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Processo n.º 793/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A., cabo de infantaria da Guarda Nacional Republicana, intentou ação administrativa especial pedindo a declaração de nulidade de uma decisão administrativa que, mais de 9 anos antes, o punira com a pena disciplinar de dez dias de detenção. Obteve ganho de causa em primeira instância, mas o Tribunal Central Administrativo Norte, concedendo provimento a recurso interposto pelo Ministério da Administração Interna, julgou essa ação improcedente. Desta decisão foi admitido recurso excecional de revista, nos termos do artigo 150.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA). Por acórdão de 22 de setembro de 2011, o Supremo Tribunal Administrativo negou provimento ao recurso.
2. O recorrente interpôs recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC).
Tendo o recurso sido admitido e prosseguido, o recorrente alegou no sentido da inconstitucionalidade das “normas constantes do artigo 92.º, n.º 1, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (LOGNR), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de junho e do artigo 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EMGNR), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de julho, na parte em que tornam aplicáveis aos elementos da GNR as penas privativas da liberdade, previstas no RDM”.
Argumenta, em síntese, que não é possível retirar do preceituado nos artigos 69.º, n.º1 e 32.º da Lei n.º 29/82 de 11 de dezembro (Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas) e nos artigos 2.º, alínea e), 4.º, 5.º e 16.º da Lei n.º 11/89, de 1 de junho (Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar), prescrição no sentido da aplicação aos elementos da GNR, não pertencentes aos quadros das Forças Armadas, das penas privativas da liberdade previstas no Regulamento de Disciplina Militar vigente à data dos factos em termos tais que permitissem dizer que as normas questionadas não têm natureza inovatória. Pelo contrário, a aplicação de pena privativa da liberdade só foi possível atenta a concreta estatuição do artigo 92.º, n.º 1, da LOGNR e do artigo 5.º, n.º 1, do EMGNR, diplomas aprovados pelo Governo sem credencial parlamentar e, por isso, viciados de inconstitucionalidade orgânica.
E, quanto à inconstitucionalidade material, sustenta que no universo subjetivo da expressão 'prisão disciplinar imposta a militares ', constante da alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição, como exceção ao princípio de que ninguém pode ser privado da liberdade a não ser em consequência de sentença judicial, só podem compreender-se os elementos das Forças Armadas, em sentido estrito, e já não os membros das ‘forças militarizadas’ (como a GNR ou como a ex-Guarda Fiscal) ou de ‘forças de segurança’ (como a PSP).
3. O Ministério da Administração Interna sustenta, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
«(…)
a) O objecto do presente Recurso prende-se com a aplicação a Militares da G.N.R. da pena disciplinar de detenção ocorrida por efeito da aplicação do disposto no artigo 26.º do R.D.M. (aplicável por força do artigo 5.º do E.M.G.N.R., aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho e no n.º 1 do artigo 92.º da L.O.G.N.R., aprovada pelo Decreto-Lei n.º 23 1/93, de 26 de Junho);
b) Esta pena de detenção disciplinar foi aplicada ao Recorrente a 01 de Março de 1999, pelo Senhor Comandante da Brigada de Trânsito da G.N.R.;
e) De acordo com a tese do Recorrente, deste modo, ocorreu a violação da então alínea c), agora alínea d), do n.º 3 do artigo 27.º da C.R.P.; posição esta que não acolhemos;
d) A jurisprudência, inclusive a do Tribunal Constitucional, já se debruçou extensivamente sobre este normativo constitucional da alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da C.R.P.;
e) Existe, em concreto, um acórdão do Tribunal Constitucional, de 2003, que assume uma preponderância fundamental, na medida em que analisa aquele normativo aplicado concretamente a Militares da G.N.R., laçando um consenso absoluto sobre a questão equacionada;
1) Trata-se do Acórdão n.º 521/2003 (processo n.º 471/97, 2ª Secção) do Tribunal Constitucional;
g) Este Acórdão do Tribunal Constitucional tem uma componente verdadeiramente conciliadora e abrangente, não só porque se pronunciou, de forma específica, concreta e clara sobre este assunto (no caso concreto dos militares da G.N.R), como o enquadra com as demais perspectivas e acervo jurisprudencial;
h) A tese do ora Recorrente assenta no voto de vencido do Excelentíssimo Juiz Conselheiro Mário Torres exarado nesse mesmo Acórdão n.º 521/2003 do Tribunal Constitucional;
i) Porém, não se verifica nada de novo que a posição vencedora vertida nesse aresto seja digna de censura e que a segurança jurídica que o caso em apreço envolve possa ser comprometida;
j) Com efeito, neste Acórdão n.º 521/2003 ficou concluindo “não julgar, orgânica ou materialmente inconstitucionais” as normas da L.O.G.N.R. e do E.M.G.N.R. que estavam em avaliação e que determinavam a aplicação do R.D.M. aos Militares da Guarda;
k) O douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 22 de Setembro de 2011, ora impugnado, mais não fez do que perspectivar o caso “sub judice” com esta posição, constitucionalmente firmada, pelo que não poderá ser merecedor de juízo de censura;
1) Ou seja, confirmou a legalidade, de forma perfeitamente fundamentada e escalpelizada, de acordo com a interpretação sindicada por este Digníssimo Tribunal Constitucional, ao ter concluído que os Militares da G.N.R., para efeitos da excepção do artigo 27.º, n.º 3, alínea d), da C.R.P.;
m)Mantendo, assim, válido o despacho de 01 de Março de 1999, que aplicou a pena disciplinar de oito dias detenção ao Recorrente, o qual foi praticado ao abrigo da Legislação vigente.
Termos em que, nos melhores de Direito e com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser julgado totalmente improcedente o Recurso e, em consequência, confirmado o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 22 de Setembro de 2011 que acolheu a posição, constitucionalmente firmada no Acórdão n.º 521/2003 (processo n.º 471/97, 2. Secção) do Tribunal Constitucional.»
II. Fundamentos
4. Discute-se no presente processo a constitucionalidade da aplicação de penas disciplinares privativas da liberdade a membros da Guarda Nacional Republicana que resultava da sujeição dos militares da Guarda ao Regulamento de Disciplina Militar, aprovado pelo Decreto Lei n.º 142/77, de 9 de abril, com as alterações decorrentes do Decreto-Lei n.º 434-I/82, de 29 de outubro. Note-se que este já não é o regime disciplinar desta força de segurança. Atualmente, a sua organização consta da Lei Orgânica n.º 63/2007, de 6 de novembro; o Estatuto do Militar da Guarda foi estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 297/2009, de 14 de outubro; e o respetivo Regulamento Disciplinar foi aprovado pela Lei n.º 145/99, de 1 de setembro, no seu elenco não figurando penas desta natureza. O próprio Regulamento de Disciplina Militar consta atualmente da Lei Orgânica n.º 2/2009, de 22 de julho.
Importa, todavia, delimitar mais estritamente o objeto do presente recurso, em função da norma punitiva (e, portanto, da pena disciplinar) concretamente aplicada. O RDM continha mais de uma pena dessa natureza, de intensidade diferenciada quanto ao efeito de privação da liberdade (cf. artigos 26.º, 27.º e 28.º). No caso, o arguido foi punido com a pena de 10 dias de detenção, pena esta prevista no artigo 26.º do RDM. Consequentemente, o objeto do presente recurso de fiscalização concreta de inconstitucionalidade são as normas constantes do artigo 92.º da LOGNR, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de junho, e do artigo 5.º, n.º 1, do Estatuto dos Militares da Guarda, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 256/93, de 31 de julho, na parte em que tornam aplicáveis aos militares da GNR a pena disciplinar de detenção, prevista no Regulamento de Disciplina Militar.
5. Trata-se de uma pena disciplinar aplicada mediante ato administrativo. Consiste esta pena (detenção ou proibição de saída) na permanência continuada do infrator num aquartelamento (ou navio) durante o cumprimento da pena, sem dispensa das formaturas e do serviço interno que por escala lhe pertencer (artigo 26.º, n.º1, do RDM então vigente). .
A sua natureza de pena privativa da liberdade não oferece dúvidas. Quem a sofre fica confinado às instalações do aquartelamento a que está adstrito (ou que lhe seja destinado para cumprimento da pena), ficando-lhe coartada a faculdade eundi et ambulandi que integra o direito à liberdade e segurança. Certamente, uma privação da liberdade individual menos intensa do que a resultante da sujeição a prisão (disciplinar ou penal), mas privação da liberdade de qualquer modo. O agente punido com a pena disciplinar de detenção não pode ausentar-se, mesmo fora das horas de serviço, do perímetro do aquartelamento onde a cumpre. Ora, existe privação da liberdade sempre que alguém, contra sua vontade, é confinado coactivamente, através do poder público, a um local delimitado, de modo que a liberdade corporal-espacial de movimento lhe seja subtraída. Com efeito, no artigo 27.º, n.º 1, a Constituição tutela a liberdade física, a liberdade de movimentos corpóreos, conferindo a todos “o direito a não ser detido, aprisionado ou de qualquer modo confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar”. O local de confinamento pode ser um edifício (cfr. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, 2.ª ed., p. 641).
6. Ninguém pode ser total ou parcialmente privado deste direito, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medidas de segurança (n.º 2 do artigo 27.º da CRP). O n.º 3 do artigo 27.º autoriza exceções a este princípio. Entre elas, figura a “prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente”, nos termos da (atual) alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º que, na numeração anterior à revisão constitucional de 1997 constituía a alínea c) do mesmo n.º 3 do artigo 27.º.
O Tribunal já se pronunciou sobre as questões que no presente recurso se discutem no acórdão n.º 521/2003, publicado no Diário da República, II Série, de 17 de fevereiro de 2004 e disponível também em wwwtribunalconstitucional.pt.
Neste acórdão, revogando decisão do Supremo Tribunal Administrativo, o Tribunal decidiu que as referidas normas não sofriam dos vícios de inconstitucionalidade arguidos, quer de natureza orgânica, quer de natureza material. O Supremo Tribunal Administrativo adotou, agora, a doutrina que fez vencimento no Tribunal Constitucional, posição que a entidade demandada defende. Por seu turno, o recorrente argumenta com base num dos votos de vencido que lhe foram apostos.
Assim, como nada de novo há na fundamentação da decisão recorrida nem é trazido pelas partes à consideração do Tribunal e como as duas posições então em presença correspondem, em substância, ao que se oferece dizer sobre a questão de constitucionalidade das referidas normas, em qualquer das vertentes em que ela se coloca, justifica-se que se reproduzam os fundamentos a que se adere.
7. Assim, quanto à inconstitucionalidade orgânica disse-se no citado Acórdão n.º 521/2003:
“10. Ora, cabe antes de mais notar que não será possível sustentar, no caso sub judicio, a inconstitucionalidade orgânica das normas constantes dos art.os 92º, n.º 1, da Lei Orgânica da Guarda Nacional Republicana (LOGNR), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, e 5º do Estatuto dos Militares da Guarda Nacional Republicana (EMGR), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, enquanto determinando a aplicação aos militares da Guarda Nacional Republicana do Regulamento de Disciplina Militar ao abrigo do qual Fernando da Costa Silvério foi condenado a pena de prisão disciplinar agravada.
E diz-se que não pode porque, nesta matéria, tais preceitos nada inovaram. Na verdade, a disciplina jurídica que deles emerge pode ser colhida directamente do disposto nos art.os 69º, n.º 1, e 32º, da Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas (Lei n.º 29/82, de 11 de Dezembro) e do preceituado nos art.os 2º, alínea e), 4º, 5º e 16º da Lei n.º 11/89, de 1 de Junho.
Naquele sentido, e com referência aos militares do serviço efectivo da Guarda Fiscal, mas perfeitamente transponível para o presente contexto, pode ler-se no citado acórdão n.º 119/96:
«De facto, só esta disposição [está a referir-se ao art.º 1º do Decreto-Lei n.º 143/80, de 21 de Maio] torna aplicável aos oficiais, sargentos e praças da Guarda Fiscal, no activo, na reserva e na reforma, o Regulamento de Disciplina Militar, ao passo que o art.º 69º, n.º 1, da Lei n.º 29/82 - ao remeter para o n.º 1 do art.º 32º da mesma Lei - só torna aplicável o Regulamento de Disciplina Militar “aos militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo [...] na Guarda Fiscal” [...]».
Poderá objectar-se que a normatividade que deflui da conjugação do disposto no art.º 62º com o estabelecido no art.º 32º da referida Lei de Defesa Nacional não tem a natureza de um comando imediatamente prescritivo, quanto à aplicação aos militares da GNR do Regulamento de Disciplina Militar e do Código de Justiça Militar, que seja regulador das relações jurídicas e como tal aplicável imediatamente, mas antes simplesmente que externa uma opção político-legislativa quanto ao regime a definir no futuro – uma espécie de norma programática - relativamente à sua sujeição ao regime disciplinar e penal a aprovar posteriormente. Ora, relativamente a esta matéria, há que acentuar, desde logo, que a aplicabilidade, aos ‘militares e agentes militarizados dos quadros permanentes e dos contratados em serviço efectivo na Guarda Nacional Republicana’ [sendo que, no caso sub judicio, apenas importa relevar a situação relativamente aos militares dos quadros permanentes em serviço efectivo], do regime a que alude o art.º 32º se apresenta feita no art.º 69º da referida Lei de Defesa Nacional (Lei n.º 29/82) como uma opção político-legislativa tomada a título definitivo, ao contrário do que acontece, no n.º 2 do mesmo artigo, relativamente à Polícia de Segurança Pública. Sendo assim, e porque a sujeição a esse especial regime disciplinar e penal dos militares da GNR era já o regime que vigorava até então, não se vêm razões para se defender que apenas o regime a definir no futuro, de acordo como os procedimentos normativos estabelecidos nesse art.º 32º, passaria a aplicar-se-lhes.
De qualquer modo - e mesmo para quem assim pense - não pode deixar de concluir-se que, perante o disposto nos art.os 2º, alínea e), 4º, 5º e 16º da referida Lei n.º 11/89, de 1 de Junho, passou a ser aplicável aos militares da GNR no activo o regime disciplinar já então em vigor para os militares, independentemente da intenção legislativa manifestada no art.º 17º da mesma Lei de vir a ser aprovado um novo ‘Regulamento de Disciplina Militar por lei da Assembleia da República ou, mediante autorização legislativa, por decreto-lei do Governo’.
Assim sendo, havendo tanto a Lei n.º 29/82, como a Lei n.º 11/89, sido emitidas pela Assembleia da República e delas resultar ser aplicável aos ‘militares [...] dos quadros permanentes [...] em serviço efectivo na Guarda Nacional Republicana” o Regulamento de Disciplina Militar, não poderá dizer-se que o Governo, que emitiu aqueles diplomas da LOGNR e do EMGNR ao abrigo da competência estabelecida na alínea a) do n.º 1 do artigo 201º da CRP (domínio de competência legislativa concorrente com a Assembleia da República), tenha regulado matéria abrangida na competência exclusiva da Assembleia da República prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 168º da CRP (matéria de “direitos, liberdades e garantias”), na redacção então vigente, pois essa normatividade já tinha sido criada pelo órgão constitucionalmente competente - a Assembleia da República”.
É este o entendimento que se subscreve. Não procede o argumento, em contrário, de que estes preceitos emitidos pelo legislador parlamentar são meramente prospetivos. A Assembleia da República, do mesmo passo em que fixou um programa de alteração legislativa, assumiu a realidade normativa existente aplicável à GNR em matéria disciplinar. Chegando mesmo a fixar um prazo para atualização do RDM (artigo 73.º da Lei n.º 29/82), o Parlamento admitiu que o regime existente vigorasse até à nova regulamentação da disciplina militar. Assim, limitando-se o Governo a manter o statu quo normativo, as normas em apreciação não assumem caráter inovatório, pelo que não procede a imputação de inconstitucionalidade por violação da reserva de competência legislativa da Assembleia da República.
8. Mais controversa se apresenta a questão da delimitação da noção de militares para efeitos da exceção prevista no n.º 3 do artigo 27.º da Constituição [alínea c) desse preceito constitucional, na redação vigente ao tempo da edição das normas em causa; alínea d) do mesmo preceito, na redação vigente quer no momento da aplicação da sanção, quer atualmente).
Pelas razões já referidas, não sofre dúvidas que a pena disciplinar de detenção cabe (materialmente) na autorização para impor pena de “prisão disciplinar”. É um minus como pena detentiva, relativamente à prisão disciplinar ou à prisão disciplinar agravada (Note-se, todavia, que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (acórdão ENGEL) não considera que, no contexto característico da organização e atividade militar, uma medida disciplinar desta natureza (light arrest) constitua privação da liberdade para efeitos do artigo 5.º da Convenção – Cfr. Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4.ª ed., pg. 39). Assim, o que importa averiguar é se os “militares” a quem pode ser impostas penas desta natureza são, apenas, os membros dos três ramos das Forças Armadas (Exército, Marinha, Força Aérea) ou, também, os membros de outros corpos sujeitos, segundo a lei ordinária, à condição militar.
O recorrente invoca, a favor da interpretação mais restrita do âmbito subjetivo de aplicação da exceção, argumentos de natureza histórica e sistemática.
Portugal formulou uma reserva ao texto da CEDH no sentido de o respetivo artigo 5.º não obstar à prisão disciplinar imposta a militares em conformidade com o Regulamento de Disciplina Militar [artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 65/78, de 13 de outubro]. Mas a mesma ressalva não constava do texto originário da Constituição, relativamente ao princípio consagrado no artigo 27.º, suscitando dúvidas de constitucionalidade a possibilidade de imposição administrativa de tais penas. Veio a ser incluída na Lei Fundamental em 1982, com inspiração no projeto pessoal de revisão constitucional de Jorge Miranda (Um projeto de revisão constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, p. 32) ao propor o aditamento de uma alínea com o seguinte teor: «prisão disciplinar imposta a militares, sem prejuízo do recurso para o tribunal competente». Justificando a proposta, escrevia o Autor que «a prisão disciplinar imposta a militares (artigos 27.º e 28.º do RDM de 1977) não parece encontrar hoje fundamento no artigo 27.º da Constituição, embora tenha sido objeto de uma das estranhas reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem [artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 65/78, de 13 de outubro]. É esse fundamento que se pretende formular, com a indispensável garantia de recurso jurisdicional». Em sentido diverso opinavam A. Barbosa de Melo, J. M. Cardoso da Costa e J. C. Vieira de Andrade (Estudo e projeto de revisão da Constituição, Coimbra Editora, Coimbra, 1981, p. 49) quando referiam que «não se exceciona, no n.º 3, a prisão disciplinar prevista no Regulamento de Disciplina Militar por se entender que esta sanção atenta contra os princípios constitucionais, devendo, por essa razão, ser abolida e não garantida como exceção». Acabou por ser acolhida a proposta de Jorge Miranda. Resulta dos trabalhos parlamentares que, embora com generalizadas reticências dos deputados intervenientes no debate quanto à desejabilidade da opção, procurou dar-se cobertura a uma realidade prática e normativa da instituição militar.
Todavia, se é certo que alguns dos intervenientes nesses debates se referem expressamente às Forças Armadas, não é menos certo que nenhuma referência se colhe no sentido de que só o âmbito de aplicação do regime disciplinar aos militares dos três ramos procurou preservar-se. Embora possa inferir-se dessas intervenções que, para os deputados que se pronunciaram especificamente, esse era o âmbito subjetivo mais vivamente presente, o debate não se centra numa necessidade organizatória específica das Forças Armadas de tal modo que possa dizer-se que só para esses militares foi concebida a exceção. O que moveu o legislador constituinte foi a falta de cobertura constitucional para a aplicação de uma pena disciplinar privativa da liberdade por via administrativa prevista no Regulamento de Disciplina Militar. De modo que, se algum argumento pode extrair-se das circunstâncias históricas da inclusão da exceção da atual alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º na Constituição, é no sentido de que procurou cobrir-se todo o âmbito de aplicação de prisão disciplinar a “militares” então existente. Com efeito, não podia ignorar-se que a GNR foi, desde sempre, concebida e organizada como um “corpo especial de tropas” e que os seus membros eram (e são) qualificados expressamente como “militares” e sujeitos à condição militar.
Tem, porém, de reconhecer-se que, em contraponto, o elemento sistemático já será mais propício a outra interpretação. Na verdade, na mesma revisão constitucional foi aditado o artigo 270.º referente a restrições ao exercício de direitos, distinguindo-se entre “militares” e “agentes militarizados”. Poderá, nessa base, argumentar-se que, ao optar, num sítio (artigo 27.º), por apenas excecionar a prisão disciplinar referente a «militares» e, no outro (artigo 270.º), ter consagrado restrições a direitos fundamentais referentes a «militares» e a «agentes militarizados», a Constituição parece apontar para que os agentes da GNR cabem nesta última categoria, designando-se constitucionalmente como “militares” apenas os membros dos três ramos das Forças Armadas, e que no artigo 27.º se pretendeu deixar de fora do âmbito de aplicação da norma todos os agentes militarizados, sem exceção.
Face à inconcludência dos elementos histórico e literal-sistemático, na falta de suporte hermenêutico seguro de que, considerada a normatividade existente, se pretendeu repudiar para parte dela a cobertura constitucional resultante da exceção da alínea d) do n.º 2 do artigo 27.º, impõe-se encontrar um critério constitucionalmente adequado à justificação da sujeição dos “militares” a penas que constituem um tão significativo desvio a um princípio basilar do Estado de Direito como o de que ninguém deve sofrer privação da liberdade senão precedendo decisão judicial ou pelo tempo estritamente necessário a ser posto à disposição do juiz competente. O essencial do problema consistirá, pois, em discernir que elementos das atribuições ou da organização de uma instituição podem justificar um direito sancionatório público tão gravoso para o direito fundamental da liberdade. Procedendo por aproximação, porque a opção constitucional de que para os três ramos das Forças Armadas essa especial sujeição é justificada (os membros das Forças Armadas são “candidatos positivos” ao conceito constitucional de “militar” constante da exceção do artigo 27.º), importa discernir que elementos podem levar a que se consinta a sujeição dos militares da Guarda a um regime disciplinar idêntico (no aspeto considerado) ao dos membros das Forças Armadas.
Identificando os aspetos organizatórios e funcionais desta força de segurança que permitem a assimilação do regime de justiça e disciplina dos seus membros (no aspeto considerado) ao dos militares das Forças Armadas, disse-se no Acórdão n.º 521/03:
«E seguidamente o mesmo Acórdão [Ac. n.º 183/87] identifica como notas características que, decerto, avultam na instituição militar:
“- O estrito enquadramento hierárquico dos seus membros, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos;
- Correspondentemente, a subordinação da actividade da instituição (e, portanto, da actuação individualizada dos seus membros), não ao princípio geral da direcção e chefia comum à generalidade dos serviços públicos, mas a um peculiar princípio de comando em cadeia, implicando um especial dever de obediência;
- O uso de armamento (e armamento com características próprias, de utilização vedada aos cidadãos e aos agentes públicos em geral) no exercício da função e como modo próprio desse exercício;
- O princípio do aquartelamento, ou seja, o agrupamento dos seus agentes em unidades de intervenção ou operacionais dotadas de sede física própria e de um particular esquema de vida interna, unidade a que os respectivos membros ficam em permanência adstritos, com prejuízo, para a generalidade deles, da possibilidade (e do direito) de utilização da residência própria;
- A obrigatoriedade, para os seus membros, do uso de farda ou de uniforme;
- A sujeição dos mesmos a particulares regras disciplinares e, eventualmente, jurídico-penais”.
Anote-se, de resto, que esta é, também, a exacta compreensão que o legislador infraconstitucional tem dos índices característicos da condição militar.
Na verdade, ao legislar sobre as bases gerais do estatuto da condição militar, diz a referida Lei n.º 11/89, de 1 de Junho:
“Artigo 2.º
A condição militar caracteriza-se:
a) Pela subordinação ao interesse nacional;
b) Pela permanente disponibilidade para lutar em defesa da Pátria, se necessário com o sacrifício da própria vida;
c) Pela sujeição aos riscos inerentes ao cumprimento das missões militares, bem como à formação, instrução e treino que as mesmas exigem, quer em tempo de paz, quer em tempo de guerra;
d) Pela subordinação à hierarquia militar, nos termos da lei;
e) Pela aplicação de um regime disciplinar próprio;
f) Pela permanente disponibilidade para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais;
g) Pela restrição, constitucionalmente prevista, do exercício de alguns direitos e liberdades;
h) Pela adopção, em todas as situações, de uma conduta conforme com a ética militar, por forma a contribuir para o prestígio e valorização moral das forças armadas;
i) Pela consagração de especiais direitos, compensações e regalias, designadamente nos campos da Segurança Social, assistência, remunerações, cobertura de riscos, carreiras e formação».
É de observar que o artigo 16º da mesma lei determina que ela se “aplica aos militares da Guarda Nacional Republicana”.
12. Ora, tomando inteiramente por bons estes parâmetros, há que convir que todos eles se verificam relativamente à Guarda Nacional Republicana, quer na legislação do tempo (atrás identificada, tal como os seus preceitos mais relevantes) em que foram aditados a alínea c) do n.º 3 do artigo 27.º e o artigo 270.º da CRP, quer na legislação actual [Decreto-Lei n.º 231/93, de 26 de Junho, maxime, artigos 1.º, 9.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, 12.º, 13.º, 18.º, 21.º, 22.º, 23.º, 31.º, 32.º, 63.º a 72.º, e Decreto-Lei n.º 265/93, de 31 de Julho, maxime, artigos 1.º, 2.º, 5.º, 6.º, 7.º, 9.º, 14.º, 16.º, 23.º e 24.º], quer na realidade física existente em cada um desses diferentes momentos. A este propósito basta lembrar as tarefas de índole militar que constantemente são atribuídas à GNR.
Na verdade, à face de tal legislação a Guarda Nacional Republicana sempre foi definida como sendo uma força de segurança constituída por militares organizada num corpo especial de tropas (artigos 1º da LOGNR e 1º a 4º do EMGNR). Uma tal definição adquire, desde logo, a característica verdadeiramente determinante dos militares das Forças Armadas que é a de serem um corpo de tropas, cuja função primordial é a “defesa militar da República”. E se é certo que as atribuições daquele corpo especial de tropas são, predominantemente, funções de autoridade de segurança, de polícia criminal, de polícia fiscal e de controlo da entrada e saída de cidadãos nacionais e estrangeiros do território nacional, não o deixa, também, de ser que, entre elas, se conta, igualmente, a de colaborar na execução da política de defesa nacional (artigo 2º da LOGNR). Por outro lado, constata-se que essas suas atribuições são levadas a cabo mediante um esquema organizatório que é decalcado totalmente do que se verifica em relação aos militares das Forças Armadas. Assim, os seus membros estão organizados, segundo uma ordem rigorosa de patentes e postos (artigos 24.º e 26.º do EMGNR e 51.º e 90.º do EMGNR). O pessoal está distribuído por “Armas” e “Serviços” e organizado por unidades de comando, de instrução, de brigadas (unidades territoriais), brigada especial de trânsito, brigada especial fiscal, unidades de reserva, estas constituídas por um regimento de cavalaria e um regimento de infantaria (artigos 31.º e 63.º da LOGNR). A regra de subordinação das suas tropas no desempenho da sua actividade institucional assenta num princípio de comando em cadeia, segundo as diferentes patentes e postos (artigos 24.º e 26.º do EMGNR e 35.º do EMGNR). Os militares da Guarda Nacional Republicana usam, para além de armamento ligeiro, armamento pesado de características militares, como sejam, entre outros, carros de combate, ligeiros e pesados, granadas e metralhadoras ligeiras e pesadas (artigo 21º da LOGNR). Nota-se, ainda, que os militares da GNR, no activo, estão agrupados em unidades de intervenção e unidades operacionais, pela forma acima apontada e toda a sua acção é desenvolvida, essencialmente, a partir dessas sedes de comando (artigos 35.º a 62.º da LOGNR). Por outro lado, essas unidades estão aquarteladas em locais - quartéis - , e os militares da GNR estão adstritos, em permanência, a eles, cumprindo regras específicas de vida interna, próprias de um corpo de tropas. Finalmente, os seus membros usam farda ou uniforme, cumprindo algumas das suas espécies a mesma funcionalidade dos uniformes das Forças Armadas, como os trajes de combate e assalto (artigo 21º da LOGNR). Por último, os militares da GNR sempre estiveram sujeitos às regras disciplinares do Regulamento de Disciplina Militar, e, no domínio penal, ao Código de Justiça Militar (Lei de 3 de Maio de 1911, Decreto-Lei n.º 33 905, de 2 de Setembro de 1944, Decreto-Lei n.º 333/83, de 14 de Julho e artigos 92.º e 93.º da LOGNR e 5.º do EMGNR).”
Mantém-se este entendimento, que foi também o seguido pelo acórdão recorrido.
Com efeito, a GNR, além das atribuições policiais que de ordinário lhe competem, pode ser chamada a desempenhar tarefas que consistem na aplicação extrema da força do Estado e no controlo da violência, o que justifica a sua organização militarizada e o estatuto militar dos seus agentes. Desde sempre legalmente definida como tendo natureza militar, cabia e cabe na sua missão geral colaborar na execução da política de defesa nacional nos termos da Constituição e da lei, podendo em caso de guerra ou em situação de crise as forças da Guarda ser chamadas a cumprir, em colaboração com as Forças Armadas, as missões militares que lhe forem cometidas (cf. artigos 2.º, alínea i) e 9.º, n.º 2, da LOGNR aprovada pelo Decreto Lei n.º 231/93 e artigo 1.º, n.º 2 e 3.º, n.º 2, alínea i) da actual LOGNR). Acresce que, embora dependentes do membro do Governo responsável pela área da administração interna, as forças da Guarda podem ser colocadas na dependência operacional do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas, através do seu comandante-geral, nos casos e termos previstos nas Leis de Defesa Nacional e das Forças Armadas e do regime do estado de sítio e do estado de emergência, dependendo, nesta medida, do membro do Governo responsável pela área da defesa nacional no que respeita à uniformização, normalização da doutrina militar, do armamento e do equipamento.
E é para assegurar a disponibilidade e prontidão nesses domínios que se adequa a organização militarizada desta força de segurança interna como “corpo de tropas” e a condição militar dos seus agentes e se pode, à face da Constituição, exigir deles a sujeição a um mais rígido estatuto disciplinar do que o aplicável à generalidade das forças de segurança, considerando-os incluídos no conceito constitucional de “militar” para efeitos da excepção prevista na alínea d) do n.º 3 do artigo 27.º da Constituição.
É certo que algumas das características organizatórias vigentes no momento da prática do acto punitivo e realçadas no Acórdão n.º 521/2003 foram modificadas e que o legislador ordinário adotou outro modelo disciplinar que, quanto ao elenco de penas, se afasta do que é característico do direito disciplinar castrense. Mas isso é irrelevante para apreciação da questão de constitucionalidade colocada no presente recurso.
9. Decisão
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmado a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade respeita.
Custas pelo recorrente, com 25 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 8 de fevereiro de 2012.- Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral – Carlos Fernandes Cadilha – Ana Maria Guerra Martins – Gil Galvão.
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