SUMÁRIO Código do Mercado de Valores Mobiliários
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1 - A existência de um mercado de valores mobiliários amplo e eficiente constitui hoje condição essencial, não apenas de qualquer processo de desenvolvimento económico e social sustentado e intrinsecamente equilibrado, mas também da própria obtenção pelos Estados modernos de enorme volume de recursos de que carecem para o financiamento dos pesados investimentos infra-estruturais a seu cargo e, inclusivamente, para a adequada gestão da sua tesouraria.
E se isto é assim em quaisquer circunstâncias, muito mais o é na situação particular em que Portugal se encontra, resultante da sua integração na CEE e da tão próxima inauguração do mercado único europeu, que o obriga a acelerar fortemente esse processo e a efectuar simultaneamente uma profunda e onerosa revisão e modernização de toda a sua estrutura produtiva, bem como, na generalidade dos sectores, uma adequada reformulação e consolidação do seu tecido empresarial.
2 - Sucede, por outro lado, que o mercado único, implicando uma total liberdade de estabelecimento, de prestação de serviços e de circulação de capitais entre os 12 países da Comunidade, tem como corolário lógico a criação no conjunto desses países de um grande mercado europeu de valores mobiliários, de que cada um dos diversos mercados nacionais que o integram passará a constituir componente mais ou menos viável, relevante e activa consoante a capacidade que tenha de competir com os demais nas garantias de eficiência, transparência e liquidez que ofereça às entidades emitentes, aos investidores individuais e institucionais e aos intermediários financeiros.
Suscita-se, assim, com toda a acuidade, para Portugal, como para alguns outros Estados membros da CEE, o problema da própria subsistência de um autêntico mercado nacional de valores mobiliários, e, para todos e cada um dos Estados membros, a necessidade de repensarem, reestruturarem e modernizarem os seus mercados internos, de modo a evitar a sua injustificada subalternização aos de outros Estados membros com maiores tradições nesse domínio ou mais expeditos na introdução das reformas apropriadas.
3 - Sucede ainda que os mercados de capitais experimentaram a partir do início dos anos 80, nas praças dominantes de todo o mundo industrializado e mesmo em algumas praças periféricas, designadamente no que respeita aos valores mobiliários, uma evolução quantitativa e qualificativa tão profunda que a revisão, por vezes radical, da orgânica e modo de funcionamento, quando não da própria concepção básica desses mercados, se tornou indispensável, sob pena de deixarem de poder responder às necessidades das economicas que servem.
Destacam-se nessa evolução um fortíssimo crescimento do recurso ao mercado de valores mobiliários pelas entidades emitentes públicas e privadas, uma enorme expansão do volume das transacções nos mercados secundários, um extraordinário aumento do peso dos investidores institucionais e uma constante aceleração do processo de internacionalização dos mercados de valores mobiliários em geral.
Da influência combinada dos factores referidos decorre todo um conjunto de ajustamentos que têm vindo, e estão, a operar-se na maior parte dos mercados de valores mobiliários dos países industrializados.
4 - No que respeita a Portugal, o mercado de valores mobiliários, depois de longos anos de estagnação, ressurge em 1972, para conhecer um crescimento espectacular no curtíssimo espaço de tempo que decorreu até ao 25 de Abril, pondo à prova a adequação e capacidade de resposta das estruturas arcaicas da Bolsa de Lisboa, que não estavam preparadas para o processamento e controlo desse volume de negócios, e dando, consequentemente, origem a problemas graves de liquidação de operações, a irregularidades de comportamento das cotações e a desvios especulativos a que cumpria pôr cobro. Daí a promulgação, em 14 de Janeiro de 1974, do Decreto-Lei n.º 8/74, que, substituindo as disposições do Código Comercial de 1898 e do Decreto de 10 de Outubro de 1901, procedeu a uma profunda revisão da orgânica e das regras de funcionamento das bolsas de valores e das actividades dos corretores e passou a constituir, até hoje, o diploma quadro do mercado secundário português de valores mobiliários.
Sucede, todavia, que logo em 25 de Abril de 1974, por razões conhecidas, se verificou o encerramento das bolsas de valores, só em 1976 se autorizando a sua reabertura. E as esporádicas medidas que, subsequentemente e até 1985, os governos foram tomando com vista à remuneração do mercado não lograram êxito relevante.
5 - Por tudo o que fica exposto, a criação de um amplo, activo e eficiente mercado nacional de valores mobiliários não podia deixar de constituir um objectivo fundamental do Programa do Governo para 1986 e anos seguintes, asseguradas, como considerava que ficariam por força do mesmo programa, as condições necessárias para o restabelecimento da confiança dos agentes económicos. Daí que, através de um conjunto de sucessivos diplomas (nomeadamente os Decretos-Leis n.os 172/86, de 30 de Junho, e 130/87, de 17 de Março, e o artigo 45.º da Lei n.º 2/88, de 26 de Janeiro), tenha eficazmente incentivado a abertura do capital das empresas ao público e a sua cotação na bolsa, resolvendo, por essa forma, o problema básico e prioritário da oferta de valores mobiliários no mercado.
E tais medidas, conjugadas com um painel apropriado de incentivos fiscais à aquisição de acções cotadas em bolsa ou objecto de oferta pública de subscrição ou de venda, alguns dos quais já vinham de legislação anterior a 1986, permitiram, como se sabe, reconstituir no País, a partir desse ano, um autêntico mercado de valores mobiliários - aliás, em termos que, pelo dinamismo de que o fenómeno se revestiu, excederam amplamente tudo o que seria razoável prever, originando em 1987, como já ocorrera em situação similar 14 anos antes, anomalias e desvios claramente reveladores de deficiências estruturais e funcionais graves, tanto ao nível do mercado primário, como, designadamente, ao nível do mercado secundário.
6 - As anomalias que, especialmente em 1987, se verificaram nos mercados nacionais de valores mobiliários puseram em evidência a necessidade urgente de os repensar e reformular, quer quanto à filosofia de base, fortemente estatizante e intervencionista, em que se inspiram o seu desenho geral e o sistema de gestão, supervisão, regulamentação e controlo a que estão sujeitos, quer quanto à sua estrutura orgânica e operacional e ao seu funcionamento, aos tipos de operações que neles podem realizar-se, ao papel a atribuir e à capacidade técnica e financeira a exigir aos intermediários financeiros que neles intervêm, à natureza, conteúdo e qualidade da informação a fornecer, no seu âmbito, ao público e às entidades responsáveis pela sua gestão e fiscalização, e a outros numerosos aspectos em que esses mercados, nomeadamente o de bolsa, se mostram incapazes de responder adequadamente às necessidades da economia e às legítimas exigências das entidades emitentes e dos investidores.
De resto, a revisão em profundidade de um mercado português de valores mobiliários que fora concebido e organizado em circunstâncias e para realidades, tanto internas como externas, completamente distintas das actuais tornava-se também imperativa em virtude do que se referiu nos n.os 2 e 3. E tinha forçosamente de orientar-se para soluções inseridas no modelo básico adoptado (e com provas dadas) na generalidade dos países industrializados e, em particular, nos Estados membros da CEE, até porque a própria viabilidade do mercado português, no contexto de um mercado único europeu de valores mobiliários, dependerá de nele encontrarem os agentes económicos, tanto nacionais como estrangeiros, estruturas e condições e normas operacionais tanto quanto possível semelhantes às que lhes são proporcionadas nos restantes mercados da Comunidade e, especialmente, nas praças dominantes.
7 - Os estudos empreendidos com vista à revisão mencionada no número anterior, formalmente cometidos em Junho de 1988 a uma secção especializada que para o efeito se criou no âmbito do Conselho Nacional das Bolsas de Valores, conduziram ao presente diploma.
A variedade das matérias que nele se regulam, a amplitude da reforma, o número e a importância das inovações que desta resultam e a própria extensão do diploma exigem, por um lado, que se definam aqui os grandes princípios que o informam, e, por outro lado, que se alinhem, ainda que brevemente, algumas notas explicativas dos aspectos mais salientes dos novos regimes instituídos.
8 - No que respeita aos princípios estruturadores da reforma, destacar-se-á, antes de mais, o da autonomia dos mercados de valores mobiliários, implicando a sua desestatização, desgovernamentalização e liberalização, tendo precisamente em vista, como já foi dito, reconduzir o mercado nacional ao modelo geralmente adoptado no âmbito da Comunidade Económica Europeia.
É assim que, no tocante ao mercado secundário, as bolsas de valores, hoje detidas e geridas pelo Estado, passam para a propriedade e administração de associação ou associações de bolsa, constituídas sob a forma de associações de direito privado sem fins lucrativos, que terão como associados obrigatórios os corretores em nome individual, as sociedades corretoras e as sociedades financeiras de corretagem que devam operar na bolsa em causa e como associados facultativos as instituições financeiras que nelas queiram participar e que se encontrem legalmente autorizadas a receber do público valores mobiliários para custódia e administração, bem como ordens de bolsa para a respectiva transacção (artigo 206.º). E por associação do mesmo tipo será organizado e administrado, quando vier a estruturar-se nos termos dos artigos 510.º e seguintes, o mercado de balcão, que no presente diploma se regula pela primeira vez de forma sistemática.
No que toca ao mercado primário, a liberalização referida implica que se elimine, salvo em casos excepcionais, que se especificam, a autorização administrativa prévia actualmente exigível para a generalidade das ofertas públicas de subscrição de valores mobiliários. E o mesmo princípio de liberalização tem naturalmente de estender-se às ofertas públicas de venda ou troca de valores mobiliários, que do mesmo modo se dispensam de autorização administrativa.
9 - É evidente que este processo de desestatização e liberalização, com todos os benefícios que dele resultam, designadamente em termos de profissionalização, desburocratização e dinamização do mercado de valores mobiliários, não poderia ter lugar sem que os interesses públicos em jogo fossem simultaneamente acautelados, quer através de um quadro legal e regulamentar naturalmente mais desenvolvido, quer através de um sistema adequado de supervisão e fiscalização das actividades que nesse mercado se exercem.
Da linha de preocupações que ficou definida resulta, antes de mais, o desenvolvimento com que se fixa a disciplina legal de todas as matérias que podem, directa ou indirectamente, interferir com os interesses públicos mencionados e o modo como se sanciona a infracção das respectivas disposições. Privatizar ou liberalizar não significa necessariamente desregulamentar; muito pelo contrário, quando, em áreas de manifesto interesse geral da comunidade, como o mercado de capitais, a iniciativa privada se substitui ao Estado ou a acção dos agentes económicos deixa de ficar dependente de prévia autorização administrativa é natural (e, as mais das vezes, como aqui sucede, imperativo) que a regulamentação se adense, como única forma de que nesse caso se dispõe para assegurar os interesses gerais referidos.
E é da articulação dessas coordenadas fundamentais - a da desestatização e liberalização do mercado e a da indispensável prevenção das irregularidades que nele possam verificar-se, contrárias a interesses públicos relevantes - que naturalmente resulta uma medida estrutural da maior importância: a criação da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, abreviadamente designada por CMVM. Trata-se de um organismo especializado e profissionalizado de carácter público, dotado de personalidade jurídica e de um grau máximo de autonomia relativamente ao ministério da tutela, a cargo de um conselho directivo de cinco membros nomeados pelo Conselho de Ministros entre pessoas de reconhecida competência no domínio do mercado de capitais e de comprovada independência e idoneidade, com um mandato de cinco anos e inamovíveis durante esse período, salvo falta grave cometida no exercício das suas funções.
À CMVM passam nomeadamente a caber a supervisão e fiscalização tanto do mercado primário como dos mercados secundários de valores mobiliários, e bem assim a sua regulamentação em tudo o que, não sendo excepcional e expressamente reservado ao Ministro das Finanças, se encontre previsto no presente diploma e demais legislação respeitante àqueles mercados ou seja necessário para a execução das respectivas disposições. Competem, portanto, à CMVM para a qual deste modo de transferem, 'desgovernamentalizando-as' e profissionalizando o seu exercício, as funções que até agora pertenciam essencialmente ao Ministro das Finanças, peça básica da nova estrutura global do mercado português de capitais, da sua actuação dependendo, em larga medida, a consecução dos objectivos que com a reforma se visam.
E no quadro da mesma preocupação essencial de articular equilibradamente a indispensável liberalização do mercado com a defesa dos interesses públicos em jogo retira-se ainda, no atinente às ofertas públicas de subscrição e de venda, que estas, dispensadas, como são, de autorização administrativa, ficam, todavia, sujeitas:
À sua organização e colocação através de intermediários financiros legalmente autorizados a garantir esse tipo de operações;
À publicação de um prospecto contendo toda a informação necessária à adequada avaliação pelo público do investimento que lhe é proposto;
A prévio registo na CMVM, destinado fundamentalmente à verificação da regularidade do prospecto e da legalidade da própria operação;
A aprovação prévia pela CMVM da publicidade da oferta;
A um regime especial de responsabilidade civil perante os investidores pela suficiência, veracidade, objectividade e actualidade da informação constante do prospecto e da publicidade efectuada, responsabilidade de que passam também a participar os intermediários financeiros encarregados da operação.
10 - Uma outra grande linha de força do diploma é a que respeita à informação. Da suficiência, oportunidade, qualidade e acessibilidade da informação dependem, com efeito, não apenas a defesa obrigatória dos legítimos interesses dos investidores mas, também, e de modo geral, a própria regularidade e transparência do funcionamento do mercado, a consistência e a estabilidade dos preços que nele se formam e a viabilidade de um efectivo controlo das transacções que nele se realizam e das actividades de intermediação em valores mobiliários que nele se desenvolvem.
Trata-se, afinal, do princípio da full disclosure, consagrado na legislação americana desde 1933, e que a CEE, através de um conjunto já numeroso de directivas aprovadas ou em estudo, vem procurando implantar em todos os países que a integram. É evidente que a lei não pode nem deve pretender que o mercado funcione como 'tutor' do investidor, seja qual for o seu nível de cultura e de conhecimento em matéria de valores mobiliários, a fim de evitar que ele tome erradas decisões de investimento; mas pode e deve assegurar-lhe a informação necessária para habilitar um investidor de conhecimentos e diligência médios a tomar por si próprio uma decisão correcta.
Começa-se, assim, por estabelecer, no capítulo V do título I, um conjunto de disposições gerais sobre informação, tendo em vista sujeitar a uma disciplina fundamental nítida, não apenas a informação obrigatória, depois tratada especialmente nos capítulos que se ocupam das matérias a que respeita, mas também a informação facultativa e a veiculada através da publicidade, abrangendo, naturalmente, todas as entidades que no mercado intervêm, ou seja, as entidades emitentes de valores mobiliários, as entidades responsáveis por ofertas públicas de subscrição e de transacção dos mesmos valores, os intermediários financeiros e as entidades gestoras de mercados secundários. A norma básica, consignada nos artigos 97.º e 98.º, é a de que a informação fornecida ao público, bem como a publicidade, devem conformar-se com princípios rigorosos de licitude, veracidade, objectividade, oportunidade e clareza, não podendo, pela sua insuficiência, inexactidão ou falsidade, pela falta de rigor ou de fundamento objectivo dos indicadores, previsões ou juízos de valor que delas constem, pela forma dúbia ou confusa que revistam, pelo modo ou contexto da sua apresentação, pela sua falta de actualidade, pela omissão de esclarecimentos necessários ao seu correcto entendimento e avaliação, ou por quaisquer outras circunstâncias cujo conhecimento ou explicitação fosse razoavelmente exigível, induzir o público em erro sobre a realidade dos factos, situações, actividades, resultados, negócios, perspectivas, valores, taxas de rendimento ou de valorização de capital investido ou quaisquer outras matérias que dessa informação ou publicidade sejam objecto.
E é neste quadro que depois se desenvolve, nomeadamente, a regulamentação da informação obrigatória respeitante à oferta pública de subscrição (capítulo II do título II), à admissão de valores mobiliários à cotação na bolsa (título III, capítulo II, secção IV, subsecção II, divisões I e II), à oferta pública de aquisição (capítulo I do título IV) e à oferta pública de venda (capítulo II do título IV), bem como a informação periódica e pontual exigida das entidades com valores cotados na bolsa (título III, capítulo II, secção IV, subsecção II, divisão III), reflectindo as disposições respectivas, não apenas as normas decorrentes das Directivas do Conselho das Comunidades Europeias n.os 79/279/CEE, de 5 de Março de 1979, 80/390/CEE, de 27 de Março de 1980, e 82/121/CEE, de 15 de Fevereiro de 1982, já anteriormente acolhidas na ordem jurídica nacional, mas também as resultantes das Directivas n.os 88/627/CEE, de 12 de Dezembro de 1988 (relativa às informações a publicar por ocasião da aquisição ou alienação de uma participação importante numa sociedade cotada na bolsa), e 89/298/CEE, de 17 de Abril de 1989 (referente às condições de estabelecimento, controlo e difusão do prospecto a publicar em caso de oferta pública de subscrição ou de venda de valores mobiliários), que não haviam sido ainda repercutidas na legislação portuguesa.
11 - Uma preocupação nuclear da reforma é a da máxima globalização possível da oferta e da procura de valores mobiliários ao nível de cada uma das espécies de mercados secundários em que se transaccionem. A pequena dimensão e a incipiência do mercado português, bem como o porte relativamente reduzido das empresas com valores cotados e a liquidez reconhecidamente escassa de grande parte destas, não são compatíveis com a manutenção de dois ou mais mercados estanques de natureza idêntica, como hoje sucede com as Bolsas de Lisboa e do Porto, já que o consequente fraccionamento de uma oferta e de uma procura, que, mesmo globalizadas, são ainda, em muitos casos, insatisfatórias, implica necessariamente uma acrescida e perigosa volatilidade tanto das cotações (frequentemente com disparidades acentuadas de uma bolsa para outra) como do próprio volume de transacções em cada uma das praças e facilita consideravelmente as manobras de manipulação do mercado.
Daí que o diploma se oriente no sentido de, relativamente a cada tipo de mercados secundários, concentrar tanto quanto possível num único mercado a negociação de cada valor mobiliário: mercado de bolsa de âmbito nacional (de que as diversas bolsas, interligadas por sistemas informáticos adequados, constituirão meros pontos operacionais de apoio), no caso dos valores admitidos no mercado de cotações oficiais, bem como, excepcionalmente, de valores admitidos no segundo mercado e que, pela sua liquidez e características, se entenda poderem ou deverem ser transaccionados por essa forma; a bolsa (uma única bolsa) em que tenham sido admitidos à cotação, no caso dos restantes valores cotados no segundo mercado e mercado de balcão de âmbito nacional, relativamente às operações efectuadas no mercado de balcão, quando este se estruturar nos termos dos artigos 510.º e seguintes.
12 - Um dos problemas crónicos do mercado de valores mobiliários, particularmente nos países que têm um sistema de representação desses valores semelhante ao que vigora em Portugal, é o da liquidação das operações de bolsa. O enorme volume de complexas transferências e movimentos físicos de títulos exigido, em virtude de infungibilidade desses títulos e do número de transacções de que diariamente são objecto, pela liquidação de tais operações, determina frequentemente atrasos no seu processamento, incompatíveis com o regular funcionamento do mercado e com os legítimos interesses dos investidores. E quando o mercado se expande, rapidamente se configuram situações incomportáveis de estrangulamento das liquidações, que, impedindo os interessados de disporem oportunamente dos valores adquiridos ou do produto da respectiva venda e de ajustarem em tempo útil as suas decisões de bolsa à acelerada evolução da conjuntura, acabam por modificar artificialmente o andamento, se não o sentido, desta última e por se converter em mais um grave desincentivo ao investimento em valores mobiliários.
Acontece, de resto, que, independentemente das dificuldades que origina ao nível das liquidações, a massa de títulos representativos dos valores mobiliários em circulação tende a atingir, com o desenvolvimento económico, o recrudescimento do papel atribuído à iniciativa privada e a democratização do capital das empresas, proporções gigantescas, passando a constituir problema grave, e envolvendo custos pesadíssimos, a sua simples guarda, conservação, controlo de autenticidade e manuseio.
13 - Tendo em vista solucionar as dificuldades das liquidações, que o crescimento do mercado de bolsa em 1987 fez naturalmente ressurgir, foram dados, com base no Decreto-Lei n.º 210-A/87, de 27 de Maio, depois substituído pelo Decreto-Lei n.º 59/88, de 27 de Fevereiro, passos importantes através da criação, em cada uma das Bolsas de Lisboa e do Porto, de um sistema de compensação e liquidação de operações, alicerçado na obrigatoriedade do depósito em instituições financeiras dos títulos por ele abrangidos e do tratamento desses títulos como fungíveis.
E em 4 de Julho de 1988, com o Decreto-Lei n.º 229-D/88, avança-se um pouco mais na mesma direcção, mas agora através da própria desmaterialização dos valores mobiliários, considerada 'requisito indispensável à dinamização do mercado de capitais'. É assim que nesse diploma se criam, essencialmente a partir do modelo legislativo brasileiro, as acções escriturais, cujo regime se manda também aplicar, com as necessárias adaptações, 'às obrigações e outros títulos emitidos por sociedades anónimas'.
Toda a problemática da liquidação de operações de bolsa, bem como, porque com ela estreitamente se interliga, a da forma de representação dos valores mobiliários, tinham de ser aprofundadamente reanalisadas. Da ponderação que delas se fez resultaram as soluções agora adoptadas, que em seguida se apontam e justificam.
14 - A desmaterialização dos valores mobiliários constitui, sem dúvida, um factor da maior importância para a solução do problema das liquidações e, consequentemente, para a dinamização do mercado. Há, pois, que caminhar rapidamente nessa direcção, até porque, com as alterações recentemente introduzidas no sistema tributário relativamente aos valores mobiliários em geral (nominativos e ao portador), a nominatividade intrínseca dos valores escriturais não envolve para o seu detentor a perda de qualquer benefício (legítimo ou ilegítimo) que os títulos ao portador lhe proporcionassem. Pensa-se, todavia, que, dada a arreigada habituação do investidor português aos títulos (como representação material e palpável dos seus direitos e património), o estabelecimento imediato da obrigatoriedade da desmaterialização dos valores mobiliários, à semelhança do que se fez em França com o Decreto-Lei n.º 83-359, de 2 de Maio de 1983, seria prematuro, podendo eventualmente originar um desvio significativo da poupança para outras aplicações.
Daí que se tenha deixado às entidades emitentes a livre escolha da forma de representação (titulada ou escritural) de cada emissão de valores mobiliários. Procura-se, todavia, através de várias disposições (artigos 48.º, n.os 4 e 5, 51.º, n.º 5, e 705.º), facilitar e incentivar a emissão de valores escriturais, bem como a conversão em escriturais dos valores titulados em circulação. E no artigo 49.º cria-se um dispositivo de aceleração do processo, a administrar pelo Ministro das Finanças, sob proposta ou com audiência prévia da CMVM de acordo com as circunstâncias do mercado.
Por outro lado, abandona-se o modelo brasileiro seguido no Decreto-Lei n.º 229-D/88 (em que o serviço dos valores mobiliários escriturais integrantes da mesma emissão fica obrigatoriamente a cargo de um único intermediário financeiro escolhido pela entidade emitente e que assegura o respectivo controlo), para construir um modelo próximo do francês (que confere ao investidor o direito de abrir e manter as suas contas de valores mobiliários escriturais em qualquer dos intermediários financeiros autorizados a prestar esse serviço, e de as transferir de uns para outros sempre que o deseje, sendo o controlo global de cada emissão assegurado por um organismo de âmbito nacional - no nosso caso, a Central de Valores Mobiliários adiante referida -, em que os mesmos intermediários se encontram filiados e mantêm contas globais dos valores correspondentes a essa emissão, neles registados em cada momento).
15 - No que toca aos valores titulados, os problemas atrás referidos impunham a sua fungibilidade. Daí que se tenha estabelecido e regulamentado a fungibilidade de todos os valores titulados, quer ao portador quer nominativos, criando para o efeito um sistema de depósito e controlo desses valores semelhante ao sistema de registo e controlo dos valores escriturais (artigos 77.º a 96.º).
16 - O preenchimento das condições referidas nos dois números anteriores só poderá, todavia, contribuir para a regularidade e pontualidade da liquidação das operações de bolsa se para o efeito se criar um sistema de liquidação e compensação de âmbito nacional (não uma pluralidade de sistemas regionais e independentes), apoiado, para efeitos de execução da liquidação física, numa central de valores mobiliários igualmente de âmbito nacional, que simultaneamente assegurará o controlo de todos os valores titulados e de todos os valores escriturais que se encontrem depositados e registados em contas abertas junto dos intermediários financeiros.
Tais, portanto, as soluções que se consagram (a elas se referindo especialmente os artigos 58.º, 71.º, 85.º, 94.º, 188.º e 459.º).
17 - De entre as restantes medidas (e inovações), destinadas a promover a modernização, dinamização e eficiência do mercado de bolsa, destacar-se-ão:
a) A introdução no respectivo quadro jurídico, para serem lançadas logo que as autoridades competentes (CMVM ou Ministro das Finanças, conforme os casos) o julguem possível e conveniente, de novas e importantes modalidades de operações a prazo sobre valores mobiliários, como a definida no artigo 418.º, e, designadamente, de operações sobre opções, reguladas nos artigos 420.º a 423.º, e de operações a futuro sobre instrumentos financeiros (financial futures), previstas no artigo 424.º;
b) A admissibilidade de todas as formas de negociação desde o call system, com uma ou mais chamadas e cotações, até à negociação em contínuo, oral, informática ou mista (artigo 437.º), e, nomeadamente, a obrigação para as associações de bolsa de criarem, com base numa rede informática adequada, um sistema informatizado de negociação em contínuo de âmbito nacional (artigo 439.º), através do qual basicamente se concretizará e funcionará o mercado único nacional de bolsa, que constitui um dos grandes objectivos da reforma;
c) A autorização legal das operações em conta margem, reguladas nos artigos 464.º a 472.º;
d) A introdução das operações de contrapartida e a criação do segundo mercado, matérias a que em seguida se fará uma referência especial.
18 - É conhecido o papel fundamental que os market-makers desempenham na formação, desenvolvimento, continuidade e estabilidade dos mercados de valores mobiliários. Os artigos 473.º a 480.º, que introduzem e regulam as denominadas 'operações de contrapartida', viabilizam o exercício de actividades dessa natureza nas bolsas nacionais, nas diversas modalidades que podem revestir: operações realizadas por especialistas, no cumprimento de obrigação que assumem perante as autoridades competentes (a CMVM ou as associações de bolsa, conforme os casos) de manter um mercado regular de bolsa para determinados valores mobiliários, operações correntes de contrapartida, cujas características e condições competirá à CMVM fixar, e operações efectuadas, durante prazo limitado, no âmbito de contratos de liquidez celebrados com as entidades emitentes de determinados valores mobiliários ou com os respectivos accionistas, e destinadas a facilitar a formação de um mercado regular de bolsa para tais valores, em seguida à sua admissão à cotação, ou o restabelecimento desse mercado em período posterior.
Prevê o n.º 1 do artigo 475.º que venham a constituir-se sociedades de contrapartida, à semelhança do que se fez em França, a fim de promover a indispensável intensificação deste tipo de operações, nomeadamente da actividade de especialista.
19 - Depois dos exageros contrapostos do gigantismo empresarial e do small is beautifull, é hoje universalmente reconhecido o lugar importantíssimo que, por direito próprio - pela própria natureza das coisas -, cabe às pequenas e médias empresas na adequada estruturação e funcionamento de qualquer economia (para não falar na decisiva função de estabilizador social que essa 'classe média' de empresas desempenha) e a medida em que, consequentemente, o desenvolvimento económico depende da existência de condições propícias à formação e consolidação desse tipo de organizações produtivas.
Daí que na generalidade dos países que vivem em economia de mercado tenha vindo a tornar-se preocupação crescente dos governos a criação de tais condições.
Em Portugal, como nos restantes países, os dois problemas fundamentais com que, em regra, as pequenas e médias empresas se debatem são o da insuficiência dos seus capitais próprios e o da sua total ou exagerada dependência do crédito bancário.
Tais problemas resultam, como é óbvio, da falta de acesso dessas empresas ao mercado de valores mobiliários, por, em geral, não preencherem algum dos exigentes requisitos - de dimensão, de dispersão de capital, de perfil económico e financeiro, de tempo de actividade, etc. - de que dependeria a admissão das suas acções à cotação na bolsa. Acresce que são também desincentivadores para essas empresas de dimensão e reursos reduzidos os custos que envolvem as obrigações de informação necessariamente aplicáveis às sociedades com valores cotados no mercado de cotações oficiais, bem como, quando elevados, os encargos de admissão e de manutenção da cotação nesse mercado.
As circunstâncias expostas levaram diversos países a criar nas suas bolsas de valores um segundo mercado essencialmente destinado às pequenas e médias empresas, com condições menos rigorosas e custos mais reduzidos de admissão, e obrigações menos onerosas de informação do que os estabelecidos para o mercado de cotações oficiais.
Descontando outras modalidades instaladas anteriormente e sem êxito significativo, o modelo básico de segundo mercado surge em fins de 1980 simultaneamente na Inglaterra e na Irlanda, com a criação, nas respectivas bolsas de valores, do denominado 'Unlisted Securities Market (USM)'. Mercados similares foram lançados depois, no mesmo quadro conceitual e sob denominações variadas, em outros países, como a Dinamarca, a Holanda e a Suécia, em 1982, a França, em 1983, e a Bélgica, em 1984.
Introduz-se também no nosso sistema um segundo mercado (artigos 359.º a 376.º), desenhado a partir do modelo referido, mas com as especificidades que as características e condições particulares do mercado nacional de valores mobiliários e do universo das empresas portuguesas aconselham.
Anote-se que neste mercado particular a dispersão de capital necessária para a admissão poderá fazer-se directamente através de vendas efectuadas na própria bolsa, no mercado sem cotações, por correctores para o efeito designados, de acções colocadas à sua disposição pela sociedade interessada ou pelos respectivos accionistas.
20 - Uma referência especial há que fazer ao mercado de balcão.
Trata-se de um mercado que a legislação em vigor sistematicamente ignora e que vem funcionando na base da autorização de que legalmente dispõem certas categorias de intermediários financeiros para realizarem as operações de compra e venda de valores mobiliários que nesse mercado têm lugar. Não existe, assim, um mínimo sequer de normas legais que regulamentem tais operações e acautelem devidamente os interesses por elas envolvidos, nomeadamente os interesses dos investidores.
Deste modo, o mercado de balcão acaba, na prática, por existir e funcionar quase como um mercado tolerado, sede principal de um quase pejorativo 'fora de bolsa' de perfil pouco claro, que frequentemente se aponta, em virtude do volume das transacções que nele se realizam sobre valores cotados, como uma das razões fundamentais da desertificação do mercado de bolsa e da falta de representatividade das cotações que neste se formam.
Não deixa a crítica de ter alguma pertinência. Com efeito, a frequente falta de cobrança, total ou parcial, pelos intermediários financeiros que operam no mercado de balcão, da comissão (de 'corretagem') aplicável, nos termos da Portaria n.º 448/81, de 2 de Junho, do Ministério das Finanças, às operações que nele realizam, acaba por atrair para aquele mercado, pela via do menor custo, um certo volume de transacções sobre valores cotados, que, de outro modo, se efectuariam normalmente nas bolsas.
Por outro lado, a total falta de transparência do mercado de balcão desvia para ele operações da mesma natureza, que procuram, por essa forma, passar despercebidas, contra os interesses óbvios do conjunto do mercado de valores mobiliários e dos investidores, e, por vezes, no quadro de um processo global de legalidade duvidosa.
Sem minimizar a relevância destes factos, cumpre reconhecer que a arguida transferência de operações tem vindo a resultar também, e talvez fundamentalmente, de outras causas não imputáveis ao próprio mercado de balcão, tais como: a escassa liquidez de grande parte dos valores cotados (tornando muitas vezes impossível realizar na bolsa transacções que não sejam de volume extremamente reduzido sem alterações anómalas e incomportáveis dos respectivos preços); as deficientes condições, inclusive legais, de funcionamento do mercado de bolsa; a falta de competitividade deste, particularmente em determinadas espécies de valores (como sucedia, até há pouco tempo, por razões de natureza fiscal, com as obrigações em geral) e, finalmente, como corolário das carências de liquidez dos valores cotados, a insuficiente espessura do mercado de bolsa, que permite, quando surgem transacções de porte mais avultado, identificar facilmente os seus ordenadores, justificando assim a já apontada tendência destes para se refugiarem na confidencialidade do 'fora de bolsa'.
Outros aspectos negativos existem, porém, ainda no mercado português de balcão a necessitarem de ponderação adequada no quadro de uma reforma como a actual. Sucede, com efeito, e antes de mais, que, em vez de constituir efectivamente um mercado (pelo menos com um mínimo razoável de unificação), não passa, na sua fase actual de desenvolvimento, de um mosaico de mercados de balcão mais ou menos estanques (tantos quantos os intermediários financeiros autorizados a realizar operações fora de bolsa), praticamente sem qualquer globalização da oferta e da procura que neles se origina. Em segundo lugar, funciona sem qualquer interconexão com o mercado de bolsa, não se encontrando os intermediários financeiros que nele operam obrigados a prestar às bolsas, em tempo útil (isto é, em tempo que permita aos interessados tomá-la em linha de conta nas suas decisões de investimento), informação adequada acerca de transacções que efectuem sobre valores cotados. Em terceiro lugar, vivendo à margem de qualquer regulamentação específica, é natural que as operações que nele se processam acabem por resultar menos transparentes e por suscitar ocasionalmente dúvidas e conflitos de interesses, afectando mais ou menos gravemente a sua credibilidade.
Apesar destas deficiências, o mercado de balcão é o único mercado oficial (aliás, até agora, em boa verdade, legalmente 'para-oficial') existente para a transacção de valores não cotados ou não negociáveis em bolsa por qualquer outra circunstância. E as operações sobre tais valores ascenderam a cerca de 348 milhões de contos em 1989 e a cerca de 580 milhões de contos nos 10 primeiros meses de 1990, representando, respectivamente, 32% e 27% do montante global das transacções em valores mobiliários nesses períodos. Por outro lado, as operações realizadas no denominado 'fora de bolsa' (que praticamente se reduzem às efectuadas no mercado de balcão) atingiram 656 milhões de contos em 1989 e 1340 milhões de contos nos primeiros 10 meses de 1990, correspondendo, respectivamente, a cerca de 60% e de 63% do montante global do mercado de valores mobiliários nesses períodos.
É assim manifesto que a importância e indispensabilidade do mercado de balcão e a relevância dos interesses que nele se movimentam, bem como a necessidade óbvia de o articular com o mercado de bolsa e, quando existirem, com os mercados especiais previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 174.º, a fim de assegurar o máximo possível de consistência e transparência ao conjunto dos mercados secundários de valores mobiliários, são incompatíveis com a sua total falta de regulamentação. Impunha-se, por conseguinte, a todas as luzes, consagrá-lo legalmente e dotá-lo de um estatuto jurídico que permitisse corrigir, tanto quanto possível, as deficiências congénitas de que enferma, acima afloradas, e sujeitar a uma disciplina clara nas transacções nele realizadas, e que, por outro lado, previsse e estimulasse a sua futura organização em termos de mercado unificado a nível nacional, com todos ou a maior parte dos seus operadores interligados por um adequado sistema informático de negociação que conduza, na defesa dos legítimos interesses dos investidores, a um nível apropriado de globalização da oferta e da procura que nele se geram.
Tais os objectivos e a razão de ser das três secções em que se desdobram os artigos 499.º a 522.º, integrantes do capítulo III do título III.
21 - No título IV regulam-se as ofertas públicas de aquisição e de venda.
Quanto à oferta pública de aquisição (artigos 523.º a 584.º), não se considerou conveniente alterar, pelo menos desde já, alguns conceitos fundamentais adoptados nos artigos 306.º a 315.º do Código das Sociedades Comerciais (sem prejuízo de complementações que se julgaram indispensáveis).
Por outro lado, tal como se fez em relação às ofertas públicas de subscrição e de venda, sujeitou-se o lançamento da oferta pública de aquisição a prévio registo na CMVM, que só o concederá quando os documentos da oferta merecerem a sua aprovação, considerando-se, para os efeitos do diploma, que o lançamento ocorre com a publicação do anúncio de lançamento e demais documentos da oferta, e não, como sucedia no Código das Sociedades Comerciais (artigo 308.º, n.º 2), com a comunicação da oferta ao órgão de administração da sociedade visada.
Esta comunicação é, aliás, substituída pelo envio ao referido órgão de administração e à CMVM de cópia do anúncio preliminar da oferta - que o oferente fica obrigado a publicar logo que tenha tomado a decisão definitiva de a lançar -, desenhando-se assim, antes do registo e lançamento da oferta pública de aquisição, uma fase preliminar, essencialmente inspirado no City Code on Take-Overs and Megers britânico e na directiva comunitária em preparação sobre a matéria, tendo em vista obviar, tanto quanto possível, através da imediata divulgação da operação projectada, à ocorrência de indesejáveis fenómenos de insider trading. E constitui essa fase preliminar, regulada nos artigos 534.º e 537.º, uma outra inovação do regime jurídico da oferta pública de aquisição.
Também o Código das Sociedades Comerciais não prevê qualquer caso em que se torne obrigatório o lançamento de uma oferta geral de aquisição, isto é, de uma oferta que vise necessariamente a aquisição de todas as acções e outros valores mobiliários convertíveis em acções ou que dêem direito à sua subscrição ou aquisição, emitidos pela sociedade visada e que sejam apresentados ao oferente para o efeito. O contrário sucede com o diploma agora elaborado, que exige o lançamento de oferta geral por qualquer pessoa que pretenda adquirir, ou que, posteriormente à entrada em vigor do diploma, efectivamente adquira por qualquer forma que não seja uma oferta geral, valores mobiliários que, por si sós ou adicionados, se for o caso, aos que já devam considerar-se legalmente como pertencendo-lhe para efeitos de lançamento de uma oferta pública de aquisição, correspondam a mais de metade dos votos da sociedade em causa (artigo 528.º).
Mantém-se no diploma (artigo 568.º) a proibição estabelecida nos n.os 2 a 5 do artigo 311.º do Código das Sociedades Comerciais.
E até, por decorrência lógica da filosofia de base em que essa proibição se inspira (assegurar a rigorosa observância do princípio da igualdade de tratamento dos destinatários da oferta, defender esses investidores contra actos de manipulação do mercado por parte do oferente e da sociedade visada e impedir que esta, através da aquisição das suas próprias acções por ela mesma, pelos membros dos seus órgãos de administração e fiscalização, por accionistas hostis à oferta ou por outras pessoas que actuem em concertação com as referidas, frustem a operação), o diploma alarga subjectivamente a proibição a todas as pessoas que, de uma ou de outra forma, actuem em concertação com o oferente ou com a sociedade visada, e estende-a, objectivamente:
No caso do oferente (incluindo as pessoas que com ele actuam em concertação) e das instituições de crédito intervenientes na operação, à aquisição dos valores mobiliários que integrem a contrapartida proposta (evitando assim a manipulação dos respectivos preços, susceptível de induzir em erro os destinatários de uma oferta pública de troca quanto às vantagens da transacção que lhes é proposta);
No caso da sociedade visada (incluindo as sociedades que com ela estejam em relação de domínio ou de grupo, os membros dos respectivos órgãos de administração ou fiscalização e as demais pessoas que actuem em concertação com a sociedade visada), à alienação dos mesmos valores (evitando a manipulação de sentido inverso).
É certo que as legislações estrangeiras mais representativas, tal como o projecto de directiva sobre ofertas públicas de aquisição presentemente em estudo no âmbito das Comunidades, não contêm quaisquer disposições desse tipo: muito pelo contrário, os regimes que consagram assentam no pressuposto de que as entidades mencionadas continuam, durante o período referido, a transaccionar livremente os valores sobre os quais a oferta incide ou que com ela se relacionam. E não se tem dúvida de que esse regime é muito mais conforme com os princípios e com os interesses de mercado, uma vez que se disponha de mecanismos eficientes de controlo dos eventuais desvios a que pode dar lugar.
Crê-se, todavia, que a fase incipiente de estruturação e desenvolvimento em que o mercado português de valores mobiliários se encontra, a natural 'opacidade' que, em consequência, ainda o caracteriza, a falta natural de um enquadramento deontológico claramente definido e consistentemente enraizado no comportamento de muitos dos agentes que no mercado intervêm e a inexistência actual de órgãos e sistemas de fiscalização suficientemente rodados para poderem assegurar a prevenção e detecção das complexas manobras de manipulação que a livre realização de transacções pelas entidades envolvidas numa oferta pública de aquisição torna possíveis aconselham que, por agora, cautelarmente se mantenha (complementado como se disse) o regime de proibição que o Código das Sociedades Comerciais adoptou.
Um outro aspecto importante que convirá aflorar é o das limitações a impor aos poderes da administração da sociedade visada a partir do momento em que recebe a cópia do anúncio preliminar da oferta.
A questão assume uma acuidade particular quando se está em presença de uma oferta hostil, isto é, de uma oferta que tem a oposição do órgão de administração da sociedade visada e ou dos accionistas que a controlam.
A experiência dos países onde os take-overs são muito frequentes - fundamentalmente os Estados Unidos, seguidos, a distância considerável, pela Inglaterra - demonstra a multiplicidade de estratégias, por vezes extremamente sofisticadas, que, nas ofertas públicas de aquisição hostis, os dirigentes e accionistas controladores da sociedade alvo foram desenhando para impedir o êxito da oferta, na defesa, como é natural, de interesses próprios, que frequentemente não coincidem nem com os interesses da própria sociedade (considerada em si mesma) nem com os dos restantes accionistas (que, em sociedades com forte dispersão de capital, como em regra sucede nos países referidos e tende a acontecer cada vez mais na Europa em geral, podem, inclusivamente, deter a maior parte desse capital e ser, em última instância, os verdadeiros 'donos' da empresa).
É evidente que o lançamento de uma oferta pública de aquisição - que pode, até, carecer do mínimo de condições para ter sucesso - não deve prejudicar a vida e gestão normais da sociedade alvo. Mas parece igualmente incontestável que a necessária salvaguarda tanto dos interesses da generalidade dos seus accionistas como dos legítimos interesses do oferente impõem que se interditem actos de administração que, pela sua natureza ou condições, possam afectar de modo relevante o êxito da oferta ou os objectivos anunciados pelo oferente, e que não sejam exigidos pela gestão corrente daquela sociedade ou por interesses pontuais ou circunstâncias excepcionais devidamente comprovados.
Tal a solução que se adopta no artigo 575.º, no qual não deixam, aliás, de se criar os necessários dispositivos de maleabilização das restrições instituídas.
Pensa-se que ficam, assim, equilibradamente acautelados todos os interesses que este delicado problema envolve.
22 - O capítulo II do título IV regulamenta a oferta pública de venda em termos que, pela própria natureza da operação, reproduzem, com as adaptações adequadas, os estabelecidos para a oferta pública de subscrição.
Dispensando a transparência das disposições que o integram quaisquer comentários especiais, registar-se-á apenas que com esse capítulo se incorporam no ordenamento jurídico português (no que tinham de sê-lo), relativamente à oferta pública de venda, os preceitos da Directiva n.º 89/298/CEE, de 17 de Abril de 1989, já, de resto, absorvidos, no que toca a oferta pública de subscrição, pelo capítulo II do título II.
23 - Ao longo dos anos e ao compasso da rápida evolução do mercado de capitais, foi sendo criada, quer em Portugal quer (com natural anterioridade) nos países mais industrializados, uma gama variada de categorias de intermediários financeiros, autorizados a exercer, no âmbito desse mercado, um leque crescente de actividades específicas, cuja necessidade e contornos particulares, como actividades a profissionalizar e regulamentar, essa mesma evolução foi originando e precisando.
Tratando-se, como não podia deixar de ser, de intervenções legislativas detonadas ao sabor das circunstâncias, fora de qualquer planeamento geral ou quadro conceitual previamente estabelecidos com o indispensável rigor, o universo de intermediários e de actividades que resultou de todo o processo tinha forçosamente de apresentar incongruências, lacunas ou sobreposições mais ou menos acentuadas, tanto, eventualmente, ao nível dos respectivos perfis, como no que respeita ao seu tratamento jurídico.
Daí que se fizesse sentir um pouco por toda a parte a necessidade de introduzir alguma ordem no sincretismo natural desse amontoado de legislação avulsa, traçando em torno desta uma grande envolvente jurídica que lhe conferisse o mínimo indispensável de unidade conceitual e regulamentar de que não pudera originariamente dispor.
Posta a questão no domínio do mercado de valores mobiliários - em que o fenómeno especialmente se verificou -, havia, em suma, que fixar o estatuto jurídico fundamental das actividades de intermediação financeira e das pessoas e entidades (dos 'intermediários financeiros', entendida a expressão nesse sentido estrito) autorizadas a exercê-las. O modelo mais acabado de um estatuto desse tipo (com as flagrantes especificidades que resultam da particularíssima estrutura do mercado de valores mobiliários e do ordenamento jurídico britânicos) é o Financial Services Act publicado na Inglaterra em 1986 (cuja preparação se iniciou, aliás, no fim dos anos 70).
A preocupação mencionada ultrapassa, porém, o nível nacional. As circunstâncias acima referidas, originando, no interior de cada país, a falta de coerência conceitual e regulamentar que se apontou, não podiam deixar de gerar discrepâncias ainda mais profundas entre as legislações dos diversos países, dado, além do mais, o assincronismo com que a evolução dos respectivos mercados de valores mobiliários ocorreu, o diferente nível de desenvolvimento em que estes se encontravam e o peso diverso que tinham no conjunto do mercado financeiro. Daí que também no âmbito das Comunidades Europeias venha sendo discutido um projecto de directiva tendo precisamente em vista a uniformização, nesse domínio da legislação dos Estados membros.
Neste contexto geral, entendeu-se que a reforma empreendida do mercado português de valores mobiliários não ficaria completa (nem seria satisfatória) se nele não se incluísse um título destinado a procurar, também entre nós, clarificar o panorama conceitual e jurídico das denominadas 'actividades de intermediação em valoresl mobiliários' e unificar, no que se tornasse indispensável, o regime legal dos intermediários financeiros que as exercem.
Tal o objectivo do título V.
Pensa-se que, em geral, os preceitos que compõem este título V não necessitam de qualquer esclarecimento particular. Referem-se, por isso, em seguida, apenas alguns aspectos que justificam um comentário especial.
Registe-se, antes do mais, a distinção essencial que se estabelece entre a actividade de negociação de valores mobiliários por conta própria [alínea b) do artigo 608.º e artigo 609.º] e a actividade de market-maker [alínea c) do artigo 608.º], sendo a primeira conceituada exclusivamente como um puro negócio de compra e venda de valores mobiliários e a segunda, apesar de se desenvolver também necessariamente através de operações de compra e venda de valores mobiliários de conta própria pelo intermediário financeiro, como essencialmente comandada pelo objectivo de 'assegurar a criação, manutenção ou desenvolvimento de um mercado regular e contínuo para os valores que são objecto dessas operações e a adequada formação das respectivas cotações ou preços'.
Sublinhe-se ainda que pela primeira vez se regula em Portugal a actividade de 'prospecção de investidores para a subscrição, compra, venda ou troca de valores mobiliários ou para a realização de outras operações sobre estes, e bem assim de clientes para quaisquer serviços de intermediação em valores mobiliários' [alínea d) do artigo 608.º e artigo 610.º]. Acolheu-se, fundamentalmente, a lição da legislação francesa sobre colportage e démarchage (Lei n.º 72-6, de 3 de Janeiro de 1972, modificada pelas Leis n.os 75-601, de 10 de Junho de 1975, 85-1321, de 14 de Dezembro de 1985, e 87-416, de 17 de Junho de 1987), ponderando-se também o disposto no Financial Services Act britânico. E tornava-se, na verdade, essencial disciplinar este tipo de actividade, cuja falta de apropriado tratamento jurídico vem permitindo a todo o tipo de agentes actuações manifestamente incompatíveis com os interesses dos investidores e do mercado.
O terceiro ponto a destacar é o das actividades de 'consultoria sobre investimentos em valores mobiliários' [alínea l) do artigo 608.º e artigo 612.º]. Trata-se de uma actividade regulamentada em diversas legislações (a começar pela liberalíssima legislação inglesa), e com justificação óbvia, dada a medida em que interfere com os interesses dos investidores que a ela recorrem e, reflexamente, com os do mercado em geral. Aliás, perfeitamente incompreensível se tem de considerar que esteja sujeita a regulamentação e autorização a actividade das sociedades gestoras de patrimónios e que se encontrem isentas de uma coisa e de outra as pessoas singulares e colectivas que se dediquem profissionalmente a fazer, na prática, a mesma coisa pela via da consultoria financeira.
É evidente que não poderiam estabelecer-se neste diploma as condições a que deva ficar sujeito o exercício da actividade de consultoria: trata-se de matéria que tem de ser objeco de legislação especial, como sucede com as demais actividades de intermediação em valores mobiliários, daí resultando, portanto, a remissão que no n.º 2 do artigo 612.º se faz para diploma especial relativamente a essa regulamentação.
No conjunto deste título V, o artigo 614.º, respeitante ao rating, aí expressamente qualificado como não constituindo uma actividade de intermediação em valores mobiliários, parece descabido. Não o é, todavia, e por duas razões: antes de mais, porque, não sendo embora uma actividade de intermediação, reveste, porém, uma importância fundamental para o mercado de valores mobiliários; depois, porque, atenta a sua relevância, não se entende que viva à margem de qualquer regulamentação que acautele devidamente os interesses das entidades emitentes, dos investidores e do mercado em geral.
Na verdade, as sociedade de rating podem constituir instrumentos poderosos de racionalização, dinamização e expansão do mercado e auxiliares valiosíssimos de apoio aos investidores nas suas decisões de investimento e às entidades emitentes na colocação das suas emissões, ou precisamente o contrário. Tudo depende da sua capacidade técnica, da sua idoneidade e, designadamente, da sua indispensável independência em relação a empresas, grupos económicos ou intermediários financeiros que, dominando-as ou tendo nelas participações importantes, delas possam servir-se para prossecução de interesses que não são os dos investidores, nem os das empresas que inocentemente a elas recorrem, nem os do mercado.
Tudo circunstâncias a justificar que, como se prevê no n.º 4 do artigo 614.º, a sua constituição se faça depender, no futuro, de autorização (ou registo-autorização), destinada a permitir a verificação das condições de capacidade financeira, competência técnica, idoneidade e independência que devam satisfazer para lhes ser consentido o acesso à actividade de notação de risco.
24 - O título VI (artigos 666.º e 683.º) estabelece a moldura sancionatória do conjunto do diploma.
Alguns ilícitos se salientavam, a carecer de um tratamento especial, com tipificação mais adequada e penalização bem mais forte do que as resultantes da legislação em vigor. Eram eles o de abuso de informação (insider trading) e o de manipulação do mercado. Daí que se tenha revisto a definição e o tratamento criminal dados (numa perspectiva forçosamente menos ampla) a esses dois tipos de ilícito nos artigos 524.º e 525.º do Código das Sociedades Comerciais, o que se fez, respectivamente, nos artigos 666.º e 667.º, acolhendo-se, no primeiro deles, as disposições da Directiva n.º 89/592/CEE, de 13 de Novembro de 1989 ('relativa à coordenação das regulamentações respeitantes às operações de iniciados'). O nível das sanções fixadas para estas infracções resulta da indispensável ponderação da sua gravidade com a dosimetria muito moderada que caracteriza a nossa legislação penal.
As demais infracções são tratadas, dentro da dicotomia conceitual já largamente consagrada no direito penal português, como contra-ordenações. É evidente que no seu sancionamento havia que ponderar as características particulares dos ilícitos que ocorrem no mercado de valores mobiliários, os elevados montantes frequentemente em causa, os enormes benefícios directos e indirectos que deles podem resultar para os infractores e o volume dos prejuízos, as mais das vezes difusos, que causam aos investidores e ao mercado em geral, a malha imbricada de interesses que se cruzam no mercado, a extrema sensibilidade deste e a consequente necessidade de actuar com rigor, prontidão e eficiência na perseguição e punição das infracções cometidas.
Tornou-se, assim, indispensável, para adaptar a dosimetria das sanções pecuniárias, a natureza das sanções acessórias, o processo de contra-ordenação e outros aspectos do esquema punitivo às características específicas e circunstâncias particulares, acima referidas, dos ilícitos contra-ordenacionais que neste domínio se configuram, introduzir diversos ajustamentos ao regime geral das contra-ordenações estabelecido no Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (alterado pelo Decreto-Lei n.º 356/89, de 17 de Outubro).
Assim:
No uso da autorização legislativa concedida pela Lei n.º 44/90, de 11 de Agosto, e nos termos das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 201.º da Constituição, o Governo decreta o seguinte: | Artigo 1.º Aprovação do Código do Mercado de Valores Mobiliários |
É aprovado o Código do Mercado de Valores Mobiliários (Código do MVM), que faz parte integrante deste decreto-lei. |
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