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Processo n.º 1004/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I- Relatório
1. O Ministério Público interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao
abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro
(LTC) do despacho de 11 de Abril de 2008, do Tribunal Criminal de Lisboa, no
qual foi decidido o seguinte:
«A) Recusa-se por inconstitucional, a interpretação dada aos artigos 119.º
alínea f) e 391.º-D do Código de Processo Penal e a sua subsequente aplicação,
no sentido de que a inviabilidade da realização do julgamento no prazo de 90
dias a contar da dedução da acusação constitui uma nulidade insanável, porquanto
tal conduz à alteração da forma de processo abreviado para a forma de processo
comum, e assim, de forma mediata, à alteração das regras prévias e expressas que
fixam a competência dos tribunais, neste caso, do Tribunal de Pequena Instância
Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, em violação dos artigos 22.º, 23.º
100.º 102.º n.º 1 da Lei n.º 3/99 de 13de Janeiro, artigo 119.º alínea e) do
Código de Processo Penal, e artigo 32.º, n.º 9 da Constituição da República
Portuguesa.
B) Em consequência, declara-se este tribunal incompetente para a realização do
julgamento e recusa-se o recebimento destes autos».
Neste Tribunal, o Ministério Público alegou e concluiu que “[T]endo
em conta que a fundamentação que subjaz ao despacho recorrido se abriga na
violação de normas legais ordinárias, relativas à aplicação da lei no tempo
quanto aos requisitos da forma especial de processo, há que concluir, assim, não
se estar perante uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa, pelo
que não deve tomar-se conhecimento do recurso”
A recorrida A. ( arguida ) não contra-alegou.
II- Fundamentos
2. São as seguintes as ocorrências processuais com interesse para decisão das
questões que o presente recurso suscita:
a) Em 3 de Novembro de 2006, o Ministério Público acusou o arguido, nos Juízos
de pequena Instância Criminal de Lisboa, em processo abreviado, pela prática de
um crime de condução em estado de embriaguez.
b) Em 15 de Março de 2007, foi designada data para julgamento em processo
abreviado.
c) Em 9 de Janeiro de 2008, o Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa,
invocando as alterações do Código de Processo Penal decorrentes da Lei n.º
48/2007, de 29 de Agosto, em especial o disposto no artigo 391.º-D desse Código,
decidiu (fls. 27 e segs.) que “a audiência de julgamento não pôde ter o seu
início no prazo de 90 (noventa) dias contados sobre a dedução da acusação, pelo
que não poderá o processo ser tramitado na forma especial abreviada,
determinando que se julgue nulo o processado, salvaguardando os seus termos até
à acusação, nos termos do disposto nos artigos 391.º-D e 119.º, alínea f) do
Código de Processo Penal”.
d) Na sequência desta decisão, o Ministério Público deduziu nova acusação em
processo comum e os autos foram remetidos ao Tribunal Criminal da Comarca de
Lisboa.
e) Distribuído o processo ao 6.º Juízo Criminal, foi proferida a decisão
recorrida, com a seguinte fundamentação (despacho de 11 de Abril de 2008, fls.
44 e segs.):
«Questão Prévia: da inconstitucionalidade da interpretação dada à norma contida
no actual art. 391°-D do Código de Processo Penal, no sentido de que a
inviabilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias constitui uma
nulidade insanável.
*
Foi proferido despacho de acusação, no dia 10-01-2006, para julgamento em
processo abreviado, imputando ao arguido, por factos indiciariamente praticados
no dia 08-12-2005, a prática de um crime de furto (art. 203°, n°1 do Código
Penal).
A acusação foi recebida por despacho de 13-07-2007, e foram designadas as datas
de 26-02-2008 e 28-02-2008, para a realização de julgamento.
Contudo, o processo foi concluso ao Mm° Juiz titular do 2° Juízo, 1ª Secção do
Tribunal de Pequena Instância de Lisboa, no dia 14-01-2008.
O Mm° Juiz titular, em despacho de 14-01-2008, considerou existir, devido às
alterações legislativas introduzidas no Código de Processo Penal, pela Lei
48/2007, de 29-08, e, em especial, pela introdução do art. 391°-D em tal
diploma, uma nulidade insanável, por emprego de forma de processo especial fora
dos casos previstos na lei (art. 119°, al. f) do Código de Processo Penal),
proveniente, em síntese, do facto da audiência de julgamento não realizar-se no
prazo de 90 dias, conforme actualmente previsto no mencionado normativo.
*
Cumpre apreciar e decidir.
Deixamos desde já consignado que não se pode concordar com a posição assumida no
aliás douto despacho do Mm° Juiz Titular do Tribunal de Pequena Instância de
Lisboa, que declarou existir uma nulidade insanável por emprego de forma de
processo especial fora dos casos previstos na lei (art. 119°, al. f) do Código
de Processo Penal).
Com efeito, a acusação deduzida nestes autos, respeitou na íntegra o disposto
nos arts. 391°-A e 39l°-B, do Código de Processo Penal, que, salvo melhor
opinião, fixam de forma definitiva, quando o uso do processo abreviado deve ter
lugar.
Note-se, antes do mais, que na recente alteração legislativa em causa, não foi
alterado o disposto no art. 119°, al. do Código de Processo Penal, que prevê a
existência de nulidade insanável, em caso de emprego de forma de processo
especial fora dos casos expressamente previstos na lei.
Por outro lado, é um facto que a actual lei, devido às alterações introduzidas
pela Lei 48/2007, introduziu um preceito novo, o art. 391°-D do Código de
Processo Penal, e é certo que tal dispositivo legal dispõe que, “A audiência de
julgamento em processo abreviado tem início no prazo de 90 dias a contar da
dedução da acusação.”
Contudo, o desrespeito do prazo previsto em tal normativo inovador, apenas pode
consubstanciar uma irregularidade sujeita ao regime do art. 123° do Código de
Processo Penal, conforme, aliás, se expressa o Venerando Conselheiro Maia
Gonçalves no Código de Processo Penal anotado, na última edição.
Com efeito, escreve aquele mui douto autor, “O início da audiência para além de
90 dias a contar da dedução da acusação constitui irregularidade, sujeita ao
regime do art. 123°.” (Maia Gonçalves, Código de Processo Penal anotado,
Coimbra: Almedina, 2007, p. 824).
Quanto a nós tal conclusão resulta à evidência, desde logo, com vista a
salvaguardar as regras da competência que são, diríamos nós sagradas em termos
jurídico-criminais, e por isso merecedoras da mais alta tutela, ou seja,
Constitucional, pelo preceituado no art. 32°, n°9 da Constituição da República
Portuguesa, onde se dispõe: “Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja
competência esteja fixada em lei anterior.”
Desta norma Constitucional emana o princípio do juiz natural ou do juiz legal,
que é uma garantia do processo criminal.
Neste âmbito, não pode ser assim descurado o facto de que na Comarca de Lisboa,
a competência para o julgamento dos processos abreviados está expressamente
atribuída ao Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa (art. 102°, n°1 da
LOFTJ).
Com efeito, dispõe tal normativo, “1 - Compete aos juízos de pequena instância
criminal preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo
sumário, abreviado e sumaríssimo.”
Tal regra de competência, numa interpretação de acordo com a Constituição não
pode ser, de forma alguma violada.
Recorde-se que a norma constitucional em referência (art. 32°, n°9 da CRP), tem
outros reflexos na legislação ordinária.
Neste âmbito, destacam-se os arts. 22° e 23° da LOFTJ (Lei 3/99 de 13/0 1), onde
se prevê:
(…)
A consequência mediata da declaração de nulidade insanável do processado, por
emprego de processo especial fora dos casos expressamente previstos na lei, é a
alteração do tribunal competente para proceder ao julgamento da causa, porquanto
passando o processo a seguir a forma comum, na comarca de Lisboa (e todas as
outras comarcas onde se encontram instalados tribunais de pequena instância
criminal), o tribunal competente para o julgamento passa a ser um Juízo Criminal
(art. 100° da LOFTJ).
Assim sendo, seguindo um entendimento onde a declaração de nulidade do
processado anterior conduz a uma alteração da forma do processo e, em
consequência, a uma alteração de competência do tribunal, neste caso, para o
julgamento do processo abreviado, fixada expressamente no já aludido art. 102°,
n°1 da Lei 3/99 de 13/01, afigura-se que tal despacho provoca um desaforamento
que não está especialmente previsto na lei, em violação expressa do art. 23° da
LOTFJ e do próprio princípio do juiz natural ou legal, constitucionalmente
consagrado no art. 32°, n°9 da CRP.
O princípio do juiz natural ou legal, conforme nos recordam J.J. Gomes Canotilho
e Vital Moreira, in CRP anotada, Vol. I 4ª edição revista, Coimbra Editora:
2007, p. 525, comporta várias dimensões fundamentais, a saber:
“... (a) exigência de, determinabilidade o que implica que o juiz (ou juízes)
chamado(s) a proferir decisões num caso concreto estejam previamente
individualizados através de leis gerais, de uma forma o mais possível
inequívoca; (b) princípio da fixação de competência, o que obriga à observância
das competências decisórias legalmente atribuídas ao juiz e à aplicação dos
preceitos que de forma mediata ou imediata são decisivos para a determinação do
juiz da causa; (c) observância das determinações de procedimento referentes à
divisão funcional interna (distribuição de processos), o que aponta para a
fixação de um plano de distribuição de processos ...”
Resulta pois da exposta doutrina, que a lei que fixa a competência deve estar
individualizada através de uma lei geral, de uma forma o mais possível
inequívoca, devendo tais regras ser respeitadas quer de forma mediata quer de
forma imediata, com tutela mesmo ao nível do plano de distribuição dos
processos.
Ora, a interpretação que o despacho em causa realiza do disposto nos arts.
391°-D e 119° al. f) do Código de Processo Penal, põe em causa, conforme resulta
da presente exposição, de forma mediata mas evidente, as regras da competência
expressamente consagradas no art. 102°, n°1 da LOFTJ.
Sufragando a interpretação do despacho em causa, a forma do processo e, de forma
mediata, a competência para o julgamento dos processos, fica, além do mais,
dependente das contingências particulares da vida humana, pois será a agenda do
juiz, o tempo na distribuição e conclusão do processo pela Secção de processos,
eventuais atrasos dos CTT, baixas por doença dos titulares do respectivo
tribunal, licenças de maternidade ou paternidade, que determinarão ou não a
possibilidade da realização do julgamento no prazo de 90 dias a contar da
dedução da acusação, conforme actualmente previsto no art. 391°-D do Código de
Processo Penal, e assim o emprego da forma especial do processo e a competência
do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o julgamento.
Ora, deste modo a competência do tribunal fica sujeito a uma evidente
indeterminabilidade e a regra da competência pré-fixada na lei a uma notória
subjectividade, em clara violação do art. 32°, n°9 da CRP.
Neste âmbito, recorde-se o que os doutos constitucionalistas citados referem a
este respeito, “A escolha do tribunal competente deve resultar de critérios
objectivos predeterminados e não de critérios subjectivos.” (ibidem). A Lei é
geral e abstracta, e tais pressupostos, em matéria de competência fazem-se
sentir no mais elevado dos planos jurídicos, o Constitucional.
Devido à importância da generalidade e abstracção na fixação das regras da
competência, donde emana o já invocado princípio do juiz natural ou legal, o
Código de Processo Penal não podia deixar de enquadrar violações a tais regras
nos mais intensos vícios processuais, ou seja, nos que consubstanciam nulidades
insanáveis, em concreto previsto no art. 119° al. e) do Código de Processo
Penal.
Nem se diga, contra a interpretação que aqui se expõe, que a alteração da forma
do processo e, em consequência, da competência dos tribunais, vem reforçar os
direitos dos arguidos inicialmente submetidos ao julgamento em processo
abreviado, porquanto, actualmente, devido às alterações introduzidas pela Lei
48/2007 de 29/08, esta forma de processo deixou de prever o debate instrutório,
anteriormente previsto para esta forma do processo no art. 391°-C, n°2 do Código
de Processo Penal, sendo certo que com a passagem à forma do processo comum, o
arguido volta a ter direito à Instrução.
Tal argumento, desde logo enferma de um vício de lógica, porquanto, no caso
concreto, tendo sido o arguido notificado do despacho de acusação, deduzido sob
a forma abreviada, foi-o ao abrigo da lei antiga, ou seja, quando tinha o
direito de requerer debate instrutório, não tendo o arguido usado de tal
faculdade.
Entendemos pois, que o despacho em causa, além de violar as normas da LOFTJ e a
norma da CRP já cima citados, viola ainda o princípio da aplicação da lei
processual no tempo, que dispõe que a lei processual penal não deve ser aplicada
aos processos iniciados anteriormente à sua vigência, quando da sua
aplicabilidade imediata possa resultar quebra da harmonia e unidade dos vários
actos do processo, sendo certo que ao abrigo da anterior lei não resultava
qualquer agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do
arguido, nomeadamente a limitação dos seus direitos de defesa (art. 5º, n°2 al.
a) e b) do Código de Processo Penal).
Em suma, o despacho proferido pelo Mm° Juiz, salvo melhor entendimento, mais não
faz do que pronunciar-se através da declaração da nulidade do emprego do
processo abreviado, de forma mediata e inconstitucional, sobre as regras da
competência dos tribunais comuns, anteriormente fixadas pelo legislador,
violando diversas normas da legislação ordinária que mais não visam do que dar
corpo ao princípio constitucional do juiz legal, consagrado no art. 32°, n°9 da
Constituição.
Neste contexto, a interpretação dada à norma contida no actual art. 391°-D do
Código de Processo Penal, no sentido de que a inviabilidade da realização do
julgamento no prazo de 90 dias constitui uma nulidade insanável, que conduz, por
sua vez, à alteração da competência dos tribunais, neste caso, do Tribunal de
Pequena Instância Criminal e dos Juízos Criminais de Lisboa, é, salvo melhor
entendimento, inconstitucional, por violar o disposto no art. 32°, n°9 da
Constituição.
Assim sendo, aceitar a aplicação das normas contidas nos arts. 119° al. f) e
391°-D do Código de Processo Penal, na interpretação que lhes foi dada no
despacho em causa, e aceitando assim, em consequência, a competência para o
julgamento dos presentes autos, constitui, quanto a nós, uma
inconstitucionalidade, que nos é vedada pelo mais elevado dever do juiz de
respeito à Constituição da República Portuguesa.
Terá de ser pelo estabelecido nos arts. 391°-A e 391-B, que se considera fixada
a possibilidade do uso do processo especial abreviado e, em consequência, terá
de ser pela verificação dos pressupostos aí previstos que se considera fixada a
competência do Tribunal de Pequena Instância Criminal e Juízos Criminais de
Lisboa, em respeito pelas normas de competência previstas nos arts. 100°, 102°,
n°1, 22° e 23° da LOFTJ.
Recorde-se, para terminar, que aqueles dispositivos do Código de Processo Penal
dispõem:
(…)
A forma do processo e, consequentemente, a competência do Tribunal de Pequena
Instância Criminal e Juízos Criminais de Lisboa fixa-se pois de acordo com estes
dispositivos e não de acordo com o preceituado no art. 391°-D do mesmo diploma».
e) Desta decisão foi interposto o presente recurso (requerimento de
30 de Abril de 2008), por a mesma “julgar inconstitucional a aplicação da norma
constante do artigo 391.º-D em conjugação com disposto no artigo119.º - f) do
Código de Processo Penal (na interpretação dada no despacho de fls. 57 a 63)”
[despacho do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa].
f) Foi interposto (e motivado) recurso do mesmo despacho para o
Tribunal da Relação, declarando desistir do recurso interposto para o Tribunal
Constitucional
g) Por despacho de 16 de Junho de 2008, foi decidido: (a) admitir o
recurso para o Tribunal Constitucional; (b) não aceitar a desistência desse
recurso de constitucionalidade, por se tratar de recurso obrigatório; (c) não
admitir o recurso ordinário interposto, considerando o disposto no artigo 75.º
da LTC, sem prejuízo de eventual recurso a interposição após a descida dos autos
do Tribunal Constitucional.
h) O Ministério Público reclamou deste despacho para o Presidente do
Tribunal da Relação de Lisboa;
h) A reclamação foi indeferida considerando que “uma vez que a
instância de recurso para o Tribunal Constitucional se mantém pendente e válida,
é extemporâneo o recurso interposto para esta Relação”.
4. Sustenta o Ministério Público, nas alegações, que o fundamento essencial para
a decisão tomada e por este invocada expressamente é o entendimento que o
tribunal a quo professa sobre o sentido e a aplicação de disposições
infra-constitucionais respeitantes quer à competência dos tribunais, quer aos
requisitos do processo abreviado e à qualificação da eventual inobservância do
prazo de julgamento quer ao regime de aplicação da lei processual penal no tempo
das novas normas relativas à forma de processo abreviado. Crucial é a
divergência sobre essas questões de direito ordinário entre os dois tribunais
que declinaram a competência. Para o juiz do TPICL, já não sendo possível
cumprir o prazo (inovadoramente) estabelecido pelo artigo 391.º-D do CPP, não
poderia continuar a seguir-se a forma de processo abreviado. Segundo o despacho
recorrido esse entendimento seria errado, mantendo-se a forma de processo
abreviado e a consequente competência funcional do TPICL, quer porque a lei nova
não se aplica aos processos em que a competência desse tribunal se fixara com
base em acusação validamente deduzida anteriormente nessa forma processual, quer
porque a inobservância do prazo estabelecido pelo citado artigo 391.º‑D não
implica nulidade processual.
Sendo assim, não estaríamos, segundo o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, perante
uma verdadeira “questão de inconstitucionalidade normativa” mas, na prática,
perante um conflito negativo de competência, pelo que não deveria conhecer-se do
presente recurso.
5. Esta interpretação do despacho recorrido não é inteiramente
exacta.
É nesse despacho discernível uma questão de constitucionalidade, embora “não […]
linear e [revestindo-se] de alguma complexidade” como o tribunal a quo
(re)afirma no despacho de fls. 64. Consiste ela no entendimento de que viola o
disposto no n.º 9 do artigo 39.º da Constituição (princípio do juiz natural) a
hipotética norma extraída dos artigos 119.º, alínea f) e 391.º-D do Código de
Processo Penal quando conjugadamente interpretados no sentido de que a
inviabilidade do julgamento no prazo de 90 dias a contar da dedução da acusação
constitui uma nulidade insanável, implicando a alteração da forma de processo
abreviado para processo comum e a consequente deslocação da competência do
âmbito do Tribunal de Pequena Instância Criminal para o Tribunal Criminal, nas
comarcas onde exista tal distribuição funcional de competência, como sucede em
Lisboa. Aliás, o despacho recorrido dá a essa questão a devida ênfase,
destacando no próprio dispositivo a resposta que para ela propugna. O mais que
poderá dizer-se é que, para que a base legal da norma desaplicada fique
completa, falta explicitar os preceitos que contém as regras de organização
judiciária de que resulta a subtracção da causa ao juiz inicialmente competente
em função da alteração da forma de processo.
6. Todavia, o Ministério Público não deixa de ter razão quando pugna
pelo não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade, a fim de que
o dissídio sobre a competência seja resolvido pelos meios ordinários.
Com efeito, apesar do particular empenho do tribunal a quo em
sublinhar o juízo de inconstitucionalidade que lança sobre a interpretação e
aplicação feita no despacho do TPICL, é também inegável a adopção pelo despacho
recorrido da pluralidade de fundamentos que o Ministério Público salienta. No
plano da interpretação do direito ordinário, o despacho recorrido faz uma opção
clara e um sustentada defesa do entendimento de que a inobservância do prazo de
90 dias a que se refere o artigo 391.º-D constitui uma mera irregularidade que
não impede o prosseguimento do caso na forma de processo abreviado. E,
igualmente de modo claro e sustentado, repudia a aplicabilidade da lei nova nas
circunstâncias do caso. O despacho expressa o entendimento de que o despacho do
primitivo juiz do processo, que está na origem da sua remessa aos juízos
criminais, errou na aplicação imediata da lei processual nova, na interpretação
das normas de orgânica judiciária perante alterações do direito posteriores à
fixação da competência e na interpretação das novas normas processuais relativas
ao uso da forma de processo abreviado. Na lógica do despacho recorrido, qualquer
destes fundamentos, cuja análise o tribunal a quo entende compreender-se no
âmbito da determinação da própria competência, é susceptível de alicerçar a
declinação dessa competência.
Posto isto, constatada a existência de fundamentos alternativos da decisão, isto
é, de pluralidade de fundamentos, um ou vários dos quais estranhos ao objecto do
recurso de constitucionalidade e por si só suficientes para assegurar o sentido
da decisão recorrida ainda que esta viesse a ser revogada na parte respeitante à
questão da inconstitucionalidade, não deve conhecer-se do objecto do recurso. O
eventual provimento do recurso de constitucionalidade eliminaria um dos
fundamentos da decisão, mas não seria de molde a repercutir-se no sentido desta,
que sempre subsistiria com base na interpretação do direito ordinário que a
decisão professa.
7. A tanto não obsta a circunstância de se tratar de recurso
obrigatório, interposto ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º e do n.º
3 do artigo 72.º da LTC.
Reconhece-se que, na sua grande maioria, as decisões de não conhecimento do
recurso de constitucionalidade por existência de fundamentos alternativos na
decisão recorrida surgem em recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º
1 do artigo 70.º da LTC, nos quais, por força da regra da prévia exaustão dos
recursos ordinários, a decisão recorrida para o Tribunal Constitucional coincide
com a decisão final da causa na ordem jurisdicional respectiva, e, por isso, o
eventual provimento do recurso de constitucionalidade se apresenta como
insusceptível de afectar, mais do que o sentido da decisão recorrida, o
desfecho da causa. Mas também assim tem vindo a ser maioritariamente decidido
em recursos interpostos, como o presente, ao abrigo da alínea a) do n.º 1 do
artigo 70.º da LTC (Em sentidos divergentes, acórdão n.º 113/2006 e acórdão n.º
256/2004, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt, Cfr. também, a
jurisprudência citada por Victor Calvete, “Interesse e Relevância da Questão de
Constitucionalidade e Utilidade do Recurso de Constitucionalidade - Quatro Faces
de uma mesma Moeda”, Estudos em Homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da
Costa, 404).
Com efeito, se a sentença vier a ser confirmada quanto ao fundamento
que consiste na interpretação e aplicação do direito ordinário que na decisão se
propugna, nunca a apreciação da questão de constitucionalidade se revestirá de
interesse para a decisão da causa (Aliás, o mesmo parece suceder se a decisão
for revogada mas com fundamento na preclusão da questão relativa à forma do
processo por não ter sido impugnada pelos sujeitos processuais a decisão do TPIC
– cfr. acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/9/2008, 6/10/2008,
23/10/2008 e 15/1/2009, em processos 6376/2008-9, 6653/2008-5, 6354/2008-9 e
10999/2008-5, respectivamente). E se, nesse aspecto, a decisão vier a ser
revogada terá, então, de ser enfrentada a questão de constitucionalidade das
normas aplicadas e bem pode suceder que o tribunal superior não confirme o juízo
de inconstitucionalidade.
Assim, o conhecimento imediato da questão de constitucionalidade
suscitada não se reveste da utilidade inerente à função instrumental do recurso
de fiscalização concreta de constitucionalidade: a susceptibilidade de
repercussão no sentido da decisão da questão em que se enxerta, no momento de
proceder à reforma da decisão recorrida de acordo com o julgamento sobre a
questão de constitucionalidade.
Aliás, em casos deste género pode mesmo sustentar-se que, apesar da afirmação de
inconstitucionalidade da interpretação adversa, enquanto se mantiver o
fundamento alternativo adoptado na sentença, não existe efectiva desaplicação da
norma em causa. Da norma, como a decisão recorrida a interpreta e aplica, não
resulta a verificação do efeito jurídico que, por não respeitar a Constituição,
se quer evitar (o alegado desaforamento do processo). O sentido inconstitucional
é atribuído a uma outra interpretação que se tem por errada e a que o tribunal
não se sente vinculado, sequer por mecanismos de preclusão processual, pelo que
esse juízo não se apresenta como condição sine qua non da decisão, no plano
intrínseco desta. Assim, a vontade do legislador precipitada na norma não pode
dizer-se objectivamente afastada pelo juiz por desconformidade à Constituição,
pelo que o entendimento de que não deve conhecer-se do recurso também não
conflitua com as razões que levaram a Constituição (artigo 280.º, n.º 3, da CRP)
e a lei (artigo 72.º, n.º 3, da LTC) a configurar o recurso como obrigatório
para o Ministério Público.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam em não conhecer do objecto do presente
recurso.
Sem custas.
Lisboa, 25/3/2009
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Ana Maria Guerra Martins
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão
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