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Processo n.º 764/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Por sentença do 1º juízo criminal do Tribunal Judicial da Maia, A. foi condenado pela prática do crime de desobediência previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 348º, n.º 1, alínea a), e 69º, n.º 1, alínea a), do Código Penal e 152º, n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 9 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, e 18 meses de probição de conduzir.
Dessa decisão, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, invocando, além do mais, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 152º, n.º 3, do Código da Estrada e 4º, n.ºs 2 e 3, do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência de Álcool, aprovado pela Lei 18/2007, de 17 de maio.
Por acórdão de 29 de junho de 2011, a Relação confirmou o julgado, formulando um juízo de não inconstitucionalidade quanto às referidas disposições legais, pelo que o arguido veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade das normas dos artigos 152º., nºs 1 e 3, do Código da Estrada e 4º, n.º 1, do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência de Álcool, quando interpretadas no sentido de que a prova do estado de influenciado pelo álcool por análise ao sangue só pode ser feita quando o condutor não conseguir expelir ar suficiente após três tentativas sucessivas, não tendo o condutor direito de logo pedir a análise ao sangue sob pena de cometer um crime de desobediência.
Tendo prosseguido o recurso, o recorrente apresentou alegações em que formulou as seguintes conclusões:
A- O recorrente, no decorrer de uma ação de fiscalização do trânsito, foi submetido ao teste de álcool no sangue, através de aparelho qualitativo, vulgo, balão, tendo acusado uma taxa de 1,60 g/l, pelo que foi impedido de continuar a sua condução e conduzido para o posto policial.
B- Aí, e de imediato, declarou expressamente à autoridade policial que não faria o teste no aparelho Dragger, mas que apenas pretendia fazer a contraprova por meio de análise ao sangue.
C- No entanto, foi impedido pela autoridade policial de o fazer, com o argumento de que primeiramente se teria de submeter à prova através do aparelho apropriado, e só após três tentativas falhadas de expirar ar em quantidade suficiente é que poderia fazer a solicitada análise ao sangue.
D- Entendeu erradamente a sentença recorrida que, perante estes factos, existiu uma recusa em se submeter ao teste de pesquisa, para determinação da taxa de álcool, com a intenção de se furtar à ação da justiça e, por isso, incorreu na prática do crime de desobediência p.p. pelo artigo 348º., n° 1, alínea a), do C.P., e como tal condenou o recorrente.
E- Porém, não resulta dos factos provados que o recorrente se recusou a realizar o exame para determinação da taxa de álcool, mas que, pelo contrário, solicitou e pretendeu ser submetido a tal exame de uma forma mais precisa, segura, fiável e irrefutável - a prova por análise ao sangue, a qual é definitiva, não admitindo sequer contraprova.
F- A lei estabelece que a deteção e determinação do álcool no sangue é feita, em alternativa, por dois métodos: ou por meio de aparelho aprovado ou por análise ao sangue. Artigo 153º., n° 2, alíneas a) e b) do CE e artigo l, n° 2 do Regulamento de Fiscalização da Condução Sob a Influenciado Álcool - Lei 18/2007 de 17-05.
G- São normas estabelecidas em favor e defesa do arguido, no caso o recorrente e que, por isso, não revestem a natureza perentória e preclusiva e cuja rigorosa observância pode ser afastada pelo examinando, e que como muitas outras disposições do Código de Processo Penal, estabelecidas em defesa dos direitos dos arguidos, por isso mesmo, podem ser afastadas ou precludidas por vontade deste.
H-O Tribunal Constitucional acórdão unificador da jurisprudência n° 485/2011 decidiu declarar com força obrigatória geral:
“... a inconstitucionalidade da norma constante do art° 153°, n° 6, do Código da Estrada, na redação do Decreto-Lei n°44/2005, de 23 de fevereiro, na parte em que a contraprova respeita ao crime de condução em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado, por violação do disposto na alínea c) do n° 1 do artigo 165° da Constituição”.
I - Ora, tendo este Tribunal Constitucional declarado inconstitucional a referida norma, daqui decorre a recusa do arguido em se submeter à contraprova através da pesquisa de álcool no ar expirado é legítima, se pedir a contraprova através de exame de sangue, como sucedeu neste caso, e não pode ser suscetível de fazer incorrer o arguido em qualquer sanção penal, nomeadamente no crime de desobediência previsto e punível pelo artigo 348°, n° 1, a), 69°, n° 1, a), ambos do C. Penal, e art° 152°, n°6 do Código da Estrada e do qual foi condenado, pelo que deverá ser revogado o douto acórdão recorrido e o arguido absolvido do crime de desobediência.
J - É inconstitucional a interpretação que a sentença faz do disposto nas feridas disposições legais, pois não houve qualquer recusa do recorrente a efetivar o teste para determinação da taxa de álcool, e não poderia, como fez a sentença recorrida, considerar legal e legítima a recusa da autoridade em realizar o exame sanguíneo solicitado pelo recorrente.
K - Ao decidir e interpretar as disposições legais mencionadas, nomeadamente, o prescrito nos artigos 152, n°3, e 153, n°s 3, 4 e 5, do CE e artigo 1º n°s 2 e 3 e artigo 4° da Lei 18/2007, da forma descrita fez diminuir as garantias de defesa do recorrente e até impossibilitou o recorrente de se defender da prática dos atos que lhe eram imputados, o douto acordão recorrido violou os princípios constitucionais da igualdade de armas, da proporcionalidade, da presunção de inocência, do contraditório e das garantias de defesa, consagrados no artigo 2° da Constituição.
L - Assim sendo, o douto acórdão recorrido deverá ser revogado e substituído por outro na qual se declare inconstitucional a interpretação do artigo 152º., nºs 1 e 3 do Código da Estrada e do artigo 4° n° 1 do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool, estabelecido na Lei 18/2007, feita nesse mesmo acórdão, devendo essa declaração ter o conteúdo seguinte:
Declaram-se inconstitucionais o artigo 152º n° 1 e n° 3 do Código da Estrada e o artigo 4° n° 1 do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool, estabelecido na Lei 18/2007, desde que interpretados no sentido de que, efetuado o teste qualitativo do álcool no sangue, não é permitido ao arguido escolher a modalidade de contraprova que pretenda efetuar.
E, em consequência, se absolva o arguido do crime por que vem condenado.
O Exmo Procurador-geral adjunto contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
1.º O legislador infraconstitucional goza de uma ampla margem de discricionariedade legislativa na formulação das opções consistentes em tipificar criminalmente determinados comportamentos.
2.º O Tribunal Constitucional tem entendido que as pertinentes normas do Código da Estrada e do Código Penal que mandam punir como crime de desobediência a recusa em o condutor se submeter a exame para deteção do teor de álcool no sangue, através da análise do ar expirado, não violam qualquer princípio constitucional.
3.º Nos termos das disposições conjugadas do artigo 153º do Código da Estrada e artigo 1º do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei nº 18/2007, de 17 de maio, o exame-regra para deteção do estado de influenciado pelo álcool é o realizado por meio de teste no ar expirado, primeiro em analisador qualitativo e posteriormente, caso o primeiro dê positivo, em analisador quantitativo.
4.º Dispondo o nº 8 daquele artigo 153º que o examinando só deve ser submetido a colheita de sangue para análise se não for possível a realização por pesquisa de álcool no ar expirado, o artigo 4º, nº 1, do Regulamento veio estabelecer que impossibilidade ocorre quando após três tentativas sucessivas o examinando não consegue expelir ar suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas o não permitam.
5.º Face a este regime, não cabendo, nesta fase, ao condutor/examinando optar pelo tipo de exame, considerar que a recusa em submeter-se a exame por pesquisa de álcool no sangue a efetuar em analisador quantitativo constitui crime de desobediência, não viola o princípio da proporcionalidade (artigo 18º, nº 2, da Constituição)
6.º Com a regulamentação precisa e objetiva desta matéria, nos termos em que foi feita, consegue-se uma fiscalização eficaz, garantindo-se a segurança rodoviária e impedem-se eventuais violações da igualdade.
7.º Por outro lado, como o condutor/examinando que realizar o exame em analisador quantitativo (sendo o resultado imediato), pode também imediatamente requerer a contraprova e optar pela análise de sangue, se entender que este é o método mais rigoroso, não se vislumbra qualquer violação das garantias de defesa (artigo 32º da Constituição).
8.º Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.
Cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
2. No requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, o recorrente identificou o objeto do recurso por referência às normas dos artigos 152º., nºs 1 e 3, do Código da Estrada e 4º, n.º 1, do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a influência de álcool, aprovado pela Lei 18/2007, de 17 de maio, quando interpretadas no sentido de que a prova do estado de influenciado pelo álcool por análise ao sangue só pode ser feita quando o condutor não conseguir expelir ar suficiente após três tentativas sucessivas, não tendo o condutor direito de logo pedir a análise ao sangue sob pena de cometer um crime de desobediência.
Nas alegações de recurso, porém, o recorrente pretende demonstrar que a declaração feita perante o agente de autoridade de que apenas pretendia submeter-se a uma análise de sangue deve ser entendida como um pedido de contraprova relativamente ao resultado do teste no ar expirado realizado em analisador qualitativo, e que a decisão recorrida incorreu em errada apreciação e valoração dos factos ao considerar a conduta do arguido como correspondendo uma recusa de submissão às provas de deteção do estado de influenciado pelo álcool.
Do mesmo passo, nas conclusões da alegação, o recorrente alterou o objeto do pedido, pretendendo agora que se declare a inconstitucionalidade das normas dos artigos 152º n°s 1 e 3, do Código da Estrada e do artigo 4°, n° 1, do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool, quando interpretadas no sentido de que, efetuado o teste qualitativo do álcool no sangue, não é permitido ao arguido escolher a modalidade de contraprova que pretenda efetuar.
Deve começar por dizer-se que não cabe ao Tribunal Constitucional, no recurso de constitucionalidade, censurar os termos em que foi aplicado o direito infraconstitucional por parte do tribunal recorrido, nem aferir da validade do juízo formulado pela decisão recorrida quanto à subsunção jurídica dos factos ao direito. Por outro lado, dada a natureza meramente instrumental do recurso de constitucionalidade, a decisão a proferir há de ter uma efetiva repercussão na solução do caso concreto, implicando a reforma da decisão recorrida em caso de procedência, pelo que o Tribunal apenas pode considerar a norma ou interpretação normativa que tenha sido utilizada pelo tribunal recorrido como ratio decidendi, sendo inteiramente inútil a pronúncia que recaia sobre norma ou dimensão normativa que não foi efetivamente aplicada ou sobre questões que não foram analisadas na decisão recorrida.
No caso concreto, o tribunal recorrido julgou verificada a prática do crime de desobediência, nos termos previstos no artigo 152º, n.º 3, do Código da Estrada, por se ter concluído, face à matéria de facto apurada, que o arguido se recusou a efetuar o teste em ar expirado em analisador quantitativo, após a obtenção de um resultado positivo em analisador qualitativo, e se ter apenas disposto a realizar uma análise de sangue para determinar o estado de influenciado pelo álcool.
Face aos termos da decisão recorrida, a questão de constitucionalidade que pode colocar-se é apenas aquela que foi identificada no requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, sendo inidóneo o objeto do recurso que o recorrente, alterando esse requerimento, pretendeu definir na fase de alegações.
Nestes termos, atender-se-á, na apreciação de mérito, à interpretação normativa dos artigos 152º., nºs 1 e 3, do Código da Estrada e 4º, n.º 1, do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência de Álcool, aprovado pela Lei 18/2007, de 17 de maio, tal como configurada no requerimento de interposição de recurso.
Mérito do recurso
3. Segundo o disposto no artigo 152º, n.º 1, do Código da Estrada, que estatui princípios gerais relativamente ao procedimento de fiscalização da condução sob a influência de álcool ou substâncias psicotrópicas, «devem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou substâncias psicotrópicas: a) os condutores; b) os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito; c) as pessoas que se propuserem iniciar a condução».
O subsequente n.º 3 estabelece, por sua vez, que «as pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência».
Por outro lado, o artigo 153º admite a realização de contraprova, caso o exame de pesquisa de álcool no ar expirado seja positivo, para o que determina que o agente de autoridade notifique o examinando, por escrito, ou, se tal não for possível, verbalmente, daquele resultado, das sanções legais dele decorrentes, da possibilidade de requerer, de imediato, a realização dessa contraprova (n.º 2).
O n.º 3 desse preceito estabelece, a esse propósito, o seguinte:
3 – A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
a) Novo exame, a efetuar através do aparelho aprovado;
b) Análise de sangue.
O regime constante destas disposições foi entretanto complementado pelo denominado «Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas», aprovado pela Lei n.º 18/2007, de 17 de maio, o qual revogou o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de outubro, que dispunha sobre a mesma matéria, passando o artigo 1.º desse diploma, sob a epígrafe «Deteção e quantificação da taxa de álcool», a estatuir o seguinte.
1 – A presença de álcool no sangue é indiciada por meio de teste no ar expirado, efetuado em analisador qualitativo.
2 – A quantificação da taxa de álcool no sangue é feita por teste no ar expirado, efetuado em analisador quantitativo, ou por análise no sangue.
3 – A análise de sangue é efetuada quando não for possível realizar o teste em analisador quantitativo.
O artigo 4º desse diploma especifica ainda as situações em que se considera verificada a impossibilidade de realização do teste no ar expirado e define o procedimento a adotar nessa circunstância, apresentando a seguinte redação:
1 — Quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste, é realizada análise de sangue.
2—Nos casos referidos no número anterior, sempre que se mostre necessário, o agente da entidade fiscalizadora assegura o transporte do indivíduo ao estabelecimento da rede pública de saúde mais próximo para que lhe seja colhida uma amostra de sangue.
3—A colheita referida no número anterior é sempre realizada nos estabelecimentos da rede pública de saúde que constem de lista a divulgar pelas administrações regionais de saúde ou, no caso das Regiões Autónomas, pelo respetivo Governo Regional.
Resulta de todas estas disposições legais que a deteção de álcool no sangue do condutor começa por ser realizada através de exame no ar expirado, efetuado por autoridade ou agente de autoridade mediante a utilização de analisador qualitativo. Só quando for indiciada a presença de álcool no sangue por esse meio, é que se procede ao exame através de analisador quantitativo, ou, se não for possível, por via de análise de sangue.
O condutor pode requerer contraprova, que consistirá em novo teste em analisador quantitativo ou em exame ao sangue, conforme a sua preferência.
No caso presente, face aos elementos de prova coligidos pelas instâncias, o recorrente foi submetido, no âmbito de um procedimento policial de fiscalização de condução sob influência do álcool, ao teste qualitativo de pesquisa de álcool através de ar expirado, e, tendo sido obtido um resultado positivo, foi conduzido às instalações da polícia para efetuar o teste em analisador quantitativo, nos termos previstos no artigo 1º, n.º 2, do Regulamento de Fiscalização da Condução sob a Influência do Álcool. Aí o recorrente recusou submeter-se ao teste quantitativo e declarou que apenas permitiria a realização de análise de sangue, e manteve essa recusa apesar de ter sido esclarecido de que a recolha de sangue para análise apenas poderia ser efetuada caso fosse requerida a contraprova relativamente ao resultado obtido através do ar expirado, e mesmo depois da advertência de que incorria em crime de desobediência.
Face à recusa, o recorrente foi considerado incurso em crime de desobediência, em aplicação do disposto no artigo 152º, n.º 3, do Código da Estrada, e indiciado e condenado em processo penal pela prática desse crime.
Vem agora o recorrente invocar, por violação das garantias de defesa, a inconstitucionalidade das normas dos artigos 152º., nºs 1 e 3, do Código da Estrada e 4º, n.º 1, do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência de Álcool, quando interpretadas no sentido de que a prova do estado de influenciado pelo álcool por análise ao sangue só pode ser feita quando o condutor não conseguir expelir ar suficiente após três tentativas sucessivas, não tendo o condutor direito de logo pedir a análise ao sangue sob pena de cometer um crime de desobediência.
A arguição é inteiramente improcedente.
Ainda que o n.º 1 do artigo 32º da Constituição, como claúsula geral das garantias de defesa no processo penal, possa ser entendido como englobando «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, Coimbra, pág. 516), nada permite concluir, à luz do caso concreto, que o arguido tenha ficado coartado ou limitado nos seus direitos de defesa por efeito do regime legal decorrente das referidas disposições dos artigos 152º., nºs 1 e 3, do Código da Estrada e 4º, n.º 1, do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência de Álcool.
De facto, o condutor, tendo sido intercetado numa operação policial de rotina, não ficou impedido de provar, através de análise de sangue, que se não encontrava em estado de influenciado pelo álcool. E poderia tê-lo feito, de acordo com o regime legalmente previsto, através do pedido de realização de contraprova, quando o resultado do exame de pesquisa de álcool no ar expirado em analisador quantitativo fosse desfavorável, caso em que o interessado poderia optar, como dispõe o artigo 153º, n.º 3, do Código da Estrada, entre a realização de um novo exame através de analisador de ar expirado ou a análise de sangue.
Prevendo a lei a possibilidade, no âmbito do procedimento normal de fiscalização da condução sob a influência do álcool, de realização de contraprova mediante colheita de sangue, não se vê em que termos é que a prévia sujeição a exame de pesquisa de álcool no ar expirado pode ter posto em causa as garantias de defesa do arguido. Admitindo que a análise sanguínea é mais fiável que o simples exame em analisador – hipótese de que parece partir o recorrente -, nenhuma consequência desvantajosa poderia resultar para o condutor pelo facto de este, antes disso, ser submetido a um teste no ar expirado através de analisador quantitativo. Ainda que o resultado desse teste revelasse uma taxa de álcool superior à legalmente permitida para o exercício da condução, nada impedia que o condutor contraditasse a prova assim obtida através de análise sanguínea, caso em que ficaria ilibado de responsabilidade penal ou contraordenacional. Bastando-lhe para isso requerer a contraprova, para que o que, aliás, deveria ser expressamente notificado pelo agente de autoridade, como determina a lei (artigo 153º, n.º 2).
Como é bem de ver, não é o simples facto de a análise sanguínea ser efetuada um momento inicial ou numa fase subsequente do procedimento de fiscalização que põe em causa o acesso do arguido aos meios de defesa. O ponto é que o sistema legal não afasta a possibilidade de o condutor demonstrar através de análise ao sangue, se preferir, a ocorrência de um eventual erro na quantificação da taxa de álcool que tenha sido indiciada através de teste no ar expirado.
Acresce que, contrariamente ao que vem alegado, o regime assim legalmente definido não viola o princípio da proporcionalidade.
As provas estabelecidas para a avaliação do estado de influenciado pelo álcool são necessárias e adequadas aos fins visados pela lei, visto que só através desses procedimentos de fiscalização é possível detetar e quantificar a taxa de álcool, impedir que os condutores em situação ilegal possam prosseguir a condução, e permitir que sejam indiciados por crime ou contraordenação em ordem à realização dos fins de prevenção geral e especial das penas e à satisfação do interesse da segurança rodoviária.
Por outro lado, a exigência da sujeição a análise de sangue apenas em momento subsequente à quantificação da taxa de álcool através do teste no ar expirado, de nenhum modo pode entender-se como constituindo uma medida desproporcionada ou excessiva de molde a poder ser tida como violadora do princípio da «justa medida».
De facto, seria impraticável que os agentes da autoridade, no âmbito das operações de rotina de fiscalização da condução sob a influência de álcool, tivessem de transportar os indivíduos fiscalizados a um estabelecimento da rede pública de saúde para efeito da realização de análise de sangue, sempre que estes manifestassem preferência por esse método de avaliação. Os procedimentos de fiscalização, abrangendo todos os condutores que circulam num dado intervalo de tempo em determinadas vias rodoviárias ou aqueles que sejam detetados em violação das regras estradais, não podem deixar de ser realizados através de meios expeditos que não se compadecem, sob pena de pôr em risco a própria operacionalidade da ação policial, com a obrigatoriedade de deslocação dos agentes de autoridade aos estabelecimentos de saúde sempre que interessados optem pela recolha de amostra de sangue.
As operações de fiscalização têm, antes de mais, um caráter preventivo, destinando-se, pela sua frequência e regularidade, a dissuadir os condutores a exercerem a condução de veículos em situação de ilegalidade, e, complementarmente, a assegurar a regulação do trânsito e a garantir a segurança da circulação.
Por outro lado, normalmente só um reduzido número de condutores é que poderá ser encontrado a conduzir sob a influência do álcool.
Bem se compreende, neste condicionalismo, que a presença de álcool no sangue seja primeiramente verificada por meio de teste no ar expirado, efetuado em analisador qualitativo - como prevê o n.º 1 do artigo 1º do Regulamento - , e só quando fique indiciada uma possível irregularidade é que se adote um método mais moroso e complexo que se destine a quantificar a taxa de álcool, para efeito de determinar a existência ilícito penal ou contraordenacional, que será então efetuado através de analisador quantitativo ou, quando não seja possível realizar esse teste, através de análise de sangue (artigo 2º, n.º 2, e 4º, n.º 2, do Regulamento).
O recurso à análise de sangue apenas se justifica em situações residuais, ou porque se verifica a impossibilidade de realização do teste no ar expirado, ou porque, havendo um controlo positivo, há lugar, no interesse do examinando, à realização de contraprova.
Deste modo, a pretensão de efetuar, desde logo, uma análise sanguínea - com a necessária deslocação a um estabelecimento público de saúde -, antes mesmo de se encontrar indiciada uma taxa de álcool superior à legalmente prevista mostra-se ser desajustada da realidade no ponto em que suscita dificuldades operacionais que não têm um sentido útil, nem trazem qualquer vantagem processual para o interessado, que - como se deixou esclarecido -, sempre poderá requerer a contraprova através desse meio de pesquisa a seguir a um controlo positivo.
Argumenta ainda o recorrente que o referido regime legal viola o princípio do contraditório e o princípio da igualdade de armas.
Não se vê - nem o recorrente explicita - em que termos é que a circunscrição da análise de sangue às situações que se encontram legalmente previstas pode afetar o direito ao contraditório ou o direito à igualdade de armas.
Como se deixou já exposto, o interessado não fica impedido de requerer uma contraprova através de análise de sangue quando se verifique um resultado desfavorável no teste no ar expirado efetuado através de analisador quantitativo, e poderá, por isso, contraditar a prova que tenha sido obtida por via deste outro meio de pesquisa de presença de álcool no sangue. Assim sendo, o regime legal, em si, na medida em que não coarta o interessado de apresentar a prova que considera mais favorável à defesa da sua posição processual, não impõe quaisquer restrições quanto ao direito de defesa e ao direito ao contraditório, quando traduzido na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e de direito, oferecer as provas, controlar as provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado dessas provas. Por essa mesma razão, não pode afirmar-se que as disposições legais em causa imponham qualquer discriminação ou diferença de tratamento arbitrária do arguido relativamente à acusação.
Para concluir pela legítima recusa do arguido em submeter-se ao teste no ar expirado, o recorrente alude ainda ao acórdão do Tribunal Constitucional n° 485/2011, que declarou, com força obrigatória geral, «a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 153°, n° 6, do Código da Estrada, na redação do Decreto-Lei n°44/2005, de 23 de fevereiro, na parte em que a contraprova respeita ao crime de condução em estado de embriaguez e seja consubstanciada em exame de pesquisa de álcool no ar expirado, por violação do disposto na alínea c) do n° do artigo 165° da Constituição».
Importa a este propósito notar que esse aresto se limitou a pronunciar-se sobre a norma do Código da Estrada que estabeleceu a prevalência do resultado da contraprova sobre o resultado inicial, formulando um juízo de inconstitucionalidade orgânica pelo facto de a norma ter sido emitida inovadoramente pelo Governo em matéria de reserva de competência legislativa da Assembleia da República. No entanto, essa norma não foi aplicada pelo tribunal recorrido, nem constitui objeto do recurso – que incidiu sobre os artigos 152º., nºs 1 e 3, do Código da Estrada e 4º, n.º 1, do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob a Influência de Álcool -, pelo que desse julgamento de inconstitucionalidade não é possível extrair qualquer efeito útil para a apreciação do presente caso.
Nenhum motivo há, por conseguinte, para julgar inconstitucional a norma que constitui objecto do recurso.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 28 de março de 2012.- Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.
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