, nº 3,
e 188º, nº 1 do Código de Processo Penal –, que, segundo o recorrente, foram
efectivamente aplicadas pelo juiz de instrução no despacho que o pronunciou
pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
Sucede, porém, que “o recurso previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC
só cabe de decisões finais adoptadas na ordem jurisdicional onde corre o
processo e que o despacho de pronúncia em questão, proferido nos termos do n.º 1
do artigo 310º do Código de Processo Penal, não constitui uma decisão final para
efeito de poder ser interposto recurso de inconstitucionalidade” (Acórdão do
Tribunal Constitucional nº 387/2008, disponível em
www.tribunalconstitucional.pt, para cuja fundamentação remetemos). Tal
circunstância obsta ao conhecimento do objecto do recurso e justifica, também
nesta parte, a prolação de decisão sumária (artigo 78º-A, nº 1, da LTC)».
3. O recorrente vem agora reclamar desta parte da decisão sumária, nos termos e
com os fundamentos seguintes:
«Em prol da sua decisão, a Meritíssima Juiz Conselheira Relatora invoca o
Acórdão do Tribunal Constitucional n.° 387/2008, para cuja fundamentação remete
e a cuja tese expressamente adere.
Em caso muito semelhante ao que ora é submetido à apreciação de V. Exas.,
decidiu-se então, naquele Aresto, rejeitar um recurso, por inutilidade,
interposto de uma decisão negativa de inconstitucionalidade proferida no âmbito
de um Despacho de Pronúncia.
Argumentou-se aí que “a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos
factos constantes da acusação do Ministério Público, não produz, ipso facto,
alteração na esfera jurídica do acusado, pois tem uma dupla função de natureza
marcadamente garantística: a de comprovar a acusação do Ministério Público e a
de limitar o campo de conhecimento do tribunal de julgamento”.
No mesmo sentido, mais se acrescentou ainda que “os juízos operados quanto à
selecção dos factos adquiridos e sua qualificação jurídica, quanto à escolha do
direito aplicável e quanto à regularidade das provas – e é basicamente nisto que
consiste a pronúncia do arguido – só são verdadeiramente efectivos quando são
adoptados pelo tribunal do julgamento, na sua sentença, o que, aliás, permite
explicar a opção do legislador quanto à proibição de recurso ordinário da
referida decisão”.
Em homenagem aos princípios da economia e da celeridade processuais, não irá o
Recorrente pronunciar-se sobre o acerto das considerações ínsitas naquele Aresto
e aqui sumariamente transcritas, sendo certo que, para o que nesta sede importa,
bastará demonstrar que aquela posição não tem aplicação ao caso ora em apreço.
Por assim ser, há que começar então por salientar que no Despacho de Pronúncia a
que o artigo 310.°, n.° 1, do Código de Processo Penal faz referência são
decididas duas questões distintas: i) de um lado, e em primeira linha, as
nulidades e questões prévias ou incidentais que hajam sido arguidas ou que
possam, desde logo, ser conhecidas, ii) e do outro lado, o acerto da decisão do
Ministério Público de deduzir Acusação contra o Arguido.
Ora, apesar de decididas num mesmo Despacho, estas duas questões têm, como V.
Exas. não deixarão de reconhecer, natureza radicalmente distinta, sendo também,
e por essa razão, diferentes as consequências das decisões que sobre as mesmas
se pronunciem.
Assim,
Há que dizer que, como se acentua no referido Acórdão n.° 387/2008, a parte do
Despacho de Pronúncia estritamente dedicada à comprovação da decisão de acusar
não tem carácter definitivo quanto à selecção dos factos indiciariamente
imputados, quanto ao direito aplicável e quanto às provas.
Com efeito, só com a prolação da sentença se torna definitiva a
responsabilização criminal do Arguido, sendo que o Despacho de Pronúncia não
vincula, de forma alguma, o Tribunal do Julgamento, que, além de poder absolver
o Arguido, pode ainda proceder, com as condicionantes previstas nos artigos
358.° e 359.° do Código de Processo Penal, a uma alteração dos factos imputados
na Instrução e a uma diferente qualificação jurídica dos mesmos, apreciando
livremente a prova, que, de resto, e salvo as excepções previstas na lei, só é
válida se produzida no próprio julgamento.
A definitividade da decisão que, em sede de Instrução, conheça da “questão de
fundo”, está assim circunscrita à sujeição do Arguido a julgamento e à
delimitação, ainda que com as excepções previstas nos referidos artigos 358.° e
359.° do Código de Processo Penal, do objecto do processo.
O mesmo não sucede, porém, com a parte do Despacho de Pronúncia que conheça das
nulidades suscitadas e de outras questões prévias ou incidentais,
Despacho que, salvo melhor opinião, forma, desde logo, caso julgado formal
quanto à subsistência e legitimidade da própria pretensão punitiva do Estado
(vg. Prescrição do procedimento criminal, invocada (in) constitucionalidade das
normas que integram o crime cuja prática é imputada ao Arguido, legalidade do
inquérito e da própria Acusação).
Aliás, por imperativo legal, as nulidades e questões prévias e incidentais devem
ser apreciadas antes da “questão de fundo”, isto é, da comprovação propriamente
dita da decisão de acusar,
O que, de resto, bem se compreende, atendendo a que a procedência de alguma
dessas nulidades ou questões prévias implica, in fine, a extinção da instância
criminal, tornando assim despicienda a apreciação do bem fundado da Acusação.
Ora, é apenas dessa decisão, ou antes, das inconstitucionalidades normativas que
constituíram a sua ratio e thema decidendi que o presente recurso trata, razão
por que não têm aqui aplicação as considerações que este Tribunal doutamente
teceu no Acórdão n.° 387/2008, onde se debruça apenas sobre a decisão de
comprovação judicial da acusação – a Pronúncia propriamente dita – que, apesar
de proferida por via do mesmo Despacho, não só se distingue materialmente desta,
como é lógica e cronologicamente posterior à decisão que aqui se discute.
A corroborar esta conclusão está o facto de o Recorrente, no seu Requerimento de
Abertura de Instrução, não ter sequer posto em causa o acervo factual que lhe
foi imputado no libelo acusatório, limitando-se, como é seu direito, a suscitar
a nulidade da Acusação, do Inquérito e de alguns dos meios de prova que
sustentam a imputação de factos que lhe é feita.
O presente recurso restringe-se, por conseguinte, à apreciação das
inconstitucionalidades normativas em que, salvo melhor opinião, o Meritíssimo
Juiz do Tribunal a quo incorreu em ordem a validar o Inquérito, a Acusação e
alguns dos meios de prova, decisão essa que, nada tendo que ver com a “selecção
dos factos adquiridos e sua qualificação jurídica” ou “quanto à escolha do
direito aplicável”(…), produz, efectivamente, caso julgado formal.
Mas mais (e porventura mais importante ainda): contrariamente ao que sucede com
a decisão que confirma a Acusação do Ministério Público, única que este Tribunal
considerou já ter carácter meramente provisório, o saneamento do processo,
também ele constante do Despacho de Pronúncia, não é lá objecto de qualquer
revisão.
É certo que no artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, se prescreve
que o Presidente do Tribunal do Julgamento, uma vez recebidos os autos, se
pronuncia “sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que
obstem à apreciação do mérito da causa”.
No tocante a este particular, deve notar-se, no entanto, que se é verdade, por
um lado, que a lei estipula aí um novo saneamento do processo por parte do
Tribunal a que seja cometido o julgamento, não é menos verdade, por outro, que
daí não resulta, de forma alguma, uma “dupla valoração” no sentido de esse mesmo
Tribunal poder rever e alterar a decisão proferida quanto a nulidades e questões
prévias decididas pelo Juiz de Instrução Criminal.
Com efeito, em ponto algum da nossa lei processual penal, se acha prevista a
possibilidade de o Tribunal do Julgamento rever e muito menos revogar a decisão
proferida em sede de pronúncia pelo Juiz de Instrução Criminal quanto às
nulidades e questões prévias e incidentais.
Não obstante a formulação da lei não ser porventura a mais feliz, afigura-se
claro, pelo menos, ao aqui Recorrente, que o legislador terá querido acautelar
duas situações: i) por um lado, a possibilidade de às nulidades e às questões
prévias incidentais já conhecidas pelo Juiz de Instrução Criminal virem
posteriormente a sobrevir outras que possam e devam ser, desde logo, conhecidas
pelo Tribunal do Julgamento, e ii), e, por outro, que, nos casos em que por não
ter sido requerida a instrução, seja, ainda assim, feito o saneamento do
processo.
O dispositivo ínsito no sobredito artigo 311.°, n.° 1, do Código de Processo
Penal, não se perfila, pois, como uma instância de recurso, assegurada pelo
Tribunal do Julgamento, relativamente ao juízo proferido pelo Juiz de Instrução
Criminal quanto às nulidades e outras questões prévias e incidentais no âmbito
do saneamento que preliminarmente deve ter lugar no âmbito da instrução.
Quer isto dizer que, no caso sub judice, as nulidades respeitantes à prova
recolhida no Inquérito, ao próprio Inquérito e à Acusação foram já
definitivamente decididas pelo Juiz de Instrução a quem, por força do disposto
no artigo 308°, n.° 3, do Código de Processo Penal, coube fazer, desde logo e
com força de caso julgado formal, o saneamento do processo.
Assim, e estipulando a lei a irrecorribilidade desta decisão, tem aqui aplicação
o artigo 70.°, n.° 2, da LTC, onde se consigna que cabe recurso para o presente
Tribunal das decisões negativas de inconstitucionalidade que não admitam recurso
ordinário, por a lei o não prever (…).
Por último, e já em jeito de conclusão, dir-se-á apenas que não colhe o
argumento do “desvalor’ a que o legislador entendeu votar a Decisão Instrutória,
determinando a sua irrecorribilidade em prol da celeridade processual.
O Recorrente, na verdade, não poderia estar mais em desacordo com a opção
legislativa no tocante a este particular, considerando mesmo inconstitucional a
exclusão da possibilidade de recorrer de uma decisão com tão fundamental
relevância para o prosseguimento do processo e para as suas garantias de defesa
quanto aquela que decide, em fase de instrução, das nulidades e questões prévias
ou incidentais.
Aliás, o Recorrente só não reclamou da parte da decisão aqui em apreço que
rejeitou o recurso da invocada inconstitucionalidade da norma do artigo 310°,
n.° 1, do Código de Processo Penal, por reconhecer que, de facto, assiste razão
à Meritíssima Juiz Relatora quando diz que o Despacho de Pronúncia não aplicou,
efectivamente, aquele dispositivo legal (…)».
4. Notificado da reclamação, o Ministério Público respondeu-lhe nos termos
seguintes:
«1º
A presente reclamação é circunscrita pelo reclamante à segunda parcela da
decisão reclamada, que incide sobre a qualificação do despacho de pronúncia,
face ao texto actual do Código de Processo Penal, como decisão provisória ou não
definitiva – e, como tal, insusceptível de recurso para este Tribunal
Constitucional.
2º
Questiona o reclamante a submissão do seu caso à lógica subjacente ao acórdão
387/08, proferido nesta mesma secção.
3º
Neste aspecto, sem razão: na verdade, o que o acórdão 387/08 decidiu foi a
qualificação como decisão meramente “provisória” de todo o despacho de
pronúncia, na parte em que incidiu e contém, não apenas sobre um juízo
indiciário sobre provas e a matéria de facto apurada, mas também sobre a
qualificação jurídica e as “nulidades opostas à prova produzida”.
4º
Assentando tal aresto decisivamente no entendimento de que o despacho de
pronúncia não constitui, “in totum” caso julgado sobre a matéria ou questões
nele dirimidas - e sendo, deste modo, plenamente aplicável à situação dos autos
a orientação jurisprudencial ali estabelecida».
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
O Tribunal decidiu, ao abrigo do nº 1 do artigo 78º-A da LTC, não tomar
conhecimento do objecto do recurso interposto do despacho que pronunciou o
recorrente nos termos do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal. Na
parte que é objecto de reclamação, concluiu-se que tal despacho não constitui
uma decisão final para o efeito de poder ser interposto recurso de
inconstitucionalidade.
Contrariando o decidido, o reclamante sustenta que as considerações tecidas no
Acórdão do Tribunal Constitucional nº 387/2008, do qual se extrai que o despacho
instrutório que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do
Ministério Público não constitui uma decisão final para o efeito de poder ser
interposto recurso de inconstitucionalidade, não são extensíveis à parte do
despacho de pronúncia que conheça das nulidades suscitadas ou de outras questões
prévias ou incidentais, na medida em que tal parte forma, desde logo, caso
julgado formal.
O Acórdão nº 387/2008, funda-se, decisivamente, no entendimento de que a lei
“desvaloriza” a força jurídica do despacho de pronúncia formulado nos termos do
nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, ao impor a sua
irrecorribilidade, e transfere para uma fase posterior – a fase de julgamento –
a obrigação de o tribunal proceder à apreciação, com força de determinação
jurídica, de toda a matéria de que a pronúncia conhece.
Na verdade, da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciar o arguido
pelos factos constantes da acusação do Ministério Público na parte em que
aprecie nulidades e outras questões prévias ou incidentais (segunda parte do nº
1 do artigo 310º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei nº 48/2007, de
29 de Agosto) só pode extrair-se, na falta de disposição expressa contrária, que
sobre tal parte da decisão não se forma caso julgado. Ou seja, que se transfere
para a fase de julgamento a apreciação de nulidades e outras questões prévias ou
incidentais ainda que já tenham sido conhecidas na decisão instrutória proferida
nos termos do nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal (neste sentido,
Nuno Brandão, “A nova face da instrução”, ponto 3.2, texto a publicar na Revista
Portuguesa de Ciência Criminal, 2008).
De resto, este é o entendimento que se extrai da decisão recorrida – do despacho
do Tribunal Central de Instrução Criminal de 14 de Outubro de 2008. A fl. 6719
pode ler-se o seguinte:
«Sem curarmos de responder sincopadamente a cada uma das arguições, não vemos,
salvo o devido respeito por melhor opinião, aonde é que está a violação do
direito a um processo criminal que assegure todas as garantias de defesa,
incluindo o recurso, quando o tribunal de julgamento pode apreciar as questões
relativas a nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à
apreciação do mérito da causa – vide v. g. o artº 211º [311º], nº 1, do CPP.
Queremos com isto dizer que a decisão instrutória não faz claudicar a
possibilidade do arguido suscitar e ver reapreciadas tais questões pelo tribunal
de julgamento.
Não é sua a ultima palavra!»
Diferentemente do que sustenta o reclamante, o artigo 311º, nº 1, do Código de
Processo Penal aponta, de facto, no sentido de a decisão instrutória que
pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público
não constituir decisão final, também na parte em que aprecie nulidades e outras
questões prévias ou incidentais. Neste preceito sobre o saneamento do processo
na fase de julgamento permite-se, sem qualquer limitação, que o presidente do
tribunal se pronuncie sobre as nulidades e outras questões prévias ou
incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo
conhecer. Já no artigo 338º, nº 1, em audiência de julgamento, o tribunal só
pode conhecer e decidir das nulidades e de quaisquer outras questões prévias ou
incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa acerca das
quais não tenha ainda havido decisão e que possa desde logo apreciar; e no
artigo 368º, nº 1, no momento de elaborar a da sentença, o tribunal só pode
começar por decidir separadamente as questões prévias ou incidentais sobre as
quais ainda não tiver recaído decisão. Numa palavra: os poderes de cognição do
tribunal de julgamento em matéria de questões prévias ou incidentais que obstem
à apreciação do mérito da causa estão limitados apenas quando a lei o determine
expressamente.
Por último, note-se, ainda, que, quando a doutrina e a jurisprudência abordaram
a questão de saber se, face à redacção anterior do artigo 310º, nº 1, do Código
de Processo Penal, era ou não recorrível a parte da decisão instrutória relativa
a nulidades e outras questões prévias ou incidentais, era pacífico que a
“decisão, na parte que respeita aos elementos saneadores do processo, não
constitui caso julgado formal” (cf. Assento do Supremo Tribunal de Justiça nº
6/2000, de 19 de Janeiro, Diário da República, I Série, de 7 de Março de 2000,
aresto que fixou jurisprudência, revelando posições doutrinais e
jurisprudenciais distintas sobre a questão).
Em suma, o despacho recorrido não constitui uma decisão final para o efeito de
poder ser interposto recurso de inconstitucionalidade, pelo que há que indeferir
a presente reclamação.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência,
confirmar a parte da decisão sumária que foi reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de
conta.
Lisboa, 17 de Fevereiro de 2009
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão