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Processo n.º 150/2011
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por Acórdão de 9 de Dezembro de 2010, decidiu o Tribunal da Relação de Lisboa, além do mais, «[n]ão conceder provimento ao recurso interlocutório (…) interposto [pelo arguido A., ora reclamante] (…) do despacho (…) que não declarou nulo o “transporte e utilização, nestes autos, dos Apensos A, A1, B e B1 que contêm as transcrições das conversações telefónicas cujas interceptações ocorreram no âmbito do Processo n.º 31/01.3JSLSB”, mantendo-se, nesta medida, a decisão revidenda “in judice”».
O arguido, inconformado, dele interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), integrando no objecto de ambos os recursos, respectivamente, as normas dos artigos 188.º, nºs. 1 e 3, e 126.º, 187.º, n.º 1, 189.º e 97.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, na redacção anterior, «com a interpretação com que foi aplicada na Decisão recorrida», e «a norma constante do artigo 188º do Código de Processo Penal (CPP), «quando interpretada no sentido de não impor que o auto de intercepção e gravação das escutas (…) seja de imediato lavrada e levado ao conhecimento do Juiz e que autorizada a intercepção e gravação por certo período, seja concedida autorização para continuar sem que o Juiz tome conhecimento das anteriores», julgada inconstitucional, em tal dimensão normativa, pelo Tribunal Constitucional, no acórdão, entre outros, proferido no processo n.º 299/01.
O Tribunal recorrido considerou, porém, que, para além do facto de no acórdão de que o arguido pretende recorrer se ter também decidido reenviar o processo para novo julgamento, não foi, em tempo, suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, pelo que não se admitiu o interposto recurso de constitucionalidade.
Reclamou o requerente deste despacho, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da LTC, com fundamento no facto de, contrariamente ao sustentado pelo Tribunal recorrido, ter suscitado «a inconstitucionalidade da interpretação que o Tribunal a quo faz das normas contidas no art.º 126.º, art.º 188.º, nºs. 1 e 3, artº 187.º, n.º 1 e art.º 189.º todos do CPP», em sede de alegações e conclusões do recurso intercalar rejeitado.
O Ministério Público, em resposta, pugna pelo indeferimento da reclamação, reafirmando as razões, que determinaram, no tribunal recorrido, a não admissão do recurso.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
2.1. Do recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea g), da LTC
Prevê o citado normativo legal, na parte relevante, como fundamento do recurso nele previsto, a aplicação, pela decisão recorrida, de norma (ou interpretação normativa) já anteriormente julgada inconstitucional pelo próprio Tribunal Constitucional.
Assim, para que um tal recurso seja admitido necessário se torna que a norma ou interpretação normativa julgada inconstitucional, em acórdão precedente, pelo Tribunal Constitucional, tenha sido a razão jurídica da decisão recorrida, sendo a sua efectiva aplicação, como fundamento normativo da decisão, que torna útil o recurso de constitucionalidade dela interposto, pois que, verificado tal pressuposto, a sua procedência implicará modificação de julgado.
Ora, no caso vertente, a interpretação normativa que o Tribunal Constitucional efectivamente julgou inconstitucional, no Acórdão proferido no processo n.º 299/01 (Acórdão n.º 347/2001 e não, como seguramente por lapso referiu o reclamante, Acórdão n.º 10/01), não foi, em nenhum momento, sufragada pelo Tribunal recorrido, no acórdão de que foi interposto o recurso de constitucionalidade rejeitado, não resultando de qualquer das suas passagens, de forma expressa ou implícita, a defesa do entendimento normativo, baseado no artigo 188.º, n.º 1, do CPP, segundo o qual este normativo legal «não [impõe] que o auto de intercepção e gravação das escutas seja de imediato lavrado e levado ao conhecimento do juiz e que autorizada a intercepção e gravação por certo período, seja concedida autorização para continuar sem que o Juiz tome conhecimento das anteriores».
Assim, não tendo o acórdão recorrido aplicado, como critério de decisão, a interpretação normativa julgada inconstitucional no invocado Acórdão n.º 347/2001, não estava o recurso dele interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC em condições processuais de ser admitido, pelo que, com tal fundamento, correcta foi a decisão, ora reclamada, de o rejeitar.
2.2. Do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC
Mas também em relação ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não estão reunidos os pressupostos processuais de que, nos termos da lei, depende o seu conhecimento de mérito, pelo que se afigura correcta, ainda que por fundamentos não totalmente coincidentes, a decisão, ora em reclamação, de o rejeitar.
Impõe a lei, desde logo, como condição de legitimidade do recorrente, que este tenha suscitado perante o Tribunal recorrido, durante o processo e pela forma procedimentalmente adequada, a questão de inconstitucionalidade que integra o objecto do interposto recurso de constitucionalidade (artigos 70.º, n.º 1, e 72.º, n.º 2, da LTC).
Ora, relativamente a três das cinco questões de inconstitucionalidade suscitadas, em discurso condensado, perante o Tribunal recorrido, em sede de alegações de recurso, verifica-se que a forma adoptada para o efeito não é, claramente, a idónea para gerar no Tribunal recorrido a obrigação processual de sobre elas se pronunciar.
Com efeito, alegou o ora reclamante, no recurso que interpôs perante o Tribunal recorrido, reportando-se às normas dos artigos 187.º e 188.º do CPP, na actual redacção – que, aliás, não foram sindicadas no recurso de constitucionalidade, que se ateve à sua versão pretérita – que todos os despachos proferidos ao longo do inquérito relativos às intercepções omitem «os fundamentos de facto relativos às suspeitas de titularidade dos telefones cuja intercepção [se] ordenou (…) e à necessidade de utilização daquele meio de obtenção de prova», concluindo, neste contexto argumentativo, que «interpretação que não esta viola (o) art. 205.º n.º 1 CRP (necessidade e proporcionalidade) (…), pelo que o despacho judicial que ordenou as intercepções telefónicas é nulo, por força do disposto no artigo 189.º do Código de Processo Penal.».
Por outro lado, arguiu ainda o ora reclamante, no mesmo recurso, a nulidade do «transporte e utilização nos presentes autos dos Apensos A, A1, B, B1, que contêm as transcrições das conversações telefónicas, cujas intercepções foram operadas no processo 31/01.3JELSB», por alegadamente inexistirem os despachos judiciais que autorizaram as escutas telefónicas no processo original e o respectivo uso, nestes autos, sendo, em consequência, nulas tais escutas telefónicas, por violação do artigo 187.º, n.º 1, do CPP, na redacção anterior à vigente, como comina o artigo 189º do mesmo Código, naquela mesma redacção, concluindo, pela mesma forma alternativa, que «a se não entender dessa forma fez o Tribunal errada interpretação daquele preceito normativo, violador dos arts. 18.º e 34.º da CRP».
Finalmente, também no que respeita a uma invocada falta de «acta de audição» e de «acta de validação» das escutas telefónicas, sustentou o ora reclamante, nas suas alegações de recurso, o entendimento segundo o qual «a transcrição deve ser fidedigna e, por isso mesmo, no discurso directo a fim de reproduzir integralmente o registo áudio, sendo posteriormente certificada a sua conformidade pela entidade judicial, artigo 100.º, 101.º e n.º 3 do artigo 188.º do CPP», sendo que «outro entendimento que não este das normas acima referidas colide com os princípios constitucionais ínsitos nos art. 32.º, 34.º e 205.º da CRP».
Ora, como tem sido reiterado pela jurisprudência constitucional, quando chamada a clarificar os termos processuais em que deve ser observado o ónus de suscitação legalmente imposto pelas citadas disposições legais, compete ao recorrente, no seu exercício, identificar, com clareza e rigor, a concreta interpretação normativa que reputa de inconstitucional, em correspondência com a respectiva fonte legal, de modo que o Tribunal recorrido esteja em condições de formular, sobre a mesma, fundado juízo de inconstitucionalidade ou não inconstitucionalidade.
No caso vertente, e como decorre do modo, acima transcrito, como o ora reclamante suscitou as questões de inconstitucionalidade atinentes aos referidos núcleos normativos, não foram claramente identificadas, na perspectiva do seu conteúdo, nenhuma das interpretações normativas cuja inconstitucionalidade se suscitou, não sendo, por isso, exigível ao Tribunal recorrido que, em substituição do recorrente, delimitasse, com base em tais alusões indirectas e difusas, o objecto do reclamado juízo de inconstitucionalidade e aferisse a sua conformidade à luz dos parâmetros de constitucionalidade alegadamente violados.
Assim, não sendo possível, por omissão exclusivamente imputável ao ora reclamante, identificar sequer, com clareza e rigor, o conteúdo das interpretações que este, em sede de alegações, reputou de inconstitucional, não é também possível aferir da normatividade do seu conteúdo, para o efeito de corroborar a conclusão, sustentada no despacho reclamado, de que não o tem, sendo, pois, distinto, por atinente à inobservância do ónus de suscitação processualmente adequada das correspondentes questões de inconstitucionalidade e não à ausência de normatividade do seu conteúdo, que se afigura ser de manter o decidido pelo despacho ora posto em crise.
Já no que respeita às duas restantes questões de inconstitucionalidade aí também suscitadas, que, contrariamente às acima referidas, são identificáveis no seu conteúdo, que se afigura normativo, a razão do seu não conhecimento reside no facto de a interpretação normativa a que respeitam não ter sido efectivamente acolhida pelo Acórdão recorrido, como processualmente imposto, afigurando-se, pois, inútil o seu conhecimento de mérito.
São elas as seguintes:
- A norma constante dos artigos 187.º, e 97.º, n.º 4, do CPP, na redacção anterior, na interpretação segundo a qual «a fundamentação do despacho se basta com a mera indicação do preceito legal» por violação do disposto nos artigos 205.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP;
- A norma constante do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, na mesma redacção, quando interpretada «no sentido de não impor que o auto de intercepção e gravação de conversações telefónicas seja de imediato lavrado e levado ao conhecimento do Juiz».
Ora, percorrendo todo o Acórdão recorrido, verifica-se não ter sido sufragada nenhuma das interpretações normativas acima identificadas, como, aliás, antes se referiu, quanto à última delas, na apreciação do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
Na verdade, com atinência à matéria pressuposta na primeira das referidas interpretações normativas, o Tribunal recorrido limitou-se a concluir pelo cumprimento do dever de fundamentação legalmente imposto, no que respeita aos despachos autorizativos das intercepções telefónicas, aferindo-o não apenas em função das isoladas referências legais que os baseiam mas também, e decisivamente, da expressa enunciação dos fundamentos fáctico-indiciários que deles devem constar, não tendo, por outro lado, no que respeita à norma do artigo 188.º, n.º 1, do CPP, formulado sequer qualquer juízo interpretativo quanto ao sentido e alcance do conceito legal de imediatismo com que a lei regula o controlo judicial do resultado das escutas telefónicas.
Por tais razões, afigura-se, pois, correcta a decisão de rejeição do recurso de constitucionalidade de que ora se reclama, sendo, por isso, de manter o assim decidido pelo Tribunal recorrido.
3. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta.
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Gil Galvão.
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