1. É sabido que a legislação concordatária e, posteriormente, o Código Civil de 1966 facultaram aos católicos a opção pelo casamento religioso, que a lei reconheceu como tal, ou seja, como instituto diferente do casamento civil e sujeito às regras materiais do direito matrimonial canónico.
A unidade do nosso direito matrimonial ficou assim quebrada: em Portugal, e desde 1940, o regime do matrimónio é um ou outro conforme se trata de casamento civil ou católico.
É certo que, por um lado, a lei exige capacidade de direito civil para que possa celebrar-se casamento católico (Código Civil, artigo 1596.º) e, por outro lado, exige que o pároco envie ao conservador do registo civil o duplicado do assento paroquial para fins de transcrição (artigo 1655.º), não podendo o casamento católico ser invocado enquanto essa transcrição se não fizer (artigo 1669.º): quanto aos impedimentos matrimoniais e ao registo do casamento, os inconvenientes de uma dualidade de regime foram, portanto, afastados.
Em matéria de dissolução, porém, o casamento católico é regido exclusivamente pelo direito canónico, donde resulta que os tribunais civis não podem aplicar o divórcio aos casamentos católicos celebrados posteriormente à Concordata (artigo 1790.º).
Pelos seus largos reflexos sociais, essa solução tem sido objecto das mais vivas críticas.
E a modificação do nosso direito, neste particular, vem a ser exigida insistentemente por largo sector da opinião pública.
Como se tem dito muitas vezes, os nubentes podem casar catolicamente por simples conformismo ou respeito humano, assim como podem deixar de ser católicos, e a lei não deve vinculá-los, portanto, às consequências de uma opção religiosa que já não é ou até nunca foi verdadeiramente a sua. De resto, mesmo que os nubentes sejam e continuem a ser católicos, a solução não nos parece também que seja justificável. A indissolubilidade absoluta do casamento não entre nós um valor civil, um valor próprio do Estado, pois o legislador português admite o divórcio para os casamentos civis. É um puro valor religioso. E, não sendo o Estado português confessional, não se entende que o legislador defenda valores especificadamente religiosos, impondo aos católicos o cumprimento de um dever - o dever de não pedirem o divórcio - que não deverá ser para eles mais do que um dever de consciência. Nota-se, por último, que a solução do direito português é quase única no Mundo: vigora apenas na República Dominicana e entre nós.
2. O presente diploma - que mantém o sistema do casamento civil facultativo para os católicos, mas em versão diferente daquela que a legislação de 1940 introduziu no País - pretende evitar os aludidos inconvenientes.
Continua a reconhecer-se valor e eficácia de casamento ao matrimónio católico, nos termos do artigo 1587.º, n.º 2, do Código Civil, podendo os católicos, como até aqui, optar entre as duas modalidades de casamento.
Simplesmente, uma vez celebrado o casamento, civil ou católico, ele será regido quanto aos efeitos por uma única lei - pela lei do Estado -, qualquer que tenha sido a forma da sua celebração.
Sujeito à lei do Estado no que concerne aos efeitos, o casamento católico passará, portanto, a poder ser dissolvido nos tribunais civis, nos mesmos termos e com os mesmos fundamentos com que pode ser dissolvido um casamento civil.
O sistema proposto corresponde fundamentalmente ao dos países anglo-saxónicos (é o da Inglaterra e Irlanda, do Canadá e da maior parte dos estados dos Estados Unidos da América), vale ainda em todos os países escandinavos (Dinamarca, Noruega, Suécia, Finlândia e Islândia) e em algumas repúblicas da América Central e do Sul (por exemplo, no Brasil, no Peru e no Haiti). Há só a notar que, na generalidade destes países, a opção entre o casamento civil e religioso não é concedida exclusivamente aos católicos, mas ainda aos que professam outras confissões religiosas (vejam-se elementos de direito comparado em Dolle, Familienrecht, vol. I, 1965, pp. 185 e seguintes).
3. Decerto que o objectivo visado - a existência de um único direito matrimonial, com a sujeição do casamento católico às mesmas causas de dissolução do casamento civil - poderia ser alcançado por outra via: o modelo do casamento civil obrigatório realizaria igualmente aquele objectivo. Como se sabe, o legislador da 1.ª República optou por esse modelo, que é seguido na França, Bélgica, Holanda e Luxemburgo, Suíça, Alemanha Federal, em todos os países socialistas e na maior parte dos da América Latina, por exemplo, no México, na Argentina e no Chile (Dolle, ob. cit., p. 187).
Não se ignora, porém, que a obrigatoriedade do casamento civil tem sido considerada, por alguns autores, contrária à liberdade de consciência dos católicos.
Argumenta-se, neste sentido, que para os católicos só há um casamento - o casamento católico -, que é ao mesmo tempo um sacramento e que eles só podem receber na igreja e pela igreja. Assim, o Estado violentaria a consciência dos católicos ao obrigá-los a prestar o seu consentimento para o casamento civil na respectiva conservatória, pois, em verdade, eles não querem celebrar aí o seu casamento (para a exposição desta tese e respectiva apreciação podem ver-se Dolle, ob. cit., pp. 187 e seguintes, e Gernumber, Lebuch des Familienrechte, 1964, pp. 93-94).
Não se quis pôr aos católicos essa possível objecção de consciência. Preferia-se, por isso, a referida modalidade do sistema do casamento civil facultativo, que, em face do sistema do casamento civil obrigatório, tem fundamentalmente as mesmas vantagens e não se presta àquele reparo.
4. Tais são, em resumo, as razões justificativas do articulado que se segue.
Desde a primeira hora que o Governo Provisório esteve atento ao problema e necessidade de o resolver, mas a vinculação à Concordata, que é por natureza um tratado ligando duas pessoas soberanas de direito internacional, cujo respeito se lhe impunha por virtude do disposto no Programa do Movimento das Forças Armadas [Decreto-Lei n.º 203/74, n.º 6, alínea b)], impedia que se legislasse sobre a matéria.
Alterada a redacção do artigo XXIV da Concordata pelo Protocolo adicional, assinado na cidade do Vaticano em 15 de Fevereiro de 1975, é chegado o momento de proceder à almejada modificação do direito interno.
Mais extensa e profunda alteração se pretende para o direito de família vigente, mas não se quer deixar de imediatamente dar satisfação aos desejos de muitos portugueses verem regularizada a sua situação e a dos filhos, pelo que se legisla já no sentido de permitir o divórcio dos casados catolicamente, sem prejuízo da remodelação, já em estudo, do direito de família.
No artigo 1.º revoga-se a disposição que não permitia a dissolução por divórcio dos casamentos católicos celebrados desde 1 de Agosto de 1940 e a que permitia decretar a separação, quando requerido o divórcio.
No artigo 2.º dá-se nova redacção a diversos preceitos do Código Civil em ordem a permitir aos cônjuges casados catolicamente e separados de pessoas e bens a conversão da separação em divórcio, nos termos gerais, e introduzindo outras alterações que, por razões de justiça, se entendeu ser possível concretizar imediatamente e antes de completados os estudos em curso para a reforma do direito de família.
Nos mais artigos, de carácter transitório, considera-se especialmente a situação dos cônjuges que, tendo casado catolicamente, vivem separados de facto e deixaram caducar o direito de pedir a separação de pessoas e bens porque era só o divórcio que lhes interessava pedir. Para lhes facultar ainda o exercício do direito ao divórcio ou separação, manda-se contar, nesse caso, o prazo de caducidade do artigo 1782.º a partir da data em que este diploma entra em vigor. Também se simplificam as formalidades processuais para a conversão da separação em divórcio dos mesmos cônjuges.
Finalmente, institui-se o divórcio por mútuo consentimento.
Nestes termos:
Usando da faculdade conferida pelo artigo 3.º, n.º 1, alínea 3), da Lei Constitucional n.º 6/75, de 26 de Março, o Governo decreta e eu promulgo, para valer como lei, o seguinte: |