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Processo n.º 521/2013
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1. A. deduziu perante a Administração Fiscal um pedido de prova do preço efetivo na transmissão de imóvel, nos termos previstos no artigo 129º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), sem instruir o requerimento com os documentos de autorização para acesso à informação bancária do requerente a que se refere o n.º 6 desse preceito.
Tendo sido indeferido o pedido por falta de junção dos documentos de autorização, o requerente intentou no Tribunal Administrativo e Fiscal do Funchal ação administrativa especial visando a anulação do ato de indeferimento, a qual foi julgada totalmente improcedente por sentença de 3 de julho de 2012.
Dessa decisão, o impugnante interpôs recurso para o Tribunal Central Administrativo do Sul, invocando que o ato da Administração Fiscal, que indeferiu liminarmente o pedido de demonstração do preço efetivo de venda de imóvel por não ter sido previamente apresentada a autorização para a Administração aceder à informação bancária, viola o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, o direito à tutela jurisdicional efetiva, bem como o princípio da proporcionalidade, e, assim, as disposições constantes dos artigos 2º, 18º, 20º, n.ºs 1 e 4, 266º e 268º, n.º 4, da Constituição.
O Tribunal Central Administrativo do Sul, por decisão de 21 de maio de 2013, negou provimento ao recurso, afastando todas as arguidas inconstitucionalidades, pelo o recorrente interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo do disposto no artigo 70º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, delimitando o objeto do recurso por referência aos n.ºs 6 e 7 do artigo 139º do CIRC (preceito que corresponde ao citado artigo 129º após a renumeração efetuada pelo Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho).
Tendo o recurso prosseguido para apreciação de mérito, o recorrente apresentou alegações formulando a final as seguintes conclusões:
I - O sigilo bancário recai no âmbito de proteção do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada previsto no n.º 1 do artigo 26.º da CRP.
II - Sendo certo que se podem admitir restrições a esse direito por razões de salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, designadamente a obtenção de receitas necessárias à prossecução do interesse público;
III - Terão de ser consagrados mecanismos que acautelem os interesses pela tutela constitucional da privacidade.
IV - O n.º 6 e o n.º 7 do artigo 139.º do CIRC pressupõem a perda da reserva da privacidade do banco, dos seus administradores e, por consequência, dos seus milhares de clientes, como condição sine qua non para o exercício procedimental e processual do direito à prova do seu rendimento real;
V - Tal pressuposto atenta de forma injustificada e desproporcionada contra (i) o direito à tutela da reserva da vida privada, contra (ii) o direito à tutela jurisdicional efetiva, bem como, contra (iii) o direito à tributação pelo rendimento real – todos direitos constitucionalmente protegidos;
VI - Para além de que, sublinha-se, tal exigência é desadequada e desproporcionada em relação ao desiderato que visa alcançar;
VII - Existem outros meios de prova, menos lesivos para os direitos fundamentais do contribuinte, adequados à demonstração do preço efetivo de venda dos imóveis;
VIII - Em suma, a derrogação do sigilo bancário nos moldes previstos no n.º 6 do artigo 139.º, ao constituir uma condição prejudicial do acesso ao direito de produção de prova nele previsto e da impugnação da respetiva liquidação, constitui uma violação injustificada da reserva da intimidade da vida privada, uma restrição ao exercício efetivo do direito de acesso à justiça desajustada e desproporcionada, na medida em que é extremamente abrangente e ampla e, consequentemente, uma violação do direito à tributação pelo lucro real.
A Fazenda Pública contra-alegou, concluindo do seguinte modo:
A) O objeto do presente recurso passa por analisar e decidir a constitucionalidade do artigo 139° n° 6 do CIRC.
B) A delimitação do âmbito do direito à intimidade da vida privada é uma questão bastante controversa, quer no plano jurisprudencial, quer no plano doutrinal.
C) De qualquer modo, a conclusão que se impõe face à doutrina e jurisprudência predominantes é a de que o sigilo bancário não recai no âmbito de proteção do direito à reserva sobre a intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.° da CRP, na medida em que não atinge o âmago, a essência, da reserva da intimidade da vida privada, podendo apenas pôr eventualmente em causa a privacidade dos contribuintes, não a sua intimidade.
D) Ora, não constituindo o segredo bancário um valor absoluto, nem sequer estando diretamente englobado no que é nuclear à reserva da intimidade da vida privada e familiar, o mesmo terá de ceder, sempre que isso seja necessário para acautelar outros valores de hierarquia mais elevada, de harmonia com o princípio da prevalência do interesse preponderante.
E) E como refere o ora Recorrente nas suas conclusões do recurso Sendo certo que se podem admitir restrições a esse direito por razões de salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos, designadamente a obtenção de receitas necessárias à prossecução do interesse público
56. Aliás, O próprio Acórdão referido pelo Recorrente na sua petição de recurso (a saber, o Acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n° 442/2007, de 14/08/2007, refere que (vide ponto 16.3 do acórdão) o segredo bancário localiza-se fora da esfera mais estrita da vida pessoal, e ainda que compreendido no âmbito de proteção, ocupa uma zona de periferia, pelo que a sua quebra por iniciativa da Administração tributária representa uma lesão diminuta do bem protegido.
F) Assim, o n° 6 do artigo 139° do CIRC poderá eventualmente pôr em causa a privacidade do banco e dos seus administradores, mas, contrariamente ao invocado pelo ora Recorrente, jamais a dos seus clientes.
G) pois, naturalmente, o acesso à informação bancária dos clientes do Recorrente em nada contribuiria para se chegar a uma conclusão quanto ao preço porque o Recorrente efetivamente alienou um imóvel (quanto muito interessariam as contas dos adquirentes desses imóveis).
H) Na verdade, as contas dos clientes da sociedade aqui Recorrente, não estão de modo algum aqui em causa, pois a atividade que o Recorrente exerce é completamente irrelevante para estes efeitos, na medida em que, tal como qualquer outra sociedade, com um qualquer ramo de atividade, que compre ou aliene um imóvel, o Recorrente com certeza tem contabilidade e tem contas bancárias de onde sai o dinheiro para as suas compras e entra o dinheiro das suas vendas.
l) Relativamente à pretensa violação do direito à tutela jurisdicional efetiva, diremos apenas que o contribuinte conhece as regras do mecanismo do artigo 1 39 do CIRC, pelo que ao acioná-lo tem que cumprir com as mesmas, tal como a administração tributária.
J) inconstitucional seria, isso sim, não existir o mecanismo do artigo 139° do CIRC!
K) O legislador no artigo 139° do CIRC não coartou a possibilidade de impugnação judicial, antes se limitou a fazê-la depender do prévio esgotamento dos meios tutelares graciosos antes de recorrer aos tribunais, especialmente porque estamos perante uma matéria cuja natureza permite uma eficaz resolução administrativa à semelhança do que fez, por exemplo, nos artigos 131° n° 1, 132° n° 3 e 133° no 2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), a propósito das impugnações em caso de autoliquidação, retenção na fonte e pagamento por conta, que dependem de reclamação prévia (vide Acórdão n.º 3872/10 de 21/09/2010 do Tribunal Central Administrativo).
L) No artigo 139° n° 6 do CIRC, o legislador entendeu que as escrituras públicas não constituem prova suficiente do preço efetivamente praticado no negócio, para efeitos de afastamento da norma anti abuso do artigo 64° do CIRC, o que veio refletir alguma jurisprudência, nomeadamente o Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul n° 3101/01 de 29/04/2003 (anterior portanto aos artigos 64° e 139° do CIRC), a propósito de correções de valores suportados em escrituras públicas.
M) Face aos valores em presença, considerou-se pois neste Acórdão que a possibilidade de acesso às contas bancárias seria o meio adequado e necessário à obtenção do fim visado (de tributação pelo lucro real e afastamento de uma norma anti abuso), não tendo assim considerado o disposto no 139° n° 6 do CIRC como uma medida excessiva relativamente ao fim a obter, o que significa que o princípio da proporcionalidade foi respeitado.
N) O dever fundamental de pagar impostos, estabelecido no artigo 103° 1 e 2 da CRP, já não se esgota no tradicional cumprimento de obrigações pecuniárias.
O) Efetivamente, face à deslocação sistemática de fases do procedimento de determinação, liquidação e cumprimento das obrigações fiscais para os particulares, assiste-se atualmente a uma transformação funcional da administração tributária, relegada fundamentalmente para funções de controlo e fiscalização dos impostos, tornando-se inevitável que o Estado reforce os poderes de inspeção da administração tributária.
P) Ora, esse reforço não deverá deixar de compreender o acesso da administração tributária a informações protegidas pelo segredo bancário.
Q) Outro aspeto a considerar é o de que, de acordo com o artigo 1 04° n° 2 da CRP, a tributação das empresas incide fundamentalmente sobre o seu lucro real (em detrimento do modelo de tributação pelo lucro normal), visto como afloração dos princípios da igualdade e da capacidade contributiva, sendo que a natureza do princípio da tributação pelo lucro real, articulada com a natureza subsidiária do recurso a presunções como forma de determinar o rendimento real recomenda que a administração tributária esteja dotada de amplos poderes de controlo e de investigação, por forma a averiguar se a contabilidade das empresas, relembre-se, a forma preferencial pela qual é determinado o lucro real se mostra ou não adequada para a determinação do lucro real.
R) Uma vez que, nos termos do, pelo ora Recorrente invocado, artigo 266° da CRP, a Administração Tributária está subordinada à Constituição e à lei, e que no caso em apreço se limitou a cumprir com a lei aplicável, não se vislumbra em que medida a sua atuação poderá ter desrespeitado o princípio da boa-fé.
S) Em suma, não estamos em presença de qualquer violação de direitos, liberdades e garantias,
T) pois o que está em causa é apenas a privacidade, não a vida íntima privada,
U) o acesso, quer à justiça administrativa, quer à jurisdicionai, está previsto na norma em causa,
V) e a ponderação dos valores em causa foi tida em conta na elaboração da norma, a qual, não nos podemos esquecer, visa afastar a aplicação de uma norma especial anti abuso.
Cabe apreciar e decidir.
2. A recorrente interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, pretendendo ver apreciada a constitucionalidade das normas do n.ºs 6 e 7 artigo 139º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (CIRC), que igualmente constituem objeto das respetivas alegações de recurso.
No entanto, a norma efetivamente aplicada pelo tribunal recorrido foi a do n.º 6 do artigo 129º desse Código - que passou a corresponder, por efeito da renumeração efetuada Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, ao artigo 139º -, tendo sido ainda em relação a essa mesma disposição que a recorrente suscitou, na motivação de recurso, as questões de inconstitucionalidade sobre que recaiu a pronúncia do Tribunal Central Administrativo do Sul.
O objeto do recurso de constitucionalidade encontra-se assim necessariamente delimitado pela norma do n.º 6 do citado artigo 129º (a que atualmente corresponde o mencionado artigo 139º) que constitui a ratio decidendi da solução adotada pelo tribunal recorrido.
Este preceito, sob a epígrafe “Prova do preço efetivo na transmissão de imóveis”, consigna o seguinte:
1 - O disposto no nº 2 do artigo 64º não é aplicável se o sujeito passivo fizer prova de que o preço efetivamente praticado nas transmissões de direitos reais sobre bens imóveis foi inferior ao valor patrimonial tributário que serviu de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis.
2 - Para efeitos do disposto no número anterior, o sujeito passivo pode, designadamente, demonstrar que os custos de construção foram inferiores aos fixados na portaria a que se refere o nº 3 do artigo 62º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis, caso em que ao montante dos custos de construção deverão acrescer os demais indicadores objetivos previstos no referido Código para determinação do valor patrimonial tributário.
3 - A prova referida no nº 1 deve ser efetuada em procedimento instaurado mediante requerimento dirigido ao diretor de finanças competente e apresentado em janeiro do ano seguinte àquele em que ocorreram as transmissões, caso o valor patrimonial tributário já se encontre definitivamente fixado, ou nos 30 dias posteriores à data em que a avaliação se tornou definitiva, nos restantes casos.
4 - O pedido referido no número anterior tem efeito suspensivo da liquidação, na parte correspondente ao valor da diferença positiva prevista no nº 2 do artigo 64º, a qual, no caso de indeferimento total ou parcial do pedido, é da competência da Direção-Geral dos Impostos.
5 - O procedimento previsto no nº 3 rege-se pelo disposto nos artigos 91º e 92º da Lei Geral Tributária, com as necessárias adaptações, sendo igualmente aplicável o disposto no nº 4 do artigo 86º da mesma lei.
6 - Em caso de apresentação do pedido de demonstração previsto no presente artigo, a administração fiscal pode aceder à informação bancária do requerente e dos respetivos administradores ou gerentes referente ao período de tributação em que ocorreu a transmissão e ao período de tributação anterior, devendo para o efeito ser anexados os correspondentes documentos de autorização.
7 - A impugnação judicial da liquidação do imposto que resultar de correções efetuadas por aplicação do disposto no nº 2 do artigo 64º, ou, se não houver lugar a liquidação, das correções ao lucro tributável ao abrigo do mesmo preceito, depende de prévia apresentação do pedido previsto no nº 3, não havendo lugar a reclamação graciosa.
8 - A impugnação do ato de fixação do valor patrimonial tributário, prevista no artigo 77º do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis e no artigo 134º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, não tem efeito suspensivo quanto à liquidação do IRC nem suspende o prazo para dedução do pedido de demonstração previsto no presente artigo.
Relacionada com essa disposição está a do artigo 58º-A do CIRC, a que corresponde atualmente artigo 64º, que se refere às “Correções ao valor de transmissão de direitos reais sobre bens imóveis”, e que, na parte que mais interessa considerar, tem a seguinte redação:
1 - Os alienantes e adquirentes de direitos reais sobre bens imóveis devem adotar, para efeitos da determinação do lucro tributável nos termos do presente Código, valores normais de mercado que não podem ser inferiores aos valores patrimoniais tributários definitivos que serviram de base à liquidação do imposto municipal sobre as transmissões onerosas de imóveis (IMT) ou que serviriam no caso de não haver lugar à liquidação deste imposto.
2 - Sempre que, nas transmissões onerosas previstas no número anterior, o valor constante do contrato seja inferior ao valor patrimonial tributário definitivo do imóvel, é este o valor a considerar pelo alienante e adquirente, para determinação do lucro tributável.
[…]
Da interpretação conjugada destas disposições resulta, com relevo para o presente caso, que há lugar à correção oficiosa pela Administração Tributária do valor da transmissão onerosa de bens imóveis, para efeitos de determinação do lucro tributável, por referência ao valor patrimonial que tenha servido de base à liquidação do IMT, quando o valor constante do contrato seja inferior a esse. Para afastar a correção do valor tributável nos termos assim previstos, o sujeito passivo pode lançar mão do procedimento definido no artigo 129º, destinado a fazer prova do preço efetivamente praticado na transmissão. No entanto, em caso de apresentação do pedido de demonstração do preço efetivo, o interessado terá de juntar a autorização de acesso da administração fiscal à informação bancária, incluindo a dos respetivos administradores ou gerentes.
A recorrente alega que a referida norma do artigo 129º, n.º 6, exigindo a autorização de acesso a elementos protegidos pelo sigilo bancário como requisito necessário da apresentação do pedido destinado a efetuar a prova do valor da transmissão, viola o direito à reserva da intimidade da vida privada, consagrado no n.º 1 do artigo 26.º da Constituição, o direito à tutela jurisdicional efetiva, consagrado nos artigos 20.º e 268.º n.º 4, o princípio da proporcionalidade, ínsito nos artigos 2º e 18º, n.º 2, e ainda o princípio boa fé da administração constante do artigo 266º.
A sua argumentação assenta essencialmente na doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 442/2007, que decidiu pronunciar-se pela inconstitucionalidade dos n.ºs 2 e 3 do artigo 69.º e dos n.ºs 2 e 3 do artigo 110.º, do Código de Procedimento e de Processo Tributário, na redação dada pelo artigo 3.º do Decreto n.º 139/X da Assembleia da República, por violação dos artigos 2.º, 18.º, n.º 2, 20.º, n.ºs 1 e 4, 26.º, n.º 1, e 268.º, n.º 4, da Constituição.
Deve começar por dizer-se que a situação versada no acórdão nº 442/2007 não é inteiramente coincidente com a do presente processo. Ali discutia-se, na situação de reclamação graciosa ou de impugnação judicial de atos tributários, a possibilidade de a Administração Fiscal aceder diretamente e, por isso, sem o consentimento prévio do interessado e sem necessidade de autorização judicial, a informação coberta pelo sigilo bancário, desde que esse acesso se mostre justificado perante os factos alegados pelo reclamante ou impugnante e desde que a informação bancária esteja relacionada com a situação tributária objeto da reclamação ou impugnação.
No caso vertente, ainda que esteja em causa um procedimento tributário que é também da iniciativa do sujeito passivo – e que constitui uma faculdade garantística dos contribuintes -, ele destina-se especificamente a efetuar a prova relevante para a fixação da matéria tributável relativamente à liquidação do imposto, e não implica o acesso direto à informação bancária, antes pressupondo um consentimento expresso do interessado mediante a concessão de autorização, a qual deve ser junta ao requerimento.
Por outro lado, um aspeto que, desde logo, não tem cabimento chamar à colação é a invocada violação do princípio da boa administração por referência ao disposto no artigo 266º, n.º 2, da Constituição. Esse n.º 2 condensa vários princípios que, no seu conjunto, e articulados com os princípios individualizados no n.º 1 (princípio da prossecução do interesse público e princípio pelo respeito dos direitos e interesses dos particulares) constituem as medidas materiais da juridicidade administrativa que, como tal, respeitam à própria atividade jurídica ou material da Administração. No que se refere especificamente ao princípio da proporcionalidade, também enunciado nesse n.º 2 como princípio conformador da atividade administrativa, ele apenas significa que, no exercício de poderes discricionários, a Administração, para prosseguir os fins legais e os interesses públicos, deve atuar de acordo com a justa medida, adotando, de entre as medidas necessárias e adequadas, aquelas que impliquem menos sacrifícios e perturbação à posição jurídica dos administrados. Ainda que o controlo da proporcionalidade possa ser realizado, dentro dos limites impostos pela separação de poderes, pelos tribunais administrativos e fiscais, é claro que estamos aí perante um parâmetro de controlo da atuação administrativa e não um parâmetro de constitucionalidade do sistema legal que possa ser sindicado pelo Tribunal Constitucional (cfr. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, II Vol., 4ª edição, Coimbra, págs. 797 e 801-802).
A questão central que o recurso de constitucionalidade coloca, e que interessa dilucidar, é a de saber se a exigência imposta pelo n.º 6 do artigo 129º do CIRC, sujeitando o interessado a autorizar o acesso à informação bancária como requisito prévio para desencadear, no seu próprio interesse, um determinado procedimento probatório, viola o princípio da reserva da intimidade da vida privada ou ainda o princípio da tutela jurisdicional efetiva e constitui, nessa medida, uma restrição ilegítima a um direito fundamental.
Como se considerou no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 442/2007, já há pouco citado, na linha de anterior jurisprudência, o bem protegido pelo sigilo bancário cabe no âmbito de proteção do direito à reserva da vida privada consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República.
Essa conclusão, assente na ideia de que a posição económica de cada um não deixa de ser uma projeção externa da pessoa, constituindo um dado individualizador da sua identidade, só é problemática em relação às pessoas coletivas, muito particularmente as sociedades comerciais, pelo facto de não valerem (ou, pelo menos, de não valerem de igual modo), em relação a elas, as considerações que apontam o sigilo bancário como um instrumento de garantia de dados referentes à vida pessoal.
Para além disso, reconhece-se que o segredo bancário se localiza no âmbito da vida de relação, à partida fora da esfera mais estrita da vida pessoal, ocupando uma zona de periferia, mais complacente com restrições advindas da necessidade de acolhimento de princípios e valores com ele conflituantes.
Por isso se afirma que “[o] segredo bancário não é abrangido pela tutela constitucional de reserva da vida privada nos mesmos termos de outras áreas da vida pessoal” (acórdão n.º 42/2007) e é mais suscetível a “restrições (…) impostas pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos” (acórdão n.º 278/95).
Por outro lado – como ainda se anotou no acórdão n.º 442/2007 - quando a quebra do sigilo bancário promana da Administração Fiscal, não pode esquecer-se que ela não implica a abertura desses dados ao conhecimento geral, visto que os conhecimentos obtidos pelo exercício da função tributária estão sujeitos ao dever de confidencialidade (artigo 64.º da Lei Geral Tributária) e a sua violação está tipificada de forma mais gravosa, face ao crime de violação do sigilo profissional (cfr. o artigo 91.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias e o artigo 195.º do Código Penal, por um lado, e artigo 383.º deste Código e os n.ºs 2 e 3 daquele artigo 91.º, por outro).
Nessa medida, o levantamento do sigilo bancário mantém a reserva quanto aos dados que dele são objeto, através da sua cobertura pelo sigilo fiscal, que deixa salvaguardado – ainda que com o alargamento do círculo de pessoas que tomam conhecimento dos dados protegidos – “o conteúdo essencial tanto do direito à privacidade da vida privada e familiar dos contribuintes como da dinâmica da atividade bancária” (CASALTA NABAIS, O dever fundamental de pagar impostos, Coimbra, 1997, pág. 619).
Constata-se, pois, que, não só o sigilo bancário cobre uma zona de segredo francamente suscetível de limitações, como a sua quebra por iniciativa da Administração Tributária representa uma lesão diminuta do bem protegido.
Em contrapartida, em ordem à necessidade de obtenção de receitas para suporte das despesas públicas e à realização dos fins inerentes ao sistema fiscal - incluindo a tributação segundo a capacidade contributiva e a distribuição equitativa da carga fiscal -, a Administração Fiscal está sujeita a um rigoroso princípio do inquisitório, pelo qual deve, no âmbito do procedimento tributário, realizar todas as diligências necessárias à satisfação do interesse público e à descoberta da verdade material, não estando subordinada à iniciativa do autor do pedido. Princípio esse que é completado por um dever de colaboração recíproco entre os órgãos da administração e os contribuintes (artigos 58º e 59º da LGT). O que torna por si justificável que ao dever de averiguação oficiosa da Administração se não possa opor, em termos absolutos, o direito à privacidade relativa a elementos de informação bancária.
3. Sendo admissível, em tese geral, a intromissão na esfera de privacidade do requerente do procedimento tributário – particularmente no que se refere aos respetivos administradores ou gerentes -, por se tratar de procedimento diretamente dirigido à produção de prova relativa ao valor patrimonial tributável, o que interessa ponderar é se o regime de derrogação do sigilo bancário previsto no n.º 6 do artigo 129º satisfaz as exigências garantísticas do procedimento e do processo administrativo (tomando como assente que o direito ao processo equitativo consagrado no artigo 20º, n.º 4, da Constituição se deve considerar extensivo ao próprio procedimento).
Como o Tribunal Constitucional tem repetidamente sublinhado, o direito de acesso aos tribunais é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos a que se deve chegar em prazo razoável e com observância das garantias de imparcialidade e independência, mediante o correto funcionamento das regras do contraditório (acórdão n.º 86/88, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11º, pág. 741). Como concretização prática do princípio do processo equitativo e corolário do princípio da igualdade, o direito ao contraditório, por seu lado, traduz-se essencialmente na possibilidade concedida a cada uma das partes de “deduzir as suas razões (de facto e de direito)”, de “oferecer as suas provas”, de “controlar as provas do adversário” e de “discretear sobre o valor e resultados de umas e outras” (entre muitos outros, o acórdão n.º 1193/96).
Importa reter, no entanto, que o legislador dispõe de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, cabendo-lhe designadamente ponderar os diversos direitos e interesses constitucionalmente relevantes, incluindo o próprio interesse de ambas as partes; em qualquer caso, à luz do princípio do processo equitativo, os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproprocionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva (LOPES DO REGO, Os princípios constitucionais da proibição da indefesa, da proporcionalidade dos ónus e cominações e o regime da citação em processo civil, in «Estudos em homenagem ao Conselheiro José Manuel Cardoso da Costa», Coimbra, 2003, pág. 839, e ainda os acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 122/02 e 403/02).
No caso vertente – recorde-se -, houve lugar a uma correção oficiosa do valor da transmissão de bem imóvel nos termos previstos no artigo 58º-A do CIRC por ter sido detetado que o valor constante do contrato era inferior ao valor tributário do imóvel. A lei permite nessa circunstância que o interessado faça prova, através do procedimento especial previsto no artigo 129º do CIRC, do preço efetivamente praticado, mas com a sujeição, como requisito prévio, à junção de autorização para consulta de dados bancários da requerente e dos seus administradores ou gerentes.
O procedimento é, por isso, desencadeado por iniciativa e no interesse do sujeito passivo do imposto e destina-se a ilidir a presunção – de que parte a norma do artigo 58º-A – de que o preço da venda não foi inferior ao valor tributário do prédio.
Sendo essa a finalidade do procedimento tributário, seria inteiramente inconsequente que a prova do contrário fosse efetuada, por simples iniciativa do interessado, e – como preconiza a recorrente -, através dos próprios documentos que titulam o contrato, dos meios de pagamento utilizados e dos elementos de contabilidade, quando o documento contratual é o mesmo que evidenciou a existência de uma possível simulação do preço e justificou a correção do valor da transmissão, e os outros meios de prova, em caso de ter havido a intenção de praticar fraude fiscal, deverão revelar uma aparente conformidade com o que consta do contrato.
Para além disso, o consentimento do interessado para permitir à Administração Fiscal confrontar esses elementos probatórios com outros dados cobertos pelo sigilo bancário é uma medida que se mostra consentânea com o dever de cooperação que incumbe ao contribuinte, tanto mais que o procedimento foi instaurado, no seu interesse, para repor a verdade material. A derrogação do sigilo bancário constitui, por outro lado, um meio adequado para a prossecução dos fins visados pela lei, tendo em conta que se trata de uma diligência dirigida à descoberta da verdade fiscal; é um meio necessário já que a demonstração da não veracidade do facto dificilmente poderia ser alcançada através de outros elementos probatórios que o interessado estivesse na disposição de divulgar; e não é um meio desproporcionado ou excessivo se se considerar que a quebra de privacidade é inerente ao exercício do direito e ajusta-se aos objetivos do procedimento tributário utilizado (cfr. artigo 350º, n.º 2, do Código Civil).
Não se afigura, por conseguinte, que a disposição legal imponha uma restrição ilegítima do direito à reserva da vida privada e do direito ao processo equitativo em violação do disposto no artigo 18º, n.º 2, da Constituição.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma do n.º 6 do artigo 129º do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas, na redação anterior ao Decreto-Lei n.º 159/2009, de 13 de julho, na parte em que exige a autorização à administração fiscal para aceder à informação bancária do requerente e dos seus administradores ou gerentes como requisito da apresentação do pedido de prova do preço efetivo na transmissão de imóveis;
b) negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta.
Lisboa, 14 de fevereiro de 2014. – Carlos Fernandes Cadilha – Maria José Rangel de Mesquita – Catarina Sarmento e Castro – Lino Rodrigues Ribeiro – Maria Lúcia Amaral.
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