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Processo nº 103/08
1ª Secção
Relatora: Conselheira Maria João Antunes
Acordam na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é
recorrente a Ordem dos Médicos e são recorridos o Ministério Público e a
Autoridade da Concorrência, foi interposto recurso para o Tribunal
Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei da
Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do
acórdão daquele tribunal de 22 de Novembro de 2007.
2. Por decisão de 26 de Maio de 2006, a Autoridade da Concorrência aplicou à
Ordem dos Médicos uma coima no valor de € 250.000,00 e ordenou a publicação do
sumário da decisão no Diário da República e a da parte decisória num jornal
nacional de expansão nacional.
A Ordem dos Médicos impugnou judicialmente esta decisão, suscitando a questão
prévia da incompetência material do Tribunal de Comércio.
Em 6 de Setembro de 2006, o Tribunal de Comércio decidiu declarar-se
materialmente competente para apreciar o recurso interposto. Em 18 de Janeiro de
2007, o recurso foi julgado parcialmente procedente. Consequentemente, a Ordem
dos Médicos foi condenada na coima de € 230.000,00 e na publicação de súmula da
decisão, incluída a parte decisória, no Diário da República e da parte decisória
em jornal nacional de expansão nacional.
A Ordem dos Médicos recorreu da decisão proferida quanto à questão prévia da
competência material do Tribunal de Comércio (fl. 167 e ss.) e da sentença deste
tribunal de 18 de Janeiro de 2007 (fl. 322 e ss.) para o Tribunal da Relação de
Lisboa. Para o que importa apreciar e decidir, extrai-se da motivação deste
recurso o seguinte:
«Da Incompetência legal da autoridade da concorrência para punir a recorrente
20. A recorrente considera que a AdC não tem competência legal para sancionar a
Ordem dos Médicos.
Na verdade, importa ter presente que a lei autoriza a subsunção das ordens
profissionais, enquanto entidades (auto)reguladoras, ao conceito de “entidades
reguladoras sectoriais” para efeitos de caracterização da sua relação com a AdC
como de colaboração – vide artigo 15.º da Lei n.º 18/2003 e Vital Moreira in
“Auto-Regulação profissional e Administração Pública”, Almedina, 1997.
22. E, nesta medida, não se vislumbra que a AdC tenha competência para instaurar
processos sancionatórios contra as demais entidades reguladoras sectoriais, como
seja, a CMVM ou a ANACOM.
23. A Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva pública.
24. Se é certo que as contra-ordenações previstas na Lei da Concorrência se
aplicam, de facto, a pessoas colectivas, nada no referido diploma aponta para
que as pessoas colectivas públicas tenham sido abrangidas pelo legislador; bem
pelo contrário, um conjunto de elementos literais, históricos, sistemáticos,
estruturais e teleológicos indiciam a solução contrária.
25. Tratando-se de uma questão extremamente delicada, que comporta opções de
fundo de política criminal, pelo que seria de esperar uma menção expressa por
parte do legislador; não existindo essa indicação, o intérprete deverá rejeitar
a aplicação de sanções desta natureza a pessoas colectivas públicas por
violações do direito nacional da concorrência, não só em razão dos argumentos
referidos, mas também porque estamos aqui perante matéria de direito
sancionatório público.
26. Acresce que uma interpretação da Lei da Concorrência que submeta as ordens
profissionais ao direito nacional da concorrência é inconstitucional, porquanto,
não tendo o legislador democrático sido explícito nessa inclusão, deverá
prevalecer, prima facie, a garantia constitucional da autonomia das associações
públicas – artigo 267.º da CRP.
27. Por último, a aplicação de vários preceitos da Lei da concorrência, às
ordens profissionais apresenta-se corno legalmente impossível, pois a mesma
identifica, como destinatários da sanção, as “empresas associadas que hajam
participado no comportamento proibido”, e como critério para calcular a medida
da coima, “10% do volume agregado anual das empresas associadas”.
28. Em matéria de direito sancionatório público, não só não se vislumbra de que
forma se procederá à identificação das “empresas participantes”, como não se
configura quem será o titular dos “negócios” referidos na norma em questão, nem
qual a forma legal e minimamente rigorosa de o calcular.
29. Em face das condicionantes identificadas, a conclusão não poderá ser outra
senão a de que, no direito português da concorrência vigente, a Autoridade da
Concorrência carece de competência para aplicar coimas às ordens profissionais,
pelo que sentença recorrida é ilegal.
30. Além de ilegal, é também inconstitucional por violação do artigo 267.º, n.º
4 da CRP, aliás neste sentido veja-se o parecer do Prof. Jorge Miranda, que se
junta.
31. De notar que, na esteira do afirmado pelo dito Prof. Jorge Miranda, a Ordem
dos Médicos integra a Administração Autónoma do Estado, pelo que apenas está
submetida à tutela do Governo, nos termos do artigo 199.º, alínea d) da CRP.
32. Tutela que não pode ser delegada noutro órgão e que não integra poderes
sancionatórios.
33. Ignorando todas estas questões, a Mm.a Juiz a quo refere diversos argumentos
para não declarar a ilegalidade invocada pela arguida, aqui recorrente.
34. Todavia e salvo o devido respeito, todos pouco consistentes e sem valia.
35. O primeiro argumento invocado na decisão recorrida é o carácter transversal
da Autoridade da Concorrência (AdC), do qual resulta que a AdC tem poderes sobre
todos os sectores da actividade económica.
36. Constata-se, contudo, que essa transversalidade quer significar que a
Autoridade tem ‘jurisdição” alargada a todos os sectores da actividade
económica, por contraposição às entidades reguladoras sectoriais, que como é
evidente se limitam a actuar num determinado sector da economia (ANACOM nas
telecomunicações, CMVM no mercado bolsista, etc., etc., – vide a lista
exemplificativa constante do n.º 4 do artigo 6.º do DL n.º 10/2003, de 18.01)
37. Ora, salvo o devido respeito, este raciocínio não permite retirar qualquer
conclusão no sentido de incluir a Ordem dos Médicos sob a ‘jurisdição” da AdC.
38.O que resulta da Lei neste ponto é que a AdC tem jurisdição (também) sobre o
sector da saúde. E nada mais.
39. É caso para utilizar o argumento da Mm.a Juiz a quo: onde a Lei não
distingue não deve o intérprete distinguir.
40. De todo o modo, no entender da recorrente, essa “jurisdição” não afecta a
própria “jurisdição” da Ordem dos Médicos sobre parte dos intervenientes nesse
mesmo sector da saúde, que são os médicos.
41. É que um dos fins da Ordem é a defesa do direito dos cidadãos a uma medicina
qualificada, por via da defesa da ética, da deontologia e da qualificação
profissional – vide alínea a) do artigo 6.º do Estatuto da Ordem dos Médicos –
DL 282/77, de 5 de Julho.
42. A criação e existência da Entidade Reguladora da Saúde (ERS) não retira essa
característica (auto) reguladora à Ordem dos Médicos – vide Rui Nunes in
“Regulação da Saúde”, p116, Vida Económica, 2005.
43. O segundo argumento apresentado na sentença recorrida assenta no fim
alegadamente prosseguido pela Ordem de defesa dos interesses dos médicos.
44. Ora, esta ideia está errada e só pode resultar de uma leitura incorrecta dos
Estatutos da Ordem dos Médicos.
45. O que o Estatuto refere claramente é que a Ordem fomenta e defende os
interesses da profissão médica e não dos seus membros, o que é algo bem distinto
e com toda uma outra ressonância valorativa.
46. É preciso ter bem presente que a Ordem é um organismo público e não um
organismo corporativo ou um sindicato.
47.Por outro lado, sendo uma pessoa colectiva de direito público, a Ordem está
sujeita aos princípios gerais da actuação da administração, entre os quais
ressaltam os de isenção e imparcialidade, ou seja, precisamente os mesmos que
delimitam a actuação das entidades reguladoras sectoriais.
48. Por fim, não é verdade nem está demonstrado nos autos que a Ordem dos
Médicos exerça uma actividade económica, nem se vislumbra qual ela possa ser.
49. Conclui-se assim que a decisão da Mm.a Juiz a quo neste ponto violou a Lei,
designadamente o artigo 267.º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
(…)
Da ausência de auditor/instrutor independente
64. A recorrente alegou, na impugnação da decisão da Autoridade da Concorrência,
que o Presidente desta Autoridade afirmou, na apresentação feita no Seminário
“Direito da Concorrência”, organizado pela CIP e PLMJ, em Lisboa no dia
18/11/2004 (e disponível em www.autoridadedaconcorrencia.pt), o seguinte:
“Sabemos que para assegurar um equilíbrio nas decisões finais da Autoridade e o
seu escrutínio cuidado dentro da instituição é necessário assegurar a separação
entre a Instrução e a Decisão. Esta é uma das minhas principais preocupações e
que terá uma solução no Regulamento Interno que tem estado em constante reflexão
e que será publicado em 2005. Existem diferentes soluções possíveis, uma vez que
não existe separação institucional daquelas duas funções e que aliás foi
intenção claro do legislador português integrar (...)”.
65. Importava, pois, apreciar este facto e declará-lo provado ou não provado.
66. Sobretudo quando deste mesmo facto dependeria a rigorosa apreciação da
questão prévia denominada “ausência de auditor/instrutor independente.
67. Para apreciação da referida questão prévia, um outro facto haveria que
incluir na enumeração exigida pelo legislador.
68. Referimo-nos à existência da figura do Auditor e respectivas competências e
razões para a sua criação, no âmbito dos processos de concorrência processados
perante a Comissão Europeia.
69. É um facto que deveria constar do elenco de factos provados e nem sequer
consta dos factos não provados.
70. Assim, entendeu a Mm.a Juiz a quo que a inconstitucionalidade avançada pela
arguida não merece acolhimento porquanto o legislador quis claramente confluir
na mesma entidade as figuras de acusador e julgador, argumento que não pode
servir para afastar a inconstitucionalidade pois nem tudo o legislador faz é bem
feito.
71. Por outro lado, essa “bicefalia” resultaria de uma menor ressonância ética
do ilícito contra-ordenacional, subtraindo-o assim às mais rigorosas exigências
de determinação válidas para o ilícito penal.
72. Ora, esta argumentação é em tudo contraditória com o que foi defendido pelo
próprio Presidente da AdC na apresentação supra mencionada.
73. Sobre o projecto de regulamento interno da AdC e da aberração de confluir na
mesma entidade as funções de acusador e julgador, vide José António Veloso in
“Revista da Ordem dos Advogados”, Ano 63, Abril 2003, Tomo II, p. 274, nota 24.
74. Por outro lado, o valor de tal forma elevado da medida das coimas aplicadas
neste tipo de processos leva a que se defenda que os mesmos deveriam estar
rodeados de mais garantias do que aquelas que são fornecidas pelo regime legal
dos Ilícitos de mera ordenação social.
75. Com efeito, como muito claramente refere José António Veloso in “Revista da
Ordem dos Advogados”, Ano 60, Janeiro 2000, Tomo I, p.74, a transposição do
regime do ilícito de mera ordenação social para as infracções graves da
deontologia da actividade financeira, punidas com penas muito severas,
extravasam por completo dos limites e sentido que os doutrinadores desse regime
lhe atribuíram.
76. Seguindo na leitura deste artigo, destacam-se ainda estas passagens:
“debates instrutórios perante o próprio investigador e decisões por este, só são
admissíveis em casos de escassa relevância e com penas comensuráveis com essa
escassa relevância. Assim o entenderam sempre os doutrinadores do regime da mera
ordenação, e é esse o evidente espírito do Decreto-Lei que o introduziu em 1982”
(...) “A utilização do regime da mera ordenação como instrumento de repressão e
prevenção de infracções de grande gravidade – muitas das quais se contam entre
as mais graves de que pode ser vítima uma comunidade, e nem por menos visíveis
menos graves do que os crimes de perigo comum do Código Penal, e quantas vezes
de efeitos muito mais generalizados e perduráveis –, infracções frequentemente
de averiguação altamente complexa, com sanções necessariamente muito severas, e
julgadas desta forma administrativa e, no contexto português uma evolução
altamente discutível” (...) Um processo em que a autoridade ao mesmo tempo
investiga, organiza o contraditório e avalia os resultados, e no fim toma a
decisão de punir ou absolver (embora sujeita a recurso para um juiz) constitui
também – em todas as questões que não sejam de natureza e implicações muito
banais – um absoluto absurdo do próprio ponto de vista da eficácia da
investigação” (...) A razão deste repúdio (...) é que ninguém confia num
processo em que as mesmas pessoas investigam, acusam e decidem. E a existência
de uma via de recurso judicial é conforto muito pouco convincente, pois que pode
levar anos e anos a produzir sentença revogatória” (...) “O verdadeiro
contraditório pressupõe necessariamente um árbitro, perante a autoridade da
investigação passe a ocupar a posição de simples parte, contraposta ao
investigado segundo regras formais que tendam a assegurar uma ao menos
aproximada igualdade de armas. Não há contraditório se não existe um árbitro
terceiro, e se o debate entre investigado e investigador decorre…perante o
próprio investigador. Um processo que só conheça esse debate, em que o
investigador, por um lado, seja parte do debate, e por outro lado, juiz dos
resultados dele, não será um processo contraditório: será o que se chama (num
dos sentidos do termo) processo inquisitório, ou inquisitorial”.
77. Foi seguramente tendo presente a importância, ou melhor, a elevada
ressonância ética deste ilícitos, que a Comissão Europeia decidiu criar a figura
do conselheiro auditor em 1982 e concretizar os seus poderes e funções em 1994
(Decisão de 12 de Dezembro de 1994, JO L 330 de 21.12.1994, p. 67),
atribuindo-lhe uma independência e certos poderes que reflectem os cuidados da
Comissão em garantir a objectividade e imparcialidade da sua actuação na
repressão das práticas anti-trust.
78. Em 2001, a Comissão veio “reforçar a independência e os poderes do auditor
(...), melhorar a objectividade e a qualidade dos processos da concorrência da
Comissão e das decisões dele resultantes” – vide JO L 162 de 19.6.2001, p. 21
79. Veja-se o artigo sobre as audições orais e o papel dos Auditores in “EC
Competition Policy Newsletter”, n.º 2, 2005, em que, a p.24, se refere que “de
há algum tempo a esta parte se diz que o procedimento da Comissão em matéria de
concorrência tem um carácter inquisitório. Que a Comissão chegou até a ser
rotulada como sendo ao mesmo tempo acusador, juiz e júri (...) Contudo, esta
descrição é hoje em dia [2005] demasiado simplista” (disponível em
www.europa.eu.int/comm/competition/publications/cpn/).
80. De elevado interesse para esta questão é também o Relatório da Casa dos
Lordes britânica com o sugestivo título “Strengthening the Role of the Hearing
Officer in Ec Competition Cases”, disponível em
http://www.parliament.the-stationery-office.co.uk/pa/ld199900/ldselect/ldeucom/125/12501.htm.
81. Baseada em todos estes considerandos, a recorrente solicitou ao tribunal a
quo a declaração de inconstitucionalidade dos artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei
n.º 18/2003, de 11 de Junho, quando interpretados no sentido de não serem
aplicáveis aos processos contra-ordenacionais abertos no âmbito da Lei da
Concorrência às regras dos artigos 39.º e 40.º do CPP, por violação do
preceituado no n.º 10 do artigo 32.º e no n.º 2 do artigo 266.º, ambos da CRP.
82. A Mm.a juiz quo assumindo posição contrária, recorreu a um Acórdão do
Tribunal Constitucional, em que se diz que o RGCO respeita e cumpre os ditames
constitucionais.
83. Contudo, a Mm.a Juiz a quo não se lembrou que, ao contrário do que preconiza
o mesmo Tribunal Constitucional, a AdC tem legitimidade para recorrer das
decisões do Tribunal do Comércio, o que, como se sabe não se verifica no RGCO,
pois as autoridades administrativas não têm essa faculdade – vide o citado
Acórdão do TC n.º 659/2006 (A diferença de “princípios jurídico-constitucionais,
materiais e orgânicos, a que se submetem entre nós a legislação penal e a
legislação das contra-ordenações” reflecte-se “no regime processual próprio de
cada um desses ilícitos’ não exigindo “um automático paralelismo com os
institutos e regimes próprios do processo penal, inscrevendo-se assim no âmbito
da liberdade de conformação legislativa própria do legislador”, por exemplo, a
não atribuição ao assistente (admitindo que a lei consente em processo
contra-ordenacional esta figura) de legitimidade para recorrer, legitimidade que
o artigo 73.º, n.º 2, do RGCO apenas reconhece ao arguido e ao Ministério
Público (Acórdão n.º 344/93)”.
84. Ou seja, é a própria Lei da Concorrência que implicitamente reconhece a
diferente ressonância ética destes assuntos.
85. Aliás, será interessante verificar que a AdC tem poderes que muito se
assemelham aos poderes do MP em sede de inquérito – vide artigo 17.º da Lei da
Concorrência.
86. Ou seja, o processo contra-ordenacional da concorrência, em termos de
valoração ética, é um processo penal, a exigir as correspondentes garantias de
defesa e um verdadeiro processo equitativo.
87. Por fim, o que se constata é que a Mm.a Juiz a quo omitiu do seu raciocínio
a razão de ser da “contestação” da Recorrente, isto é, o carácter gravoso da
conduta e a seriedade do “castigo” a que estão sujeitos os prevaricadores, além
de não se pronunciar sobre as regras de procedimento junto da Comissão Europeia,
da qual a lei da concorrência portuguesa é um mero decalque, ressalvado o
respeito devido aos seus autores.
88. Ao não dar provimento a estes pedidos, a Mm.a Juiz a quo violou a Lei.
Da incompetência da AdC para aplicar coimas por força do artigo 81.ºdo Tratado
CE
89. Por força do princípio da legalidade – decorrente do artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição –, exige-se que se estabeleçam tipos contra-ordenacionais precisos,
sob pena de indeterminação do conteúdo da norma, da mesma forma que se afasta o
recurso à analogia.
90. Ora, no que respeita ao artigo 81.º do Tratado da CE, a AdC pode em
conformidade com o estabelecido no artigo 5.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003,
alternativa ou cumulativamente, exigir que seja posto termo à infracção; ordenar
medidas provisórias; aceitar compromissos; aplicar coimas, sanções pecuniárias
compulsórias ou qualquer outra sanção prevista pelo respectivo direito nacional.
91. Acontece, porém, que o artigo 43.º da Lei da Concorrência tem sempre por
referência o artigo 4.º da mesma lei e nunca faz remissão para qualquer outro.
92. E, como claramente se lê no artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, este
restringe-se, nos seus próprios termos, a decisões da Comissão Europeia.
93. A interpretação do Tribunal a quo de que a previsão do artigo 5.º do
Regulamento 1/2003, quando se refere a “sanções previstas no direito nacional” é
o bastante, é incorrecta e viola o princípio da legalidade decorrente do artigo
18.º da CRP, já que, como se disse, a legislação nacional – artigo 43.º da Lei
da Concorrência, não tem qualquer menção ao predito artigo 81.º do Tratado.
94. Por outro lado, jamais se poderá considerar, atenta a linguagem comummente
utilizada pelo legislador comunitário, que o Regulamento 1/2003 constitui
“legislação nacional”.
(…)
Da Ilegitimidade da Autoridade administrativa para punir a OM
XV. A AdC não tem competência legal para sancionar a Ordem dos Médicos.
XVI. A lei autoriza a subsunção das ordens profissionais, enquanto entidades
(auto‑)reguladoras, ao conceito de «entidades reguladoras sectoriais», para
efeitos de caracterização da sua relação com a AdC como de colaboração – vide
artigo 15.º da Lei n.º 18/2003.
XVII. E, nesta medida, não se vislumbra que a AdC tenha competência para
instaurar processos sancionatórios contra as demais entidades reguladoras
sectoriais, como seja, a CMVM ou a ANACOM.
XVIII. A Ordem dos Médicos é uma pessoa colectiva pública.
XIX. Se é certo que as contra‑ordenações previstas na Lei da Concorrência se
aplicam, de facto, a pessoas colectivas, nada no referido diploma aponta para
que as pessoas colectivas públicas tenham sido abrangidas pelo legislador; bem
pelo contrário, um conjunto de elementos literais, históricos, sistemáticos,
estruturais e teleológicos indiciam a solução oposta.
XX. Tratando‑se de uma questão extremamente delicada, que comporta opções de
fundo de política criminal, seria de esperar uma menção expressa por parte do
legislador; não existindo essa indicação, o intérprete deverá rejeitar a
aplicação de sanções desta natureza a pessoas colectivas públicas por violações
do direito nacional da concorrência, não só em razão dos argumentos referidos,
mas também porque estamos aqui perante matéria de direito sancionatório
público.
XXI. Uma interpretação da Lei da Concorrência que submeta as ordens
profissionais ao direito nacional da concorrência é inconstitucional, porquanto,
não tendo o legislador democrático sido explícito nessa inclusão, deverá
prevalecer, prima facie, a garantia constitucional da autonomia das associações
públicas – artigo 267.º da CRP.
XXII. A OM integra a administração autónoma do Estado, pelo que apenas está
submetida à tutela do Governo (artigo 199.º, alínea d), da CRP), tutela que não
pode ser delegada e que não integra poderes sancionatórios.
XXIII. A sentença recorrida, ao não decidir neste sentido, violou o artigo
267.º, n.º 4, da CRP.
XXIV. O aresto sob recurso considerou, todavia, que o carácter transversal da
autoridade administrativa e o facto de a OM ser um organismo de representação e
promoção do interesse de uma classe, são o bastante para declarar a
improcedência desta questão.
XXV. Ora, a transversalidade da actuação da AdC é contraposta à «sectorização»
das outras autoridade reguladoras, que, por isso mesmo, se designam autoridades
reguladoras sectoriais.
XXVI. Não é a circunstância de abranger todas as áreas da actividade económica
que atribui à AdC legitimidade pára punir a OM.
XXVII. Primeiro porque a OM não exerce qualquer actividade económica, sendo
antes uma entidade reguladora, em rigor, uma entidade auto‑reguladora sectorial.
XXVIII. Esta sua natureza regulatória resulta também dos Estatutos da Entidade
Reguladora da Saúde (ERS), que exclui do seu âmbito as competências atribuídas
às Ordens profissionais do sector da saúde.
XXIX. O que decorre dos Estatutos é que a OM tem por fim a defesa dos interesses
da profissão e não directamente dos profissionais, o que não é pura semântica,
mas antes matéria de grande relevo e com toda uma outra ressonância valorativa.
XXX. Conclui‑se, assim, que a Autoridade da Concorrência não tem legitimidade
para sancionar a OM.
(…)
Da ausência de auditor/instrutor independente
XLI. Alegou a recorrente que o processo administrativo da concorrência carece
de isenção e imparcialidade por não existir a figura do instrutor independente,
ao contrário do que se verifica nos processos administrativos da concorrência
que correm perante a Comissão Europeia, facto que afectaria a decisão da AdC de
inconstitucionalidade.
XLII. Entendeu o M.mo Juiz a quo que, querendo o legislador aplicar o regime
processual das contra‑ordenações a este tipo de processos, não existe
necessidade de tão fortes exigências em termos de garantias de defesa, dada a
diferente ressonância ética dos valores discutidos num e noutro processo.
XLIII. Ao decidir da forma como o fez, a M.ma Juiz a quo violou a Lei,
designadamente os artigos 39.° e 40.° do CPP e o artigo 41.º, n.º 2, do RGCO.
XLIV. Tal interpretação é também inconstitucional por violação do preceituado
nos artigos 32.º, n.º 10, e 266.º, n.º 2, da CRP.
Da incompetência da AdC para aplicar coimas ao abrigo do artigo 81.º do Tratado
CE
XLV. O princípio da legalidade (artigo 18.º, n.º 2, da CRP) exige que se
estabeleçam tipos contra‑ordenacionais precisos, afastando o recurso à
analogia.
XLVI. Ora, o artigo 43.º da Lei da Concorrência não faz qualquer menção ao
artigo 81.º do Tratado CE.
XLVII. E o artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003, que determina o tipo
contra‑ordenacional pela violação ao artigo 81.º do Tratado, restringe‑se, pelos
seus próprios termos, a decisões da Comissão Europeia.
XLVIII. Deste modo, a AdC apenas pode aplicar coimas por violações ao artigo 4.º
da Lei da Concorrência e não por violações ao artigo 81.º do Tratado, pois não
existe pena sem lei.
XLIX. Ora, o certo é que a OM foi condenada por violação ao artigo 81.º do
Tratado CE, mas esse comportamento não está tipificado na lei portuguesa, não
existindo, por conseguinte, qualquer coima para tal infracção.
L. Nessa medida, não existindo lei que a preveja, a coima não poderia ser
aplicada.
LI. Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo viola a CRP no seu artigo 18.º
LII. É, portanto, inconstitucional o artigo 43.º da Lei da Concorrência quando
interpretado no sentido de incluir na sua previsão as violações ao artigo 81.º
do Tratado CE, por violação do citado artigo 18.º da CRP».
3. Em 22 de Novembro de 2007, o Tribunal da Relação de Lisboa acordou em negar
provimento aos recursos interpostos pela Ordem dos Médicos, rejeitando-os
liminarmente, por manifesta improcedência. Com relevo para a presente decisão,
extrai-se do acórdão recorrido o seguinte:
«A recorrente veio pôr em crise a matéria fáctica apurada. No entanto, nos
termos do disposto no art.° 75.° n.° 1 do R.G.C.O., esta Relação apenas pode
conhecer da matéria de direito, sendo que aquela só poderá ser colocada em causa
caso se verifique algum dos vícios do art.° 410.° n.°s 2 e 3 do C.P.Penal.
Efectuado o exame preliminar foi considerado haver razões para a rejeição do
recurso por manifesta improcedência (art. 420°, n° 1 CPP) sendo por isso
determinada a remessa dos autos aos vistos para subsequente julgamento na
conferencia (art. 419.°, n.° 4, al. a) CPP).
(…)
Por outro lado, julgamos competente o Tribunal do Comércio materialmente
competente para apreciar o recurso interposto pela Ordem dos Médicos da decisão
da Autoridade da Concorrência de 26.05.06 que lhe aplicou uma coima no valor de
€ 250.000,00, bem como a sanção acessória aplicada (vd. art. ° 50º n.° 1 do
regime jurídico da concorrência aprovado pela Lei 18/2003 de 11 .06),
improcedendo o recurso interposto:
“Assim, refere a Recorrente que “importa levantar a questão de saber se este
Tribunal pode apreciar decisões da O.M., designadamente o artigo do Código
Deontológico que a autoridade administrativa considera “nulo” e que está na base
do presente processo de contra-ordenação.” (cfr. ponto 7 das alegações da
Recorrente). Antes de mais, clarifique-se que o Tribunal de Comércio de Lisboa
não foi chamado pela Recorrente – reitere-se – a “apreciar decisões da O.M.” mas
antes uma decisão da Autoridade da Concorrência. Ademais, note-se que, ao
contrário do que sustenta a Recorrente, a AdC não considerou “nulo” o artigo do
Código Deontológico invocado, tendo sido, aliás, a própria Ordem dos Médicos
(como admite nos pontos 313 e 315 das suas alegações) a, em momento anterior à
emissão da própria decisão recorrida, revogar tal artigo e, bem assim, suspender
a vigência do Código de Nomenclatura em apreço. Certo é que a “presente questão”
de que fala a Recorrente não pode confundir-se com qualquer decisão da Ordem dos
Médicos ou declaração de nulidade de um artigo do respectivo Código Deontológico
que se encontra já revogado, pelo que, como se afigura por demais evidente,
nenhuma razão se vislumbra para que o Tribunal do Comércio se declarasse, in
casu, incompetente.
E note-se que é bastante tal argumento para deitar por terra a frágil invocação
da inconstitucionalidade do artigo 50.º, n.° 1 da Lei da Concorrência, em que,
displicentemente, incorre a Recorrente. Sustenta, assim, a Recorrente que, pelo
facto de determinar que “Das decisões da Autoridade que determinem a aplicação
de coimas ou de outras sanções previstas na lei cabe recurso para o Tribunal de
Comércio de Lisboa, com efeito suspensivo” deverá julgar-se inconstitucional o
aludido artigo da Lei da Concorrência, face ao disposto nos artigos 211.°, n.° 1
e 212.°, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP), os quais
delimitam a jurisdição dos tribunais judiciais e dos tribunais administrativos e
fiscais, estipulando este último preceito a competência dos tribunais
administrativos e fiscais para o “julgamento das acções e recursos contenciosos
que tenham por objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas
administrativas e fiscais”. Ora, perante tal argumentação, cabe, desde logo,
reiterar que o objecto dos presentes autos cinge-se à decisão proferida pela
Autoridade da Concorrência no exercício dos seus poderes sancionatórios em sede
de procedimento contra-ordenacional, não estando, pois, em causa, neste âmbito e
por esse motivo, qualquer “relação jurídica administrativa”. Na verdade, é a
própria Lei Fundamental que reconhece autonomia ao direito contra-ordenacional
ou de mera ordenação social face aos demais ramos de direito, maxime, o direito
administrativo. Com efeito, prevê-se no artigo 165.°, n.° 1, alínea d), da CRP,
que “É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as
seguinte matérias, salvo autorização ao Governo: (...) d) Regime geral de
punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera
ordenação social e do respectivo processo”. Ora, é no âmbito de tal previsão e
consagração constitucional que se inserem os poderes sancionatórios e
competências conferidas à AdC em sede de direito de mera ordenação social. Posto
isto, cumpre salientar que este ramo do direito, o de mera ordenação social, não
poderá, em caso algum, confundir-se com o direito administrativo nem tão-pouco
poderão os actos e práticas por aquele abrangidos ser configurados como
“relações jurídicas administrativas”. Como referem Mário e Rodrigo Esteves de
Oliveira. “É preciso (...) não confundir os factores de administratividade de
uma relação jurídica com os factores que delimitam materialmente o âmbito da
jurisdição administrativa” (in Código de Processo nos Tribunais Administrativos
Volume I – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais – Anotados, 2004,
pág. 26). É que o direito de mera ordenação social foi concebido para ser
aplicado pelas autoridades administrativas, e não pelo poder judicial, sendo que
tal não significa que o mesmo se reconduza ao direito administrativo. Na
verdade, o direito de mera ordenação social “surge por contraposição,
justamente, ao direito penal, está de certa maneira em relação com aquilo que
tradicionalmente seria o direito das contravenções, ou o direito
contravencional” (Teresa Beleza, Direito Penal, Volume I, pág. 131, 2.a Edição).
Para Figueiredo Dias “o direito de mera ordenação não é filho ou herdeiro de um
direito penal administrativo já falecido, não é a sua máscara presente, mas é
sim limite negativo de um direito penal administrativo que evoluiu e surge hoje
renovado sob a face do direito penal secundário” (Direito e Justiça, Volume IV,
1989/1990, pág. 22) (realce nosso). Encontramo-nos, pois, inequivocamente,
perante um direito penal secundário cujas raízes e aforamentos recentes em
nenhum ponto poderão confundir-se com o direito administrativo e com a regulação
das “relações jurídicas administrativas”. Ora, in casu, a decisão recorrida,
como se deixou demonstrado à exaustão, foi adoptada no âmbito de um processo
contra-ordenacional, do qual foi incumbida a Autoridade através dos seus
Estatutos, da Lei da Concorrência e, bem assim, do próprio Texto Constitucional.
Mas mesmo que assim não se entendesse, o que por mero dever de patrocínio se
concebe, também por outra via se concluiria pelo desacerto da tese propugnada
pela Recorrente. Assim, esclarecem Mário e Rodrigo Esteves de Oliveira, em
anotação ao artigo 1.º n.° 1, do ETAF, que “Quanto à questão de saber da
conformidade material das cláusulas “aditivas” e “subtractivas” da competência
dos tribunais administrativos, por referência ao âmbito natural da sua
jurisdição (consagrado no citado art. 212.º/3 da CRP), respondeu-se na Exposição
de Motivos da Proposta de Lei n.° 93/VIII apresentada pelo Governo à Assembleia
da República – e que deu origem ao ETAF –, que a Constituição não estaria a
instituir aí uma reserva material absoluta de competência dos tribunais
administrativos, que impedisse o legislador ordinário de atribuir a outras
jurisdições o julgamento de questões administrativas, e à jurisdição
administrativa o julgamento de questões não administrativas.” (ob. cit. 2004,
pág. 21). Ora, encontrando-se o direito de mera ordenação constitucionalmente
previsto e tendo o legislador ordinário estabelecido expressamente, nesse
âmbito, a competência do douto Tribunal de Comércio para julgar as impugnações
das decisões da Autoridade em sede de processos contra-ordenacionais, nunca
poderia tal previsão – a constante do artigo 50.°, n.° 1, da Lei n.° 18/2003, de
11 de Junho – ser julgada violadora do disposto nos artigos 212.°, n.° 3 e
211.°, n.° 1, da CRP, ao invés do que pretende a Recorrente sustentar.
Note-se, ainda, que assume, a este propósito, extrema relevância o facto de, nos
termos do disposto nos artigos 32.° e 41.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de
Outubro, o qual estabelece o Regime Geral das Contra-Ordenações (RGCO), o
direito penal e o direito processual penal constituírem direito subsidiário face
ao aludido regime geral, ao qual a própria Recorrente reconduz a decisão
recorrida, invocando mesmo tal regime como aplicável à situação ora objecto de
apreciação ao longo das suas alegações. Ora, como se afigura evidente, em caso
algum poderia sustentar-se que os tribunais administrativos viessem a aplicar,
tão-somente por se tratarem de factos imputáveis a uma pessoa colectiva de
natureza administrativa, normas de direito penal e processo penal, carecendo,
assim, de qualquer sentido, a impugnação de processos contra-ordenacionais,
ainda que envolvendo entidades administrativas, junto da jurisdição
administrativa. A resposta vai, pois, evidentemente, no sentido de serem
materialmente incompetentes os tribunais administrativos para conhecerem dos
recursos interpostos em sede de direito de mera ordenação social, o que,
naturalmente, determina a inexistência de qualquer inconstitucionalidade do
artigo 50.°, n.° 1, da Lei da Concorrência.
A sufragar todo o exposto, e contrariamente ao que pretende a Recorrente,
veja-se o teor dos artigos 4.°, n.° 1, alínea b), do Estatuto dos Tribunais
Administrativos e Fiscais (ETAF), 10.º do Decreto-Lei n.° 10/2003, de 18 de
Janeiro, (os quais são, aliás, invocados pela Recorrente para sustentar a tese
que apresenta) e, bem assim, o artigo 50°. n.° 1, da Lei da Concorrência. Com
efeito, estabelece o artigo 4.°, n.° 1, alínea b), do ETAF que “Compete aos
tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que
tenham nomeadamente por objecto: (...) b) Fiscalização da legalidade das normas
e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao
abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a
verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da
invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração”.
Ora, in casu, e como se deixou dito, não se encontra o Tribunal de Comércio
incumbido de proceder a qualquer fiscalização das normas ou actos emanados da
Ordem dos Médicos nem tão-pouco de aferir da sua eventual invalidade. O que está
em causa nos presentes autos é a sindicância da legalidade e mérito da decisão
de condenação em processo contra-ordenacional emanada da Autoridade da
Concorrência, a qual, note-se, não declarou a invalidade de qualquer norma do
Código Deontológico da Recorrente, antes condenando a mesma, em sede de processo
contra-ordenacional – e não administrativo – ao pagamento de uma coima e à
publicação da decisão ora recorrida em virtude da verificação de uma prática
restritiva da concorrência em que incorreu a Ordem dos Médicos, situação que
claramente foge ao escopo dos Tribunais Administrativos e Fiscais e,
especificamente, do artigo 4.°, n.° 1, alínea b), do ETAF.
Por sua vez, mais patente se afigura a confusão e desacerto em que incorre a
Recorrente ao invocar o artigo 10.° do Decreto-Lei n.° 10/2003, de 18 de
Janeiro, o que faz no ponto l1 das suas alegações. Consagra o aludido preceito
que “Até à entrada em vigor de diploma que estabeleça o regime processual dos
recursos a que se refere o n. ° 2 do artigo 38.º dos Estatutos anexos a este
diploma, as decisões aí previstas são impugnáveis junto dos tribunais
administrativos, de acordo com as regras gerais aplicáveis ao contencioso
administrativo.” (sublinhado nosso). Importa, pois, atentar no que se estabelece
no n.° 2 do mencionado artigo 38.° dos Estatutos da Autoridade da Concorrência:
“As decisões da Autoridade proferidas em procedimentos administrativos,
respeitantes a matéria de concorrência, bem como a decisão ministerial a que
alude o artigo 34.º deste diploma, são igualmente impugnáveis junto do Tribunal
de Comércio de Lisboa.” (realce nosso). Com efeito, a norma ora citada regula,
como é notório, tão-somente as decisões de que a AdC se encontra incumbida em
sede de procedimento administrativo. São estas, pois, as previstas nos artigos
30.° a 41.º e 53.° a 55.º da Lei da Concorrência, relativas ao procedimento de
controlo de operações de concentração de empresas e, bem assim, à decisão
ministerial prevista no artigo 34.° dos Estatutos. Não se incluem, pois, neste
universo os processos contra-ordenacionais, como o que originou os presentes
autos, os quais merecem tratamento autonomizado no n.° 1 do artigo 38.° dos
Estatutos, soçobrando necessariamente qualquer tese de inclusão dos mesmos na
previsão do respectivo n.° 2, bem como no invocado artigo 10.° do Decreto-Lei
n.° 10/2003, de 18 de Janeiro. Afigura-se, pois, incorrecta a posição da
Recorrente ao tentar reconduzir a decisão recorrida à previsão dos preceitos
legais aplicáveis aos procedimentos administrativos consagrados na Lei da
Concorrência, confundindo as regras de controlo jurisdicional em processos de
contra-ordenação com o controlo jurisdicional em sede de procedimentos
administrativos, ambos insertos nas atribuições da Autoridade da Concorrência.
Do exposto resulta, pois, de forma inequívoca, e ao invés do que sustenta a
Recorrente, ser o Tribunal de Comércio de Lisboa o tribunal competente para
apreciar os presentes autos, não consubstanciando tal apreciação qualquer
violação dos artigos 211.°, n.° 1, 212.°, n.° 3, e 204.° da CRP, carecendo,
assim, de fundamento a pretensão de inconstitucionalidade do artigo 50.°, n.° 1
da Lei n.° 18/2003, de 11 de Junho, alegada pela Recorrente».
4. A Ordem dos Médicos recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional.
Convidada pelo relator para o efeito previsto nos nºs 5 e 6 do artigo 75º-A da
LTC, a recorrente respondeu do modo seguinte:
«1. Quanto às decisões a julgar, a recorrente esclarece que pretende ver
apreciadas as decisões (as partes da decisão final) do Tribunal da Relação de
Lisboa sobre cada uma das inconstitucionalidades invocadas nas alegações do
recurso interposto da decisão final e da decisão interlocutória, ambas
proferidas pelo Tribunal de Comércio de Lisboa, a saber:
a. A interpretação normativa segundo a qual o artigo 50.º da Lei n.º
18/2003, ao atribuir competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa para apreciar
a conduta de uma associação pública, será conforme os artigos 212.º, n.º 3, e
211.º, n.º 1, da CRP, inconstitucionalidade invocada nas alegações do recurso
interlocutório interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão
interlocutória proferida pelo Tribunal de Comércio de Lisboa;
b. A decisão que considera constitucional a interpretação do artigo
1.º da Lei n.º 18/2003, segundo a qual as Ordens Profissionais e, em particular,
a Ordem dos Médicos, estão sujeitas ao direito nacional da concorrência, não
configurando portanto qualquer violação dos artigos 267.º, n.º 4, e 199.º,
alínea d), da CRP, inconstitucionalidade que foi invocada nas alegações de
recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa e que antes também fora invocada
nas alegações de recurso para o Tribunal de Comércio de Lisboa;
c. A decisão que considera conformes com os artigos 32.º, n.º 10, e
266.º, n.º 2, da CRP os artigos 17.º, 19.° e 22.° da Lei n.º 18/2003, quando
interpretados no sentido de não ser aplicável aos processos
contra‑ordenacionais abertos no âmbito da Lei da Concorrência o disposto nos
artigos 39.° e 40.º do CPP, inconstitucionalidade que foi invocada nas
alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa;
d. A decisão que considera conforme com o artigo 18.º da CRP a
interpretação do artigo 43.º da Lei n.º 18/2003, segundo a qual este normativo,
ao fazer uma remissão directa para o Regulamento CE n.º 1/2003, confere à
Autoridade da Concorrência o poder de aplicar coimas pela violação do artigo
81.º do Tratado da Comunidade Europeia, inconstitucionalidade que foi invocada
nas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa;
e. A decisão que considerou constitucional a interpretação segundo a
qual o artigo 75.º do RGCO, ao limitar o recurso em 2.ª instância à matéria de
direito, não viola os artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.º 1, todos da CRP,
inconstitucionalidade que foi invocada nas alegações do recurso interposto para
o Tribunal da Relação de Lisboa.
2. A Recorrente entende que, deste modo, fica indicado com precisão o objecto do
recurso interposto para este douto Tribunal».
5. Por despacho do relator, a recorrente e os recorridos foram notificados para
alegar e para se pronunciarem, querendo:
«sobre a eventualidade de não se conhecer do recurso:
– quanto à segunda questão de constitucionalidade enunciada no requerimento de
interposição de recurso, reportada ao artigo 1.º da Lei n.º 18/2003, por se
poder entender que, na parte correspondente da motivação do recurso da
recorrente para o Tribunal da Relação de Lisboa (n.ºs 20. a 49. e conclusões XV
a XXX), não foi adequadamente individualizada a norma arguida de
inconstitucional; e
– quanto às terceira e quarta questões de constitucionalidade enunciadas no
mesmo requerimento, reportadas aos artigos 17.º, 19.º, 22.º e 43.º da Lei n.º
18/2003, por se poder entender que, nas partes correspondentes da motivação do
recurso para a Relação (respectivamente, n.ºs 64. a 88, e conclusões XLI a
XLIV, e n.ºs 89. a 94, e conclusões XLV a LII), a violação da Constituição foi
directamente imputada a decisões judiciais, em si mesmas consideradas, não tendo
a recorrente identificado, com precisão, qual o sentido das interpretações
normativas que reputava inconstitucionais».
6. A recorrente alegou, concluindo o seguinte:
«I. O objecto do processo contra‑ordenacional movido pela Autoridade da
Concorrência contra a requerente põe em causa a validade das normas aprovadas
no uso do poder próprio da Ordem dos Médicos, enquanto associação pública.
II. Estando em causa a validade das normas regulamentares aprovadas no uso do
poder próprio da Ordem dos Médicos e sendo claros os preceitos constitucionais e
legais sobre a reserva material da jurisdição administrativa, o artigo 50.º, n.º
1, da Lei n.º 18/2003 é inconstitucional quando interpretado no sentido de o
Tribunal de Comércio de Lisboa ser competente para apreciar da legalidade dos
regulamentos emanados pela Ordem dos Médicos, no âmbito das competências que lhe
estão atribuídas por lei, mesmo que o faça no âmbito de um processo
contra‑ordenacional se este processo tiver por objecto tais normas.
III. Tal interpretação viola os artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP.
IV. A Autoridade da Concorrência não tem competência legal para sancionar a
Ordem dos Médicos.
V. Se é certo que as contra‑ordenações previstas na Lei da Concorrência se
aplicam, genericamente, a pessoas colectivas, nada no referido diploma aponta
para que as pessoas colectivas públicas tenham sido abrangidas pelo legislador,
antes pelo contrário, já que um conjunto de elementos literais, históricos,
sistemáticos, estruturais e teleológicos indiciam a solução contrária.
VI. Conclui‑se assim que a interpretação que o Tribunal recorrido fez do artigo
1.º da Lei n.º 18/2003 é desconforme à Constituição, designadamente ao artigo
267.º, n.º 4, devendo, portanto, ser declarada inconstitucional.
VII. Os processos instaurados pela Autoridade da Concorrência em matéria de
concorrência são preparados, instruídos e julgados pela mesma entidade, sem
garantir a isenção e a imparcialidade do julgador.
VIII. Fundindo‑se o instrutor e o julgador na mesma pessoa/órgão/entidade, como
é o caso, o segundo nunca terá a distância e a imparcialidade que lhe é
exigível, nem o visado as garantias constitucionalmente reconhecidas em processo
penal nesta matéria.
XI. São, por isso, inconstitucionais os artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei n.º
18/2003, de 11 de Junho, quando interpretados no sentido de não serem
aplicáveis aos processos contra‑ordenacionais abertos no âmbito da Lei da
Concorrência as regras dos artigos 39.º e 40.º do CPP, por violação do
preceituado no n.º 10 do artigo 32.º e no n.º 2 do artigo 266.º, ambos da CRP.
X. Por força do princípio da legalidade – decorrente do artigo 18.º, n.º 2, da
Constituição – exige‑se que se estabeleçam tipos contra‑ordenacionais precisos,
sob pena de indeterminação do conteúdo da norma, da mesma forma que se afasta o
recurso à analogia.
XI. Sucede que o artigo 43.º da Lei da Concorrência tem sempre por referência o
artigo 4.º da mesma lei e nunca faz remissão para o artigo 81.º do TUE.
XII. E, como claramente se lê no artigo 23.º do Regulamento (CE) n.º 1/2003,
este restringe‑se, nos seus próprios termos, a decisões da Comissão Europeia.
XIII. Nesta medida, a interpretação feita pelo Tribunal a quo de que a previsão
do artigo 5.º do Regulamento n.º 1/2003, quando se refere a «sanções previstas
no direito nacional», é o bastante para atribuir competência à Autoridade da
Concorrência, é incorrecta e viola o princípio da legalidade decorrente do
artigo 18.º da CRP, já que, como se disse, a legislação nacional – artigo 43.º
da Lei da Concorrência – não tem qualquer menção ao predito artigo 81.º do
Tratado.
XIV. O artigo 75.º do RGCO não permite que os arguidos em processo
contra‑ordenacionais interponham recurso para a Relação sobre a matéria de
facto, o que constitui mais uma violação da CRP, como se passa a demonstrar.
XV. Dispõe o artigo 75.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro,
que «se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá
da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões».
XVI. Ou seja, em matéria contra‑ordenacional, independentemente da natureza da
infracção ou do montante da coima aplicada, o arguido não tem hipótese de
impugnar o juízo que o tribunal de primeira instância formulou sobre os factos
ou a valoração da prova.
XVII. Esta limitação constitui uma violação do direito de acesso ao direito e
aos tribunais (artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP) e do princípio consagrado no
artigo 32.º, n.º 1, da CRP, que determina que «o processo criminal assegura
todas as garantias de defesa, incluindo o recurso».
XVIII. Ora, é jurisprudência assente do Tribunal Constitucional, mesmo antes da
revisão constitucional de 1997, que em matéria penal a Constituição consagra o
princípio do duplo grau de jurisdição, na medida em que o direito ao recurso
integra o núcleo essencial das garantias de defesa previstas no já referido
artigo 32.º (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 415/2001, Proc. n.º
160/2001).
XIX. A aplicação do artigo 75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra‑Ordenações
(RGCO) implica uma severa diminuição das garantias de defesa da arguida.
XX. Por outro lado, impedir uma segunda análise da matéria de facto por um
Tribunal superior constitui também, e como já se aflorou, uma violação do
direito de acesso ao direito e do direito a um processo equitativo.
XXI. Com efeito, a autoridade administrativa tem o privilégio de fixar
inicialmente os factos que considera relevantes para efeitos da aplicação de
uma coima.
XXII. Posteriormente, em juízo, tem a arguida que se defender da acusação,
procurando contrariar o sentido da decisão, carreando novos factos e meios de
prova aos autos.
XXIII. O juiz conhecerá dos factos em causa de acordo com a ponderação que faz
da prova produzida.
XXIV. Sendo que essa é a única e a última oportunidade que a arguida tem para
suscitar a apreciação judicial da decisão da autoridade administrativa no que à
matéria de facto respeita.
XXV. Ora, esta interpretação, quando aplicada aos processos da concorrência, em
que as multas atingem valores muito elevados, em muito superiores às multas
aplicadas no âmbito do Código Penal, não é consentânea com a Convenção Europeia
dos Direitos do Homem nem com o espírito presente no n.º 10 do artigo 32.º da
CRP.
XXVI. Razão pela qual se deverá decidir que o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO,
quando aplicado aos processos de contra‑ordenação previstos na Lei da
Concorrência, é inconstitucional, por violação dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º,
n.ºs 1 e 4, da CRP.
Nestes termos, requer‑se sejam declaradas inconstitucionais as seguintes normas:
· Artigo 50.º, n.º 1, da Lei n.º
18/2003, de 11 de Junho, por violação dos artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1,
da CRP;
· Artigo 1.º da Lei n.º 18/2003,
de 11 de Junho, por violação dos artigos 267.º, n.º 4, e 199.º, alínea d), da
CRP;
· Artigos 17.º, 19.º e 22.º da
Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, por violação do preceituado no n.º 10 do
artigo 32.º e no n.º 2 do artigo 266.º, ambos da CRP;
· Artigo 43.º da Lei n.º 18/2003,
de 11 de Junho, por violação do artigo 18.º da CRP;
· Artigo 75.º do Regime Geral das
Contra‑Ordenações, por violação dos artigos 20.º, n.ºs 1 e 4, e 32.º, n.º 1, da
CRP».
7. O Ministério Público contra-alegou, da seguinte forma:
«1. Apreciação da questão de constitucionalidade suscitada.
O presente recurso vem interposto, pela ORDEM DOS MÉDICOS, do Acórdão, proferido
em matéria contraordenacional, pela Relação de Lisboa, a p. 443 e segs.,
rejeitando a impugnação deduzida por aquela entidade.
Concordando inteiramente com a delimitação do objecto do recurso, realizado pelo
douto despacho de p. 555, apenas se irá apreciar o mérito das questões elencadas
no requerimento de interposição do recurso, de p. 551, sob as alíneas a) e e).
Ambas as questões de constitucionalidade, ali delineadas pela entidade
recorrente, se configuram como manifestamente improcedentes.
Desde logo – e movendo-nos no âmbito do processo contraordenacional – é evidente
que não afronta a reserva material da jurisdição administrativa a circunstância
de o pleito estar cometido a um tribunal judicial (o Tribunal de Comércio de
Lisboa): na verdade, o Tribunal Constitucional tem interpretado com alguma
margem de flexibilidade o dito princípio constitucional, proclamado pelo artigo
214º, nº 3, da Constituição da República Portuguesa (cf. v.g. o recente Acórdão
nº 211/07), nunca tendo originado qualquer dúvida a legitimidade de outorga de
competência aos tribunais judiciais para apreciarem a impugnação de decisões
administrativas sancionatórias com coima, tomadas pela competente autoridade.
É, por outro lado, manifesto que o Tribunal competente para apreciar o objecto
da acção – no caso, a legalidade da decisão administrativa sancionatória – tem
naturalmente competência para, no âmbito do recurso contraordenacional, apreciar
todas as questões que incidentalmente se mostrem necessárias ao julgamento do
objecto da causa: não se trata, deste modo, e ao contrário do que sustenta a
recorrente, de atribuir aos tribunais judiciais competência para directamente
apreciarem a legalidade de regulamentos editados por uma Associação Pública –
mas antes e tão – somente de valorarem incidentalmente tal matéria, como
“questão prejudicial”, relativamente à dita – e impugnada – aplicação de uma
coima.
Igualmente improcedente é a última questão de constitucionalidade suscitada em
sede de “direito ao recurso” sobre a matéria de facto – sendo manifesto que a
Lei Fundamental não impõe que o arguido goze, em processo contraordenacional, de
um novo grau de jurisdição, envolvendo a reapreciação da matéria de facto que já
foi reapreciada pelo tribunal de 1ª instância, na sequência do recurso
interposto da decisão administrativa (cf. Acórdão nº 73/07).
2. Conclusão
Nestes termos e pelo exposto conclui-se:
1º
O princípio constitucional da reserva material de jurisdição administrativa não
obsta a que os recursos em matéria contraordenacional sejam apreciados pelos
tribunais judiciais.
2º
Nenhum princípio constitucional impõe que, em processo contraordenacional,
esteja cometido à Relação o exercício de um duplo grau de jurisdição quanto à
matéria de facto, já devida e plenamente reapreciada pelo tribunal de 1ª
instância, na sequência do recurso da decisão sancionatória com coima.
3º
Termos em que deverá improceder o presente recurso».
A Autoridade da Concorrência contra-alegou, concluindo, entre o mais, que:
«A) Considerando os pressupostos de conhecimento do recurso pelo Tribunal
Constitucional elencados nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2, da
LTC, ressalta com clareza, no caso concreto, da simples leitura das alegações
da recorrente junto do Tribunal a quo, que as questões de constitucionalidade
colocadas nos pontos I, II e III das alegações a que ora se responde não foram
invocadas de forma a poderem ser sindicadas por este Venerando Tribunal.
B) Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1,
alínea b), da LTC, constitui seu pressuposto processual a colocação da questão
de constitucionalidade, durante o processo, de modo processualmente adequado
perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, in casu, o Tribunal da
Relação de Lisboa, em termos de este estar obrigado a dela conhecer (cf. artigo
72.º, n.º 2, da LTC).
C) In casu, e relativamente às segunda, terceira e quarta questões de
constitucionalidade que invoca (respeitantes, respectivamente, ao artigo 1.º,
aos artigos 17.º, 19.º e 22.º, e ao artigo 43.º, todos da Lei n.º 18/2003), a
recorrente não deu cumprimento a tal pressuposto essencial de conhecimento do
presente recurso pelo Venerando Tribunal Constitucional.
D) Relativamente à segunda questão de constitucionalidade enunciada no
requerimento de interposição de recurso para o Tribunal ad quem, reportada ao
artigo 1.º da Lei n.º 18/2003, é manifesto que a recorrente, nas suas alegações
de recurso e respectivas conclusões junto do Tribunal a quo, não procedeu à
necessária individualização e indicação, concreta e inequívoca, da norma que
reputa de inconstitucional.
E) E o mesmo se afirme quanto às terceira e quarta questões de
constitucionalidade (relativas, respectivamente, aos artigos 17.º, 19.º e 22.º
e ao artigo 43.º, todos da Lei n.º 18/2003) suscitadas no requerimento da
recorrente. Também a esse propósito, não dá a recorrente cumprimento a tal
pressuposto, neste caso por não ter identificado, com precisão, a interpretação
ou a dimensão normativa que tem por violadora da CRP.
F) Especificamente no que concerne à terceira questão de constitucionalidade
suscitada, a recorrente, nos pontos 64.º a 88.º das suas alegações de recurso
para o Tribunal a quo e, bem assim, nos pontos XLI a XLIV das respectivas
conclusões, tece as mais variadas considerações sobre os regimes processual
penal e contra‑ordenacional e, bem assim, o regime processual constante da Lei
n.º 18/2003, relativo aos processos por infracção do direito da concorrência,
contrapondo‑os e comentando as respectivas diferenças, para concluir, sem mais,
pela inconstitucionalidade dos artigos 17.º, 19.º e 22.º da Lei n.º 18/2003. O
que a recorrente não faz – e impunha‑se que fizesse – é esclarecer qual a
interpretação que, no seu entender, atento o regime previsto nos identificados
artigos do CPP, determinaria a inconstitucionalidade daqueles preceitos da Lei
n.º 18/2003.
G) Tal situação é determinante da impossibilidade de ser conhecida pelo Tribunal
ad quem a questão de constitucionalidade a que alude a recorrente no ponto III
das alegações a que ora se responde.
H) Também no que concerne à quarta questão de constitucionalidade suscitada, é
patente a ausência de concreta enunciação da interpretação normativa que a
recorrente reputa inconstitucional nas suas alegações junto do Tribunal da
Relação de Lisboa. Assim sendo, cumpre necessariamente concluir não ter a
recorrente, também aqui, observado o pressuposto de conhecimento do recurso pelo
Venerando Tribunal Constitucional que impunha a identificação concreta e
precisa, junto do Tribunal a quo, do sentido ou da dimensão normativa que a
recorrente tem por violadora da Lei Fundamental.
I) Assim, afigura‑se inequívoco não poder o Tribunal ad quem conhecer das
segunda, terceira e quarta questões de constitucionalidade suscitadas no
requerimento de interposição do presente recurso.
J) Mesmo que assim não se entenda – o que não se concede e por mero dever de
patrocínio se concebe –, também por outra via sempre se imporia o não
conhecimento, pelo Venerando Tribunal Constitucional, das terceira e quarta
questões de constitucionalidade suscitadas pela ora recorrente.
K) O legislador constituinte elegeu como elemento identificador do objecto
típico da actividade do Tribunal Constitucional em matéria de fiscalização de
constitucionalidade – maxime, no domínio da fiscalização concreta – o conceito
de norma jurídica, pelo que apenas as normas poderão ser objecto de sindicância
constitucional e não já as decisões judiciais em si mesmas consideradas.
L) No que respeita à terceira questão de constitucionalidade suscitada nesta
sede, a recorrente configurou a questão em apreço, que agora reputa de
inconstitucionalidade normativa, como uma mera discordância com a decisão
adoptada pelo Tribunal de Comércio de Lisboa, considerando, nessa sede, não que
as normas em causa eram inconstitucionais mas antes não concordando com a
aplicação que delas fez o identificado Tribunal.
M) E o mesmo se afirme quanto à quarta questão de constitucionalidade suscitada
pela recorrente junto do Venerando Tribunal Constitucional, já que também aí a
recorrente, nas suas alegações e conclusões junto do Tribunal a quo, afirma
encontrar‑se perante uma inconstitucionalidade normativa (do artigo 43.º da Lei
n.º 18/2003), sendo que, na verdade, apenas discorre sobre a decisão que adoptou
o Tribunal de Comércio de Lisboa sobre o âmbito de aplicação do artigo 5.º do
Regulamento (CE) n.º 1/2003, do Conselho.
N) A recorrente, precisamente quanto à quarta questão de constitucionalidade,
não indicou, sequer, qualquer norma ou interpretação como violadora da CRP,
limitando‑se a apontar a sua divergência face à decisão judicial recorrida, no
mero plano da aplicação da lei.
O) Assim sendo, conclui‑se, inequivocamente, que o que vem impugnado pela
recorrente não são as normas constantes dos artigos 17.º, 19.º, 22.º e 43.º da
Lei n.º 18/2003, em si mesmas consideradas, mas antes a decisão judicial que as
aplicou, por via de um processo interpretativo que a recorrente reputa de
constitucionalmente proibido.
P) Tais questões – por não respeitarem a inconstitucionalidades normativas, mas
antes a pretensas inconstitucionalidades da própria decisão judicial – excedem
os poderes de cognição do Tribunal Constitucional, uma vez que, entre nós, não
se encontra consagrado o denominado recurso de «amparo», designadamente na
modalidade do «amparo» face a decisões jurisdicionais directamente violadoras
da CRP.
Q) Assim, considera‑se que as inconstitucionalidades invocadas nos pontos II,
III e IV das alegações da recorrente, por não preencherem os pressupostos
processuais do presente recurso, não devem ser conhecidas pelo Venerando
Tribunal ad quem, com as legais consequências.
R) Não obstante o que se deixou dito acerca do conhecimento do recurso, e mesmo
que assim não se entenda – o que não se concede e por mero dever de patrocínio
se concebe –, sempre se impõe a conclusão de que carece integralmente de
fundamento a argumentação expendida nos capítulos I a V das alegações da ora
recorrente, não se verificando, pois, ao invés do que pretende a mesma
sustentar, qualquer das inconstitucionalidades que invoca.
S) No que concerne à primeira das inconstitucionalidades suscitadas pela
recorrente – do artigo 50.º da Lei n.º 18/2003 face aos artigos 212.º, n.º 3, e
211.º, n.º 1, da CRP –, pela qual sustenta uma pretensa incompetência material
do Tribunal de Comércio de Lisboa para «apreciar a legalidade de normas
regulamentares emanadas da Ordem dos Médicos» (cf. ponto I das alegações da
recorrente), importará, desde logo, evidenciar o manifesto equívoco em que
incorre a recorrente, maxime, ao partir de um pressuposto manifestamente
erróneo.
T) A questão objecto de sentença do Tribunal de Comércio de Lisboa e,
posteriormente, de acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não pode
confundir‑se com qualquer decisão da Ordem dos Médicos ou declaração de
nulidade de um artigo do respectivo Código Deontológico que se encontra já
revogado. Tal questão é, tão‑somente, a de saber se a recorrente infringiu ou
não o disposto nos artigos 4.º, n.º 1, da Lei n.º 18/2003 e 81.º, n.º 1, do TCE,
nos termos decididos pela AdC.
U) A própria Lei Fundamental reconhece autonomia ao direito contra‑ordenacional
ou de mera ordenação social face aos demais ramos de direito, maxime, o direito
administrativo. Tal é o que decorre do artigo 165.º, n.º 1, alínea d), da CRP.
V) É no âmbito de tal previsão e consagração constitucional que se inserem os
poderes sancionatórios e competências conferidas à AdC em sede de direito de
mera ordenação social.
W) Cumpre salientar que este ramo do direito, o de mera ordenação social, não
poderá, em caso algum, confundir‑se com o direito administrativo nem, tão‑pouco,
poderão os actos e práticas por aquele abrangidos ser configurados como
«relações jurídicas administrativas». É que o direito de mera ordenação social
foi concebido para ser aplicado pelas autoridades administrativas, e não pelo
poder judicial, sendo que tal não significa que o mesmo se reconduza ao direito
administrativo.
X) In casu, a decisão da AdC foi adoptada no âmbito de um processo
contra‑ordenacional, do qual a mesma foi incumbida pelos seus Estatutos, da Lei
n.º 18/2003 e, bem assim, do próprio texto constitucional.
Y) Encontrando‑se o direito de mera ordenação constitucionalmente previsto e
tendo o legislador ordinário estabelecido expressamente, nesse âmbito, a
competência do Tribunal de Comércio de Lisboa para julgar as impugnações das
decisões da AdC em sede de processos contra‑ordenacionais, nunca poderia tal
previsão – a constante do artigo 50.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho – ser
julgada violadora do disposto nos artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP,
ao invés do que pretende a recorrente sustentar.
Z) Resulta, pois, de forma inequívoca, e ao invés do que sustenta a recorrente,
ser o douto Tribunal de Comércio de Lisboa o tribunal competente para apreciar
os presentes autos, não consubstanciando tal apreciação qualquer violação dos
artigos 211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP, carecendo, assim, de fundamento a
pretensão de inconstitucionalidade do artigo 50.º da Lei n.º 18/2003 alegada
pela recorrente no ponto I das suas alegações.
(…)
YY) No que concerne, igualmente, ao alegado pela recorrente no ponto V das suas
alegações, carece integralmente de fundamento a pretensa inconstitucionalidade
do artigo 75.º do RGCO face aos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP.
ZZ) Se no processo em apreço nos encontramos no âmbito do direito de mera
ordenação social, e não do direito penal, o que sempre determinaria uma
interpretação adaptada da norma constitucional invocada pela recorrente,
impõe‑se evidenciar que o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO mais do que acautela tal
previsão constitucional ao prever não uma mas duas instâncias de recurso, ainda
que uma delas limitada ao conhecimento da matéria de direito.
AAA) Não faz qualquer sentido a invocação da inexistência, in casu, de um duplo
grau de jurisdição, independentemente de nos encontrarmos no âmbito do processo
contra‑ordenacional ou penal, já que, efectivamente, a recorrente beneficiou já
de tal duplo grau, ao recorrer da decisão da AdC para o Tribunal de Comércio de
Lisboa e, consequentemente, da sentença proferida por esse Tribunal, para o
Tribunal da Relação de Lisboa.
BBB) É evidente que as garantias de defesa do arguido, incluindo a hipótese de
recurso a que alude o invocado preceito constitucional, se encontram
especificamente acauteladas pelo disposto no artigo 75.º do RGCO e, note‑se, em
grau garantisticamente superior ao que sempre resultaria da letra e ratio do
artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental e, bem assim, da constante prática
decisória do Venerando Tribunal Constitucional.
CCC) Mas ainda que assim não se entendesse, sempre haveria que ater a
interpretação dos artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP aos seus
precisos termos, maxime, à luz das inegáveis diferenças entre o processo penal
e o processo contra‑ordenacional, incluindo o referente a infracções
jusconcorrenciais, diferenciação essa que impõe tratamento constitucional
diverso a um e outro tipo de processos.
DDD) Não podem equiparar‑se, para os presentes efeitos, os processos
sancionatórios em sede jusconcorrencial – pelo valor das coimas aplicadas ou em
virtude de uma pretensa diferença de ressonância ética face à natureza do
direito contra‑ordenacional – aos processos de natureza penal, já que, como se
afigura por demais evidente, nenhum sentido fará aplicar as mesmas garantias de
defesa e, bem assim, os mesmos graus – ou âmbito material – de recurso, em sede
de processo penal – o qual poderá cominar com uma sanção privativa da liberdade
ou com a aplicação de uma multa – e em sede de processo contra‑ordenacional por
violação das normas jusconcorrenciais constantes da Lei n.º 18/2003 – no âmbito
do qual a AdC apenas poderá aplicar uma coima ao arguido.
EEE) Tais situações não são, de todo em todo, comparáveis, assim se
justificando que o RGCO, no seu artigo 75.º, n.º 1, não preveja a apreciação do
recurso do arguido relativamente à matéria de facto pelo Tribunal da Relação.
FFF) Assim, afigura‑se inequívoco não enfermar o artigo 75.º, n.º 1, do RGCO de
qualquer inconstitucionalidade, sendo, pois, compatível com as normas
constitucionais constantes dos artigos 32.º, n.ºs 1 e 10, e 20.º, n.ºs 1 e 4,
pelo que, também aqui, improcederá, necessariamente, a pretensão da recorrente.
Nestes termos,
deve julgar‑se integralmente improcedente o presente recurso e, em
consequência:
a) Não conhecer das inconstitucionalidades invocas em 2.º, 3.º e 4.º
lugar, nos termos do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), e 72.º, n.º 2,
da LTC;
b) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da interpretação do
artigo 50.º da Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, segundo a qual o Tribunal de
Comércio de Lisboa é competente para apreciar as decisões da Autoridade da
Concorrência, por violação dos artigos 212.º, n.º 3, e 211.º, n.º 1, da CRP; e
c) Não julgar inconstitucional a norma que resulta da aplicação do artigo
75.º, n.º 1, do Regime Geral das Contra‑Ordenações aos processos de
contra‑ordenação previstos na Lei n.º 18/2003, de 11 de Junho, por violação dos
artigos 32.º, n.º 1, e 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP».
8. Os presentes autos foram redistribuídos em Setembro de 2009, por o relator
ter cessado funções neste Tribunal.
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. O presente recurso foi interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
70º da LTC para apreciação:
a) Do artigo 50º da Lei nº 18/2003, de 11 de Junho, enquanto atribuiu
competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa para apreciar a conduta de uma
associação pública;
b) Do artigo 1º da Lei nº 18/2003, na interpretação segundo a qual as Ordens
Profissionais e, em particular, a Ordem dos Médicos, estão sujeitas ao direito
nacional da concorrência;
c) Dos artigos 17º, 19º e 22º da Lei n.º 18/2003, quando interpretados no
sentido de não ser aplicável aos processos contra‑ordenacionais abertos no
âmbito da Lei da Concorrência o disposto nos artigos 39º e 40º do Código de
Processo Penal;
d) Do artigo 43º da Lei nº 18/2003, na interpretação segundo a qual este
normativo, ao fazer uma remissão directa para o Regulamento CE nº 1/2003,
confere à Autoridade da Concorrência o poder de aplicar coimas pela violação do
artigo 81º do Tratado da Comunidade Europeia; e
e) Do artigo 75º do Regime Geral da Contra-ordenações, enquanto limita o recurso
em 2ª instância à matéria de direito.
2. De acordo com o disposto nos artigos 70º, nº 1, alínea b), e 72º, nº 2, da
LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais que
apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o
processo, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a
decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
Se, por um lado, um dos requisitos do recurso interposto ao abrigo da alínea b)
do nº 1 do artigo 70º é a suscitação prévia e de forma adequada, perante o
tribunal que proferiu a decisão recorrida, da questão de constitucionalidade
cuja apreciação é requerida a este Tribunal, por outro, identifica-se o conceito
de norma jurídica como elemento definidor do objecto do recurso de
constitucionalidade, pelo que apenas as normas e não já as decisões judiciais
podem constituir objecto de tal recurso (Acórdão do Tribunal Constitucional nº
361/98, disponível em www.tribunalconstitucional.pt). Quer se trate da norma na
sua totalidade, em determinado segmento ou segundo certa interpretação, desde
que a interpretação definida não seja afinal um caso de abuso ou ficção do
conceito de interpretação normativa, apenas com o objectivo de forjar
artificialmente uma norma sindicável pelo Tribunal Constitucional (sobre isto,
Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da
constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal
Constitucional”, Jurisprudência Constitucional, nº 3, p. 8).
2.1. A recorrente requer a apreciação do artigo 1º da Lei nº 18/2003, na
interpretação segundo a qual as Ordens Profissionais e, em particular, a Ordem
dos Médicos, estão sujeitas ao direito nacional da concorrência.
Na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa não foi
questionada a constitucionalidade de qualquer norma reportada ao artigo 1º
daquele diploma legal (cf. nºs 20 a 49 e conclusões XV a XXX), não se podendo
dar como verificado o requisito da suscitação prévia da questão de
inconstitucionalidade. Consequentemente há que concluir, nesta parte, pelo não
conhecimento do objecto do recurso.
2.2. A Ordem dos Médicos requer também a apreciação dos artigos 17º, 19º e 22º
da Lei nº 18/2003, quando interpretados no sentido de não ser aplicável aos
processos contra‑ordenacionais abertos no âmbito da Lei da Concorrência o
disposto nos artigos 39º e 40º do Código de Processo Penal.
Da motivação do recurso que deu origem à decisão recorrida (cf. nºs 64 a 88 e
conclusões XLI a XLIV), daquele enunciado e do teor daqueles artigos da Lei nº
18/2003 decorre que aquilo que a recorrente questiona verdadeiramente é a
sentença do Tribunal de Comércio, imputando-lhe a violação dos artigos 39º e 40º
do Código de Processo Penal, bem como a dos artigos 32º, nº 10, e 266º, nº 2, da
Constituição. Assim sendo, há que concluir, também nesta parte, pelo não
conhecimento do objecto do recurso.
2.3. A recorrente requer ainda a apreciação do artigo 43º da Lei nº 18/2003, na
interpretação segundo a qual este normativo, ao fazer uma remissão directa para
o Regulamento CE nº 1/2003, confere à Autoridade da Concorrência o poder de
aplicar coimas pela violação do artigo 81º do Tratado da Comunidade Europeia.
Na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação (cf. nºs 89 a 94 e
conclusões XLV a LII), resulta que a recorrente acusa o Tribunal de Comércio de
violar o artigo 18º da Constituição, por ter decidido como decidiu. A
circunstância de a Ordem dos Médicos ter questionado a constitucionalidade de
uma decisão judicial (e não de uma norma), obsta ao conhecimento do recurso na
parte que se refere àquele artigo da Lei nº 18/2003.
3. Por se verificarem os requisitos do recurso interposto no que respeita aos
artigos 50º da Lei nº 18/2003 e 75º do Regime Geral das Contra-ordenações,
importa, nesta parte, apreciar as questões de constitucionalidade postas a este
Tribunal.
3.1. A Ordem dos Médicos requer a apreciação do artigo 50º da Lei nº 18/2003,
enquanto atribui competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa para apreciar a
conduta de uma associação pública.
O artigo 50º, nº 1, daquela Lei dispõe o seguinte:
«Das decisões proferidas pela Autoridade que determinem a aplicação de coimas ou
de outras sanções previstas na lei cabe recurso para o Tribunal de Comércio de
Lisboa, com efeito suspensivo».
A recorrente requer esta apreciação invocando os artigos 212º, nº 3, e 211º, nº
1, da Constituição. Face à reserva constitucional da jurisdição administrativa,
questiona a constitucionalidade de norma que, em matéria de direito
administrativo, atribui competência ao Tribunal de Comércio de Lisboa.
A questão de saber qual é, afinal, o alcance da reserva constitucional da
jurisdição administrativa tem sido respondida na jurisprudência do Tribunal
Constitucional. Seguindo o Acórdão do nº 211/2007 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt), é de concluir que:
«Desta jurisprudência ressalta o entendimento, várias vezes sublinhado, de que a
introdução, pela revisão constitucional de 1989, no então artigo 214.º, n.º 3,
da Constituição, da definição do âmbito material da jurisdição administrativa,
não visou estabelecer uma reserva absoluta, quer no sentido de exclusiva, quer
no sentido de excludente, de atribuição a tal jurisdição da competência para o
julgamento dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e
fiscais. O preceito constitucional não impôs que todos estes litígios fossem
conhecidos pela jurisdição administrativa (com total exclusão da possibilidade
de atribuição de alguns deles à jurisdição “comum”), nem impôs que esta
jurisdição apenas pudesse conhecer desses litígios (com absoluta proibição de
pontual confiança à jurisdição administrativa do conhecimento de litígios
emergentes de relações não administrativas), sendo constitucionalmente
admissíveis desvios num sentido ou noutro, desde que materialmente fundados e
insusceptíveis de descaracterizar o núcleo essencial de cada uma das
jurisdições».
Nos presentes autos está em causa a norma que atribui competência a um tribunal
judicial para conhecer de recurso interposto de decisão da Autoridade da
Concorrência que aplica coima e sanção acessória contraordenacional à Ordem dos
Médicos. Ora, não pode concluir-se que esta atribuição de competência seja
desprovida de justificação.
No Acórdão do Tribunal Constitucional nº 522/2008 (disponível em
www.tribunalconstitucional.pt) lê-se que:
«Na verdade, a opção legislativa, com longa tradição entre nós, de manter o
contencioso das contra-ordenações excluído da jurisdição administrativa foi
assumida na discussão que antecedeu a recente reforma do contencioso
administrativo e a redefinição do respectivo âmbito da jurisdição, de que veio a
resultar o actual artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
(aprovado pela Lei n.º 13/2002, de 19 de Fevereiro, e alterado, por último, pela
Lei n.º 26/2008, de 27 de Junho). Como justificação para esta opção,
invocaram-se as insuficiências de que padece a rede de tribunais administrativos
(mesmo após a reforma), incapaz de dar a adequada resposta, sem o risco de gerar
disfuncionalidades no sistema (cfr. DIOGO FREITAS DO AMARAL/ MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA, Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo, Coimbra, 2002,
24).
Por último, sendo inegável a natureza administrativa (…) do processo de
contra-ordenação e das situações jurídicas que lhe estão subjacentes, a verdade
é que o processo contra-ordenacional, pelo menos na fase judicial, está gizado à
imagem do processo penal (cfr. artigos 41.º e 59.º e s., maxime, 62.º e s., do
RGCO, e artigo 52.º Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, que estabelece o regime
aplicável às contra-ordenações ambientais). Neste contexto, em que coexistem
matérias administrativas com modelos processuais penalistas, a “remissão” para
os tribunais judiciais das impugnações judiciais no âmbito de processos de
contra-ordenação (ambiental) não se afigura atentatória do figurino típico que a
Constituição quis consagrar quanto ao âmbito material da justiça
administrativa».
Impõe-se, por conseguinte, negar provimento ao recurso interposto na parte que
se reporta ao artigo 50º da Lei nº 18/2003.
3.2. A recorrente requer ainda a apreciação do artigo 75º do Regime Geral da
Contra-ordenações, enquanto limita o recurso em 2ª instância à matéria de
direito.
No nº 1 desta disposição legal determina-se o seguinte:
«Se o contrário não resultar deste diploma, a 2ª instância apenas conhecerá da
matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões».
A Ordem dos Médicos requer a apreciação daquela norma face ao disposto nos
artigos 20º, nºs 1 e 4, e 32º, nº 1, da Constituição. Está em causa a
inexistência de um duplo grau de recurso em matéria de facto em processo
contraordenacional.
Este Tribunal tem entendido que a Constituição não impõe o duplo grau de recurso
em matéria de facto (cf., entre muitos outros, os Acórdãos nºs 573/98, 189/2001
e 73/2007, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), pelo que, reiterando
este entendimento, há que negar provimento ao recurso interposto na parte que se
reporta ao artigo 75º do Regime Geral da Contra-ordenações.
III. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Não tomar conhecimento do objecto do presente recurso, na parte que se refere
às questões reportadas aos artigos 1º, 17º, 19º e 22º e 43º da Lei nº 18/2003;
b) Negar provimento ao recurso na parte que dele se conhece.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco)
unidades de conta.
Lisboa, 3 de Dezembro de 2009
Maria João Antunes
Carlos Pamplona de Oliveira
Gil Galvão
José Borges Soeiro
Rui Manuel Moura Ramos
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