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Processo n.º 911/08
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No processo especial abreviado que se encontrava pendente no 1º Juízo de Pequena
Instância Criminal (n.º 787/06.7 SFLSB, da 2ª Secção), em 9 de Janeiro de 2008,
foi proferido despacho que declarou a nulidade do processado, salvaguardando-se
os seus termos até à acusação, por força do disposto nos artigos 118.º, n.º 1,
119.º, alínea f), 122.º e 391.º - D, todos do Código de Processo Penal, com o
fundamento que já haviam decorrido 90 dias após a dedução da acusação sem que
se tivesse iniciado a audiência de julgamento.
O Ministério determinou a remessa dos autos à distribuição como processo comum
singular.
O processo foi distribuído ao 6.º Juízo Criminal de Lisboa (2.ª Secção), onde em
16-6-2008 foi proferido o seguinte despacho:
“Questão Prévia: da inconstitucionalidade da interpretação dada à norma contida
no actual artigo 391.º‑D do Código de Processo Penal, no sentido de que a
inviabilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias constitui uma
nulidade insanável.
Foi proferido despacho de acusação, no dia 13 de Fevereiro de 2007, imputando ao
arguido, por factos indiciariamente praticados no dia 10 de Fevereiro de 2007 e
enquadráveis no crime de condução sem habilitação legal, previsto no artigo
3.º, n.º 2, do Decreto‑Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, para julgamento em
processo abreviado.
Os autos foram remetidos à distribuição no Tribunal de Pequena Instância
Criminal a 16 de Março de 2007 (fls. 32), tendo o M.mo Juiz titular do 2.º
Juízo, 2.ª Secção, do Tribunal de Pequena Instância de Lisboa recebido a
acusação e designado datas para a realização do julgamento, por despacho de 29
de Março de 2007.
O processo foi, contudo, novamente concluso ao mesmo M.mo Juiz titular no dia 4
de Janeiro de 2008.
O M.mo Juiz titular do 2.º Juízo, 2.ª Secção, do Tribunal de Pequena Instância
de Lisboa, em despacho de 4 de Janeiro de 2008, considerou existir, devido às
alterações legislativas introduzidas no Código de Processo Penal pela Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, e, em especial, pela introdução do artigo 391.º‑D em
tal diploma, uma nulidade insanável, por emprego de forma de processo especial
fora dos casos previstos na lei (artigo 119.º, alínea f), do Código de Processo
Penal), proveniente, em síntese, do facto de a audiência de julgamento não
poder realizar‑se no prazo de 90 dias, conforme actualmente previsto no
mencionado normativo.
Cumpre apreciar e decidir.
Deixamos desde já consignado que não se pode concordar com a posição assumida no
aliás douto despacho do M.mo Juiz Titular do Tribunal de Pequena Instância de
Lisboa, que declarou existir uma nulidade insanável por emprego de forma de
processo especial fora dos casos previstos na lei (artigo 119.º, alínea f), do
Código de Processo Penal).
Com efeito, a acusação deduzida nestes autos respeitou na íntegra o disposto
nos artigos 391.º‑A e 391.º‑B do Código de Processo Penal, que, salvo melhor
opinião, fixam de forma definitiva quando o uso do processo abreviado deve ter
lugar.
Note‑se, antes do mais, que na recente alteração legislativa em causa não foi
alterado o disposto no artigo 119.º, alínea f), do Código de Processo Penal,
que prevê a existência de nulidade insanável em caso de emprego de forma de
processo especial fora dos casos expressamente previstos na lei.
Por outro lado, é um facto que a actual lei, devido às alterações introduzidas
pela Lei n.º 48/2007, introduziu um preceito novo, o artigo 391.º‑D do Código de
Processo Penal, e é certo que tal dispositivo legal dispõe que «A audiência de
julgamento em processo abreviado tem início no prazo de 90 dias a contar da
dedução da acusação».
Contudo, o desrespeito do prazo previsto em tal normativo inovador apenas pode
consubstanciar uma irregularidade sujeita ao regime do artigo 123.º do Código de
Processo Penal, conforme, aliás, se expressa o Venerando Conselheiro Maia
Gonçalves no Código de Processo Penal Anotado, na última edição.
Com efeito, escreve aquele mui ilustre autor: «O início da audiência para além
de 90 dias a contar da dedução da acusação constitui irregularidade, sujeita ao
regime do artigo 123.º» (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado,
Coimbra, Almedina, 2007, p. 824).
Quanto a nós, tal conclusão resulta à evidência, desde logo, com vista a
salvaguardar as regras da competência, que são, diríamos nós, sagradas, em
termos jurídico‑criminais, e por isso merecedoras da mais alta tutela, ou seja,
constitucional, pelo preceituado no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da
República Portuguesa, onde se dispõe: «Nenhuma causa pode ser subtraída ao
tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior».
Desta norma constitucional emana o princípio do juiz natural ou do juiz legal,
que é uma garantia do processo criminal.
Neste âmbito, não pode ser assim descurado o facto de que, na Comarca de Lisboa,
a competência para o julgamento dos processos abreviados está expressamente
atribuída ao Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa (artigo 102.º, n.º
1, da LOFTJ).
Tal regra de competência, numa interpretação de acordo com a Constituição, não
pode ser, de forma alguma, violada.
Recorde‑se que a norma constitucional em referência (artigo 32.º, n.º 9, da CRP)
tem outros reflexos na legislação ordinária.
Neste âmbito, destacam‑se os artigos 22.º e 23.º da LOFTJ (Lei n.º 3/99, de 13
de Janeiro), onde se prevê:
«Artigo 22.º (Lei reguladora da competência)
1 – A competência fixa‑se no momento em que a acção se propõe, sendo
irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente.
2 – São igualmente irrelevantes as modificações de direito, excepto se for
suprimido o órgão a que a causa estava afecta ou lhe for atribuída competência
de que inicialmente carecesse para o conhecimento da causa.
Artigo 23.º (Proibição de desaforamento)
Nenhuma causa pode ser deslocada do tribunal competente para outro, a não ser
nos casos especialmente previstos na lei.»
A consequência mediata da declaração de nulidade insanável do processado, por
emprego de processo especial fora dos casos expressamente previstos na lei, é a
alteração do tribunal competente para proceder ao julgamento da causa,
porquanto, passando o processo a seguir a forma comum, na comarca de Lisboa (e
todas as outras comarcas onde se encontram instalados tribunais de pequena
instância criminal), o tribunal competente para o julgamento passa a ser um
Juízo Criminal (artigo 100.º da LOFTJ).
Assim sendo, seguindo um entendimento onde a declaração de nulidade do
processado anterior conduz a uma alteração da forma do processo e, em
consequência, a uma alteração de competência do tribunal, neste caso, para o
julgamento do processo abreviado, fixada expressamente no já aludido artigo
102.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, afigura‑se que tal despacho
provoca um desaforamento que não está especialmente previsto na lei, em
violação expressa do artigo 23.º da LOTFJ e do próprio princípio do juiz
natural ou legal, constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 9, da CRP.
O princípio do juiz natural ou legal, conforme nos recordam J. J. Gomes
Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, vol.
I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 525, comporta várias dimensões
fundamentais, a saber:
«... (a) exigência de determinabilidade, o que implica que o juiz (ou juízes)
chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente
individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível
inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância
das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos
preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação
do juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes
à divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a
fixação de um plano de distribuição de processos ...»
Resulta, pois, da exposta doutrina que a lei que fixa a competência deve estar
individualizada através de uma lei geral, de uma forma o mais possível
inequívoca, devendo tais regras ser respeitadas quer de forma mediata quer de
forma imediata, com tutela mesmo ao nível do plano de distribuição dos
processos.
Ora, a interpretação que o despacho em causa realiza do disposto nos artigos
391.º‑D e 119.º, alínea f), do Código de Processo Penal põe em causa, conforme
resulta da presente exposição, de forma mediata mas evidente, as regras da
competência expressamente consagradas no artigo 102.º, n.º 1, da LOFTJ.
Sufragando a interpretação do despacho em causa, a forma do processo e, de forma
mediata, a competência para o julgamento dos processos fica, além do mais,
dependente das contingências particulares da vida humana, pois será a agenda do
juiz, o tempo na distribuição e conclusão do processo pela Secção de processos,
eventuais atrasos dos CTT, baixas por doença dos titulares do respectivo
tribunal, licenças de maternidade ou paternidade, que determinarão ou não a
possibilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias a contar da
dedução da acusação, conforme actualmente previsto no artigo 391.º‑D do Código
de Processo Penal, e assim o emprego da forma especial do processo e a
competência do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o julgamento.
Ora, deste modo, a competência do tribunal fica sujeito a uma evidente
indeterminabilidade e a regra da competência pré‑fixada na lei a uma notória
subjectividade, em clara violação do artigo 32.º, n.º 9, da CRP.
Neste âmbito, recorde‑se o que os doutos constitucionalistas citados referem a
este respeito: «A escolha do tribunal competente deve resultar de critérios
objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos» (ibidem). A lei é
geral e abstracta, e tais pressupostos, em matéria de competência, fazem‑se
sentir no mais elevado dos planos jurídicos, o constitucional.
Devido à importância da generalidade e abstracção na fixação das regras da
competência, donde emana o já invocado princípio do juiz natural ou legal, o
Código de Processo Penal não podia deixar de enquadrar violações a tais regras
nos mais intensos vícios processuais, ou seja, nos que consubstanciam nulidades
insanáveis, em concreto previsto no artigo 119.º, alínea e), do Código de
Processo Penal.
Nem se diga, contra a interpretação que aqui se expõe, que a alteração da forma
do processo e, em consequência, da competência dos tribunais, vem reforçar os
direitos dos arguidos inicialmente submetidos ao julgamento em processo
abreviado, porquanto, actualmente, devido às alterações introduzidas pela Lei
n.º 48/2007, de 29 de Agosto, esta forma de processo deixou de prever o debate
instrutório, anteriormente previsto para esta forma do processo no artigo
391.º‑C, n.º 2, do Código de Processo Penal, sendo certo que, com a passagem à
forma do processo comum, o arguido volta a ter direito à instrução.
Tal argumento, desde logo, enferma de um vício de lógica, porquanto, no caso
concreto, tendo sido o arguido notificado do despacho de acusação, deduzido sob
a forma abreviada, foi‑o ao abrigo da lei antiga, ou seja, quando tinha o
direito de requerer debate instrutório, não tendo o arguido usado de tal
faculdade.
Entendemos, pois, que o despacho em causa, além de violar as normas da LOFTJ e
a norma da CRP já acima citadas, viola ainda o princípio da aplicação da lei
processual no tempo, que dispõe que a lei processual penal não deve ser aplicada
aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando da sua
aplicabilidade imediata possa resultar quebra da harmonia e unidade dos vários
actos do processo, sendo certo que ao abrigo da anterior lei não resultava
qualquer agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do
arguido, nomeadamente a limitação dos seus direitos de defesa (artigo 5.º, n.º
2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal).
Em suma, o despacho proferido pelo M.mo Juiz, salvo melhor entendimento, mais
não faz do que pronunciar‑se, através da declaração da nulidade do emprego do
processo abreviado, de forma mediata e inconstitucional, sobre as regras da
competência dos tribunais comuns, anteriormente fixadas pelo legislador,
violando diversas normas da legislação ordinária que mais não visam do que dar
corpo ao princípio constitucional do juiz legal, consagrado no artigo 32.º, n.º
9, da Constituição.
Neste contexto, a interpretação dada à norma contida no actual artigo 391.º‑D do
Código de Processo Penal, no sentido de que a inviabilidade da realização do
julgamento no prazo de 90 dias constitui uma nulidade insanável, que conduz,
por sua, vez, à alteração da competência dos tribunais, neste caso, do Tribunal
de Pequena Instância Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, é, salvo melhor
entendimento, inconstitucional, por violar o disposto no artigo 32.º, n.º 9, da
Constituição.
Assim sendo, aceitar a aplicação das normas contidas nos artigos 119.º, alínea
f), e 391.º‑D do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes foi dada no
despacho em causa, e aceitando, assim, em consequência, a competência para o
julgamento dos presentes autos, constitui, quanto a nós, uma
inconstitucionalidade, que nos é vedada pelo mais elevado dever do juiz de
respeito à Constituição da República Portuguesa.
Terá de ser pelo estabelecido nos artigos 391.º‑A e 391.º‑B que se considera
fixada a possibilidade do uso do processo especial abreviado e, em consequência,
terá de ser pela verificação dos pressupostos aí previstos que se considera
fixada a competência do Tribunal de Pequena Instância Criminal e Juízos
Criminais de Lisboa, em respeito pelas normas de competência previstas nos
artigos 100.º, 102.º, n.º 1, 22.º e 23.º da LOFTJ.
Recorde‑se, para terminar, que aqueles dispositivos do Código de Processo Penal
dispõem:
«Do processo abreviado
Artigo 391.º‑A (Quando tem lugar)
1 – Em caso de crime punível com pena de multa ou com pena de prisão não
superior a 5 anos, havendo provas simples e evidentes de que resultem indícios
suficientes de se ter verificado o crime e de quem foi o seu agente, o
Ministério Público, em face do auto de notícia ou após realizar inquérito
sumário, deduz acusação para julgamento em processo abreviado.
2 – São ainda julgados em processo abreviado, nos termos do número anterior, os
crimes puníveis com pena de prisão de limite máximo superior a 5 anos, mesmo em
caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação,
entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5
anos.
3 – Para efeitos do disposto no n.º 1, considera‑se que há provas simples e
evidentes quando, nomeadamente:
a) O agente tenha sido detido em flagrante delito e o julgamento não puder
efectuar‑se sob a forma de processo sumário;
b) A prova for essencialmente documental e possa ser recolhida no prazo previsto
para a dedução da acusação; ou
c) A prova assentar em testemunhas presenciais com versão uniforme dos factos.
Artigo 391.º‑B (Acusação, arquivamento e suspensão do processo)
1 – A acusação do Ministério Público deve conter os elementos a que se refere o
n.º 3 do artigo 283.º. A identificação do arguido e a narração dos factos podem
ser efectuadas, no todo ou em parte, por remissão para o auto de notícia ou para
a denúncia.
2 – A acusação é deduzida no prazo de 90 dias a contar da:
a) Aquisição da notícia do crime, nos termos do disposto no artigo 241.º,
tratando‑se de crime público; ou
b) Apresentação de queixa, nos restantes casos.
3 – Se o procedimento depender de acusação particular, a acusação do Ministério
Público tem lugar depois de deduzida acusação nos termos do artigo 285.º.
4 – É correspondentemente aplicável em processo abreviado o disposto nos
artigos 280.º a 282.º.»
A forma do processo e, consequentemente, a competência do Tribunal de Pequena
Instância Criminal e Juízos Criminais de Lisboa fixa‑se, pois, de acordo com
estes dispositivos e não de acordo com o preceituado no artigo 391.º‑D do mesmo
diploma.
Pelo exposto e decidindo:
A) Recusa‑se, por inconstitucional, a interpretação dada aos artigos 119.º,
alínea f), e 391.º‑D do Código de Processo Penal e a sua subsequente aplicação,
no sentido de que a inviabilidade da realização do julgamento no prazo de 90
dias a contar da dedução da acusação constitui uma nulidade insanável,
porquanto tal conduz à alteração da forma de processo abreviado para a forma de
processo comum e, assim, de forma mediata, à alteração das regras prévias e
expressas que fixam a competência dos tribunais, neste caso, do Tribunal de
Pequena Instância Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, em violação dos
artigos 22.º, 23.º, 100.º e 102.º, n.º 1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro,
artigo 119.º, alínea e), do Código de Processo Penal, e artigo 32.º, n.º 9, da
Constituição da República Portuguesa;
B) Em consequência, declara‑se este tribunal incompetente para a realização do
julgamento e recusa‑se o recebimento destes autos.”
O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo
da alínea a), do n.º 1, do artigo 70.º, da Lei de Organização,
Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13‑A/98, de 26
de Fevereiro (LTC), contra o despacho de 16 de Junho de 2008 do Juiz do 6.º
Juízo Criminal de Lisboa, que recusou, por inconstitucionalidade, a aplicação
das normas dos artigos 119.º, alínea f), e 391.º‑ D do Código de Processo Penal
(CPP), na interpretação segundo a qual “a inviabilidade da realização do
julgamento no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação constitui uma
nulidade insanável, conducente à alteração da forma de processo abreviado para a
forma de processo comum”.
Neste Tribunal, o representante do Ministério Público apresentou alegações, com
a seguinte conclusão:
“Tendo em conta que a fundamentação que subjaz ao despacho recorrido se abriga
na violação de normas legais ordinárias, relativas à aplicação da lei no tempo
quanto aos requisitos da forma especial de processo, há que concluir, assim, não
se estar perante uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, pelo
que não deve tomar‑se conhecimento do recurso”.
Esta posição foi alicerçada nas seguintes considerações:
“…1. Como bem resulta dos autos, o que ressalta sem dúvida alguma, é uma
divergência, entre dois juízes, sobre a interpretação a conferir a uma lei nova
e as consequências que daí podem advir dessas interpretações.
2. Com efeito, enquanto que o Juiz a quo (Tribunal Criminal) entende que a lei
nova não afecta a forma de processo que se iniciou antes da entrada em vigor
desta, já o juiz do TPIC não o entendeu assim, considerando que a «nova fórmula»
quanto à possibilidade de uso da forma de processo abreviado se aplicava desde
logo, retroagindo o efeito dessa lei nova.
3. O Juiz do TPIC, no fundo, considera que uma alteração legal superveniente
determina, ipso facto, «erro» na forma de processo! E o Juiz do Tribunal
Criminal entende que não!
4. Assim sendo, o fundamento (essencial) para a decisão tomada pelo Juiz a quo,
e por este invocada expressamente, é o da violação de comandos legais relativos
quer à competência dos Tribunais (v. g. artigos 22.º, 23.º, 100.º e 102.º, n.º
1, da Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro), quer à «qualificação» de eventuais
«irregularidades» ou «ilegalidades» (v. g. artigo 119.º, alínea e), do CPP).
5. Decorre ainda que o que é logicamente anterior, no pressuposto
interpretativo que subjaz a ambos os Tribunais, é tão‑somente (mas crucial), a
perspectiva legal sobre a aplicação da lei no tempo quanto às novas normas
relativas ao processo abreviado.
6. Ora, e se assim é, não estamos perante uma verdadeira questão de
«inconstitucionalidade normativa», mas sim de dirimição ordinária entre duas
decisões judiciais (como se aponta, aliás, no ponto n.º 7, em I), quanto a um
verdadeiro conflito negativo de competências. (Registe‑se, aliás, que caso
tivesse transitado em julgado o despacho a quo, e seria esse o mecanismo que
deveria usar‑se para uma tal dirimição).
7. Este Tribunal tem vindo a solidificar uma jurisprudência no sentido de que,
nesses casos, não estamos perante uma «questão de constitucionalidade
normativa». Com efeito, e para além de outros (vide Acórdãos n.º 489/2004, n.º
710/2004 e n.º 128/2005, todos deste Tribunal Constitucional), veja‑se o que, no
Acórdão n.º 210/2006, se exarou a esse propósito, a página 8: «Mas, ainda em
relação àquelas, é legítimo concluir que, ou não está sequer colocada uma
questão de constitucionalidade normativa ou, como já se explicitou supra, não o
está nos termos claros e perceptíveis que é exigível. Com efeito, a violação de
normas constitucionais referida nas conclusões LXIII a LXV visa apenas
corroborar a tese de que as escutas são nulas. Acresce que o recorrente, em
tais conclusões, insiste em afirmar que o próprio preceito de direito
infraconstitucional cuja constitucionalidade pretende ver apreciada – o artigo
188.º, n.º 1, do Código de Processo Penal –, terá sido ele mesmo violado. Ora,
como se afirmou, nomeadamente, nos Acórdãos n.ºs 489/2004 e 710/2004 e, mais
recentemente, no Acórdão n.º 128/2005 (todos disponíveis na página Internet do
Tribunal, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), ‘se se utiliza
uma argumentação consubstanciada em vincar que foi violado um dado preceito
legal ordinário e, simultaneamente, violadas normas ou princípios
constitucionais, tem‑se por certo que a questão de desarmonia constitucional é
imputada à decisão judicial, enquanto subsunção dos factos ao direito, e não ao
ordenamento jurídico infra‑constitucional que se tem por violado com essa
decisão, pois que se posta como contraditório sustentar‑se que há violação desse
ordenamento e [que] este é desconforme com o Diploma Básico. Efectivamente, se
um preceito da lei ordinária é inconstitucional, não deverão os tribunais
acatá‑lo, pelo que esgrimir com a violação desse preceito, representa uma
óptica de acordo com a qual ele se mostra consonante com a Constituição. Isto é,
se se sustenta que determinada postura é, simultaneamente, violadora de
preceitos do ordenamento jurídico infra‑constitucional e de normas
constitucionais só se pode concluir que se está a questionar a própria decisão
judicial e não a constitucionalidade dos preceitos ordinários.’ Mas, nesse caso,
é jurisprudência pacífica e sucessivamente reiterada que, não estando em causa
uma dimensão normativa do preceito legal aplicado na decisão, mas sim a própria
decisão em si mesma considerada, não há lugar ao recurso de fiscalização
concreta de constitucionalidade vigente em Portugal. Assim resulta do disposto
no artigo 280.º da Constituição e no artigo 70.º da Lei n.º 28/82, e assim tem
sido afirmado pelo Tribunal Constitucional em inúmeras ocasiões. Na verdade,
ainda que se entenda que, suscitada uma concreta questão de
inconstitucionalidade da decisão judicial recorrida, não poderão as instâncias
deixar de se pronunciar sobre tal matéria, o facto é que uma tal suscitação, por
não se tratar da suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa,
não abre via de recurso para o Tribunal Constitucional.
Assim sendo, seja porque se entende que não foi colocada uma questão de
constitucionalidade normativa, seja porque se conclui que não foi suscitada de
modo processualmente adequado a exacta questão de constitucionalidade da
interpretação normativa em causa, não pode o Tribunal conhecer do recurso nesta
parte.”
O recorrido não apresentou contra‑alegações.
Fundamentação
1. Do conhecimento do objecto do recurso.
A possibilidade de conhecimento do objecto do recurso é negada pelo próprio
recorrente, com o argumento de que a questão em causa não é “uma verdadeira
questão de inconstitucionalidade normativa”, “tendo em conta que a fundamentação
que subjaz ao despacho recorrido se abriga na violação de normas legais
ordinárias, relativas à aplicação da lei no tempo quanto aos requisitos da forma
especial de processo” abreviado.
Pelas razões que já constam do acórdão desta mesma secção proferido no processo
nº 913/08, em que se discutia precisamente a mesma questão de conhecimento, não
se acompanha este entendimento.
Como aí se escreveu:
“É inegável que o despacho recorrido manifesta a sua discordância com a
interpretação e aplicação de normas de direito ordinário efectuadas pelo
despacho do juiz do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, de 4 de
Janeiro de 2008, no que concerne à qualificação como nulidade insanável, e não
como mera irregularidade, da eventual realização de audiência de julgamento em
processo abreviado para além do prazo de 90 dias contado a partir da dedução da
acusação, mas a sua fundamentação não se limita a essa manifestação de
discordância, ao nível da interpretação do direito ordinário, antes se alicerça
– e de forma determinante – no entendimento de que tal interpretação, além de
errónea, é violadora de normas e princípios constitucionais, designadamente do
“princípio do juiz natural”.
A jurisprudência do Tribunal Constitucional, citada pelo recorrente, é, salvo o
devido respeito, imprestável para o presente caso. Todas as decisões citadas
(Acórdãos n.ºs 489/2004, 710/2004, 128/2005 e 210/2006) foram proferidas em
recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC e
visavam aferir do correcto cumprimento, por parte dos recorrentes, do ónus de
adequada suscitação de uma questão de inconstitucionalidade normativa,
distinguindo‑a das situações em que a violação da Constituição é directamente
imputada a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. E o que nesses
acórdãos se entendeu foi que, atento o específico condicionalismo que rodeou, em
cada um dos casos, a suscitação da questão de inconstitucionalidade, havia que
concluir que, ao acusar determinada decisão de violar o direito ordinário e
simultaneamente violar a Constituição, não se estava a suscitar uma questão de
inconstitucionalidade normativa, mas antes uma questão de
inconstitucionalidade da própria decisão judicial, inidónea a integrar o
objecto do recurso para o Tribunal Constitucional.
O que, em rigor, distingue as situações em que se suscita uma questão de
inconstitucionalidade normativa das situações em que se suscita uma questão de
inconstitucionalidade de decisão judicial é que, naquelas, a violação da
Constituição é imputada a uma norma de direito ordinário, na sua directa
estatuição ou numa sua determinada interpretação, desde que dotada de
generalidade e abstracção, e, nestas, a desconformidade com a Lei Fundamental é
directamente reportada ao juízo concreto subsuntivo feito pela decisão judicial
em causa. Nesta perspectiva, nada obsta – e são incontáveis os casos que têm
sido decididos pelo Tribunal Constitucional – a que o recorrente repute errónea
a interpretação de determinada norma de direito ordinária, face às regras
hermenêuticas tidas por mais correcta, e simultaneamente questione a
constitucionalidade dessa interpretação, desde que dotada de generalidade e
abstracção. O que seria ilógico seria o recorrente dizer que a decisão judicial
não adoptou a correcta interpretação da norma e simultaneamente sustentar a
inconstitucionalidade dessa interpretação tida por correcta; mas já nenhuma
contradição intrínseca existe em sustentar‑se que a decisão judicial acolheu uma
interpretação (geral e abstracta) da norma que se considera incorrecta e que
essa incorrecta interpretação (desde que – repete‑se – dotada de abstracção e
generalidade) viola a Constituição, situação esta última em que não se
descortina qualquer obstáculo a que se repute adequadamente suscitada uma
questão de inconstitucionalidade normativa, cognoscível pelo Tribunal
Constitucional, mesmo no âmbito de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do
n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
No presente caso, assume claramente natureza normativa o critério decisório cuja
aplicação foi recusada pela decisão recorrida com fundamento em
inconstitucionalidade. Trata‑se de um critério dotado de generalidade e
abstracção, susceptível de ser invocado perante uma multiplicidade de casos: em
todos os processos em que hajam decorrido mais de 90 dias sobre a dedução da
acusação em processo abreviado, devem os autos ser remetidos para processo
comum, sob pena de, com a realização da audiência de julgamento após esse prazo,
se cometer nulidade insuprível.
Foi este critério normativo que o despacho ora recorrido se recusou a aplicar,
não apenas por o considerar incorrecto, ao nível da interpretação do direito
ordinário, mas por o reputar inconstitucional.
Considera‑se, assim, que a questão que integra o objecto do presente recurso
assume carácter normativo, ao contrário do defendido pelo recorrente.
O não conhecimento do recurso poderia ainda basear‑se no entendimento de que o
despacho recorrido assenta num duplo fundamento – incorrecção da interpretação
acolhida no despacho do Tribunal de Pequena Instância Criminal e
inconstitucionalidade do correspondente critério –, pelo que não existiria
interesse processual no conhecimento do recurso, dado que, mesmo que este
obtivesse provimento (julgando‑se não padecer de inconstitucionalidade o
apontado critério), o sentido da decisão manter‑se‑ia o mesmo, embora reduzido
ao primeiro fundamento.
Também se julga improcedente esta questão prévia, quer por se entender que este
juízo de inutilidade é inaplicável aos recursos interpostos ao abrigo da alínea
a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, designadamente quando seja cabível (ou
inclusivamente já haja sido interposto) recurso ordinário na parte relativa ao
fundamento alternativo, quer por ser questionável que o primeiro “fundamento”
seja suficiente para sustentar a decisão final.
….
Independentemente destas considerações, acresce que, no caso, é extremamente
duvidoso que o “fundamento” relativo à discordância quanto à interpretação do
direito ordinário fosse, por si só, suficiente para sustentar a decisão
recorrida. Na verdade, nada, no discurso desenvolvido ao longo dessa decisão,
permite dar por assente que o desfecho do caso seria o mesmo se a interpretação
tida por incorrecta não fosse também considerada inconstitucional. Pelo
contrário, a expressa alusão ao dever, ele também com assento constitucional,
de o juiz recusar a aplicação de normas inconstitucionais, inculca que foi essa
a razão determinante da recusa de aplicação do referido critério normativo.
Isto é: o autor da decisão recorrida não recusou acatar o critério normativo
seguido na anterior decisão por o considerar errado, face às regras de
interpretação do direito ordinário, mas por o reputar inconstitucional,
concluindo: “aceitar a aplicação das normas contidas nos artigos 119.º, alínea
f), e 391.º‑D do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes foi dada no
despacho em causa, e aceitando, assim, em consequência, a competência para o
julgamento dos presentes autos, constitui, quanto a nós, uma
inconstitucionalidade, que nos é vedada pelo mais elevado dever do juiz de
respeito à Constituição da República Portuguesa”. Em coerência com este
entendimento, a parte decisória do despacho ora recorrida explicitamente se
centra na recusa de aplicação, por inconstitucionalidade, da aludida
interpretação.
Refira‑se, por último, que não se afigura possível fundar o não conhecimento do
recurso em considerações relativas à maior ou menor adequação dos preceitos
legais a que a decisão recorrida reportou o critério normativo tido por
inconstitucional.
Sendo inequívocos o sentido e alcance deste critério e os fundamentos da sua
recusa de aplicação, a discutibilidade da pertinência da invocação dos artigos
119.º, alínea f), e 391.º‑D do CPP, ou a eventualidade da existência de outros
preceitos legais cuja convocação surgisse como mais rigorosa (designadamente as
normas definidoras da repartição de competências dos tribunais como as dos
artigos 100.º, 102.º, n.º 1, 22º e 23º, da LOFTJ) não justificam uma decisão de
não conhecimento do recurso. Como se referiu no recente Acórdão n.º 92/2009
desta 2.ª Secção, “não é (…) da competência deste Tribunal alterar, em via
recursiva, os juízos aplicativos ao caso concreto, ratione materiae, do direito
ordinário, levados a cabo pelas instâncias”, pelo que, também no presente caso,
“o juízo de constitucionalidade que nos cabe emitir recairá sobre (…) as normas
acima referidas, declaradas inconstitucionais pela [decisão] recorrida e, em
conformidade, inaplicadas, especificamente mencionadas como objecto do recurso
pelo Ministério Público, no requerimento da sua interposição”.
Importa, pois, apreciar o mérito da recusa de aplicação de interpretação
normativa efectuada pelo tribunal recorrido, com fundamento em
inconstitucionalidade.
2. Do mérito do recurso
A decisão recorrida considerou inconstitucional, por violar o princípio do juiz
natural (artigo 32.º, n.º 9, da C.R.P.), o entendimento perfilhado pelo Juiz do
Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, segundo o qual a realização
da audiência de julgamento em processo especial abreviado com desrespeito do
prazo de 90 dias implicaria nulidade insuprível, e não mera irregularidade, pelo
que a ultrapassagem daquele prazo determinaria a alteração da forma de processo
abreviado para a forma de processo comum, com a consequente remessa dos autos
para julgamento, do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o Tribunal
Criminal.
O artigo 32.º, n.º 9, da C.R.P., determina que nenhuma causa pode ser subtraída
ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior.
Esta proibição visa garantir que nenhuma causa seja julgada por um tribunal
designado ad hoc para esse efeito, devendo a sua competência resultar da
aplicação de leis gerais e abstractas (vide, sobre o alcance do princípio do
juiz natural, FIGUEIREDO DIAS, em “Sobre o sentido do princípio
jurídico-constitucional do “juiz-natural”, na R.L.J., Ano 111.º, pág. 83-88, e o
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 614/2003, em “Acórdãos do Tribunal
Constitucional”, 57.º vol., pág. 1223).
Neste caso, a remessa dos autos para julgamento do Tribunal de Pequena Instância
Criminal de Lisboa para o Tribunal Criminal de Lisboa, resultou duma alteração
da respectiva forma do processo. Tendo seguido inicialmente a forma de processo
abreviado, cujo julgamento nos termos da L.O.F.T.J. (artigo 102.º, n.º 1)
compete aos Tribunais de Pequena Instância Criminal, por razões cuja validade
infra-constitucional não cabe a este tribunal apreciar, determinou-se que os
mesmos deveriam seguir a forma do processo comum, cujo julgamento nos termos da
L.O.F.T.J. (artigo 100.º) compete aos Tribunais Criminais.
A alteração do foro competente para o julgamento foi consequência, pois, da
aplicação das regras gerais e abstractas definidoras da competência funcional
dos diversos tribunais criminais que integram a organização judiciária
portuguesa, e não de uma qualquer determinação discricionária de um tribunal
para julgar este processo, pelo que não se mostra violada a proibição contida no
artigo 32.º, n.º 9, da C.R.P..
A igual conclusão se chegou em caso idêntico no acórdão proferido por este
Tribunal no processo n.º 913/08.
Por este motivo deve ser julgado procedente o recurso interposto pelo Ministério
Público, não se julgando inconstitucional o critério normativo recusado pela
decisão recorrida e determinando-se a sua consequente reformulação.
*
Decisão
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso e, em consequência decide-se:
a) Não julgar inconstitucional o critério normativo extraído dos artigos 119.º,
alínea f), e 391.º‑ D, do Código de Processo Penal, segundo o qual a
inviabilidade da realização do julgamento em processo abreviado no prazo de 90
dias a contar da dedução da acusação constitui uma nulidade insanável,
conducente à alteração da forma de processo abreviado para a forma de processo
comum, com a consequente remessa dos autos, para julgamento, do Tribunal de
Pequena Instância Criminal para o Tribunal Criminal.
b) Determinar a reformulação da decisão recorrida, em conformidade com o
precedente juízo de constitucionalidade.
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Sem custas.
Lisboa, 25 de Março de 2009
João Cura Mariano
Benjamim Rodrigues
Mário José de Araújo Torres
Joaquim de Sousa Ribeiro
Rui Manuel Moura Ramos
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