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Processo n.º 998/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu na seguinte decisão, ao abrigo do n.º 1 do
artigo 78.º-A da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro:
“1. O recorrente propôs uma acção contra o Estado com vista a ser indemnizado,
nos termos do artigo 225.º do CPP, pelos prejuízos sofridos em virtude de prisão
preventiva a que foi sujeito, no âmbito de um processo em que era arguido e em
que veio a ser condenado, por sentença transitada em julgado, pela prática de um
crime de coacção e quatro crimes de roubo, na pena de um ano e oito meses de
prisão, cuja execução ficou suspensa. Essencialmente, alegou que no decretamento
e manutenção da medida de coacção não se atendeu a que o recorrente tinha 20
anos de idade, beneficiando do regime penal especial dos jovens delinquentes,
nos termos do Decreto-Lei n.º 401/82, de 23 de Setembro.
A acção foi julgada improcedente, no despacho saneador. O autor (ora recorrente)
recorreu, sucessivamente e sempre sem êxito, para o Tribunal da Relação e para o
Supremo Tribunal de Justiça.
2. Do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6/11/2008, que lhe negou
revista, interpôs o recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes
termos:
“A., Recorrente nos presentes autos, notificado do douto acórdão que antecede,
vem, ao abrigo do disposto no artº 75.º-A da Lei do Tribunal Constitucional,
interpor recurso para o Tribunal Constitucional, recurso esse restrito à
seguinte questão:
a) Aquando da imposição de medidas de coacção, nas fases de inquérito e de
instrução, mostra-se desconforme à Constituição da República Portuguesa, por
violação, entre outros, dos artºs. 28º, nº 2, e 32º, nºs. 1 e 2 da mesma,
qualquer entendimento que considere não ter de ser ponderada a aplicação do
regime especial dos jovens delinquentes.
1º - Sendo esta a questão que se pretende ver apreciada em sede de
constitucionalidade, a qual foi enunciada na Conclusão S) no interposto recurso
para o S.T.J. do douto acórdão da Relação de Lisboa, como dos autos consta.
Pelo que requer a v. Exa. se digne considerar interposto o recurso.”
O recurso foi admitido por despacho do Relator do processo no Supremo Tribunal
de Justiça, despacho esse que não vincula este Tribunal (artigo76.º, n.º 3, da
CRP).
3. O despacho que admitiu o recurso, prescindindo de convidar o recorrente a
suprir a deficiência do requerimento de admissão, considerou-o interposto ao
abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Efectivamente, dos “casos de
abertura” de recurso previstos no n.º 1 do artigo 70.º da LTC, esta é a única
hipótese razoável face à realidade do processo e ao efeito que o recorrente
pretende obter.
Como todos os recursos de decisões dos demais tribunais para o Tribunal
Constitucional, este recurso só pode ter por finalidade a verificação da
conformidade à Constituição de normas e não das decisões judiciais em si mesmo
consideradas. E constitui seu pressuposto específico que a questão de
constitucionalidade tenha sido suscitada durante o processo, de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em
termos de este estar obrigado a dela conhecer (artigos 70.º, n.º 1, alínea b) e
72.º, n.º 2, da LTC).
Deste modo, o interessado em posterior recurso de fiscalização concreta tem o
ónus de colocar a questão de constitucionalidade perante o tribunal que profere
a decisão recorrível para o Tribunal Constitucional, identificando a norma que
entende violar (positivamente) a Constituição e desenvolvendo um mínimo de
argumentação que justifique a pretensão de ver recusada a sua aplicação na
decisão do caso concreto. Não basta que censure a decisão em si mesma, o sistema
no seu conjunto ou omissões legislativas. E tem de fazê-lo no tempo e modo
processualmente adequados, por forma a que o tribunal da causa saiba que tem uma
questão dessa natureza para decidir, i. e., que é chamado a fazer uso do poder a
que se refere o art.º 204.º da Constituição, sob pena de incorrer em nulidade se
não ponderar essa pretensão. O que implica três essenciais coisas: (i) a
indicação precisa de uma norma (ainda que em determinada interpretação, numa
dimensão ideal ou num segmento determinado), por referência a uma fonte de
direito ordinário, ou seja, a indicação de um preceito ou de um bloco legal
perfeitamente identificado; (ii) a indicação de um parâmetro constitucional (uma
regra ou um princípio constitucional); (iii) um mínimo de argumentação destinada
a convencer de que essa norma viola o parâmetro constitucional indicado.
4. Ora, nas alegações de recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, o
recorrente não identificou qualquer norma que, em seu entender, viole as regras
ou princípios constitucionais que indica. Em matéria de constitucionalidade,
limitou-se a alegar o que consta da conclusão “S”, a saber:
“Qualquer entendimento que considere não ter de ser ponderada a aplicação do
regime especial dos jovens delinquentes quanto à imposição das medidas de
coacção nas fases de inquérito e instrução do processo é desconforme à
Constituição da República Portuguesa, por violação, entre outros, dos Artº 28.º,
n.º 2 e 32.º, n.ºs 1 e 2 deste diploma fundamental.”
Esta alegação não satisfaz as exigências que se apontaram.
Desde logo, o recorrente não identifica qual a norma inconstitucional que
tivesse sido aplicada – aqui a “aplicação” seria de segundo grau, traduzida na
apreciação pelo juiz cível dos termos da sua utilização primária (ou na sua não
ponderação) na validação da detenção ou na imposição da prisão preventiva pelo
juiz penal – pelas instâncias para lhe negar a pretensão indemnizatória. O que
disse ser contrário aos artigos 28.º, n.º 2 e 32.º, n.ºs 1 e 2 foi “qualquer
entendimento que considere não ter de ser ponderada a aplicação do regime
especial dos jovens delinquentes”. E, pelo contexto desta alegação, não é
possível determinar a norma (ou complexo normativo), que assim entendida,
infringe as referidas disposições da Constituição. Serão as normas do Código de
Processo Penal relativas à detenção? As que disciplinam a aplicação de medidas
de coacção? Uma norma do Decreto-Lei 401/02, de 23/9? Em qualquer destes
conjuntos, qual norma precisamente infringe os referidos parâmetros? Não será,
diversamente, que pretende censurar o sistema por ausência de regulação especial
da sujeição de jovens delinquentes a medidas de coacção?
Perante esta vaguidade, para dar qualquer sentido útil à alegação, só pode
entender-se que o recorrente imputava a violação das normas constitucionais que
referiu, directamente, à decisão das instâncias por não ponderarem a sua
condição de jovem delinquente no momento da imposição da medida de coacção. Foi,
aliás, com esse sentido que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça a tratou
(ponto XIII do acórdão), confrontando directamente a situação e não qualquer
norma com os imperativos constitucionais. Mas essa operação não constitui
objecto possível de recurso de fiscalização concreta, pelo que também não serve
como modo de colocação da questão de constitucionalidade que abra a via de
recurso.
Acresce, mesmo que fosse possível determinar uma norma como objecto da censura
de inconstitucionalidade (não uma omissão legislativa ou uma decisão judicial em
si mesmo considerada), que o recorrente não desenvolveu qualquer argumentação
tendente a demonstrar a desconformidade dessa eventual regra de decisão relativa
à aplicação de medidas de coacção a jovens delinquentes com os parâmetros
constitucionais invocados.
5. A mesma falta de identificação da norma alegadamente inconstitucional se
verifica no requerimento de interposição do recurso. Esta deficiência seria
sanável mediante convite, nos termos do artigo 75.º-A da LTC. Mas o convite
seria inútil, porque a situação é irremediável, perante a falta do pressuposto
processual que o presente recurso exige e se julgou não verificado.
6. Decisão
Pelo exposto, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso e condenar
o recorrente nas custas, com 7 (sete) UCs de taxa de justiça, sem prejuízo do
regime de apoio judiciário.”
2. O recorrente reclama nos seguintes termos:
“1) O direito tanto tutela a acção como a omissão.
2) Tanto é susceptível de violar a Constituição da República Portuguesa a
interpretação e aplicação de uma norma de direito ordinário contrária às regras
e princípios constitucionais,
3) como a interpretação e não aplicação de uma norma ou de um bloco legal
perfeitamente identificado.
4) E a própria decisão sumária que determina “Deste modo, o interessado em
posterior recurso de fiscalização concreta tem o ónus de (...). O que implica
três essenciais coisas: (i) a indicação precisa de uma norma (ainda que em
determinada interpretação, numa dimensão ideal ou num segmento determinado), por
referência a uma fonte de direito ordinário, ou seja, a indicação de um preceito
ou de um bloco perfeitamente identificado; (ii) a indicação de um parâmetro
constitucional (uma regra ou um princípio constitucional); (ii,) um mínimo de
argumentação destinada a convencer de que essa norma viola o parâmetro
constitucional indicado (sublinhado nosso)”.
5) Se não pode existir qualquer dúvida sobre o preenchimento dos dois primeiros
pressupostos processuais” (...),
6) é, com surpresa, face a esta douta fundamentação, que a decisão sumária
conclui pelo não conhecimento do objecto do recurso.
7) Certamente, tendo em conta, aquele último pressuposto.
8) Tal como a aplicação errada de uma norma, por um decisor das instâncias, em
vez de uma outra subsumível ao caso, é sindicável em sede de juízo de
constitucionalidade,
9) também a omissão da aplicação de uma norma - diga-se agora que é o artº 9 do
Código Penal - ou de um regime legal por ela exigido, que é regime penal
especial para jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos,
estabelecido no Dec. Lei nº 401/82, de 23/09,
10) corresponde, indubitavelmente, ao terceiro pressuposto processual.
11) Com o devido respeito, parece também não fazer sentido, pelos princípios da
economia e celeridade processuais, e até pela proibição de prática de actos
inúteis no processo,
12) que o Recorrente tivesse de indicar, um a um, os artigos aplicáveis daquele
Dec. Lei.
13) Como não iria mencionar, por exemplo, todos as disposições legais do Código
Penal, se um juiz das instâncias não aplicasse este diploma legal para condenar
um autor de homicídio e considerasse aplicável o Código Civil.
14) Em qualquer caso, salvo melhor opinião, sempre deveria ser feito o convite
ao aperfeiçoamento, previsto no artº 75º-A da Lei do Tribunal Constitucional,
porque nem a situação é irremediável nem se verifica a falta de qualquer
pressuposto processual, como ficou bem patente.”
3. O Ministério Público respondeu que “a argumentação do reclamante
em nada abala os fundamentos da decisão reclamada, no que toca à evidente
inverificação dos pressupostos do recurso”.
4. A reclamação é manifestamente improcedente.
Como na decisão reclamada se afirma (n.º 4 da “decisão sumária”), o recorrente
não suscitou de modo processualmente adequado, perante o Supremo Tribunal de
Justiça, designadamente na alínea “S” das conclusões das alegações (lugar onde a
diz enunciada), uma questão de constitucionalidade normativa.
Aliás, contrariamente ao que constitui ponto de partida da argumentação do
reclamante (cf. n.ºs 8 e 9 da reclamação), nem a aplicação errada de uma norma
pelos tribunais da causa, em vez de outra a que o caso fosse subsumível, nem a
omissão de aplicação de uma norma ou de um regime legal que devesse ser aplicado
são passíveis de censura pelo Tribunal Constitucional. Ainda que a qualquer
destes desvios se debite a violação de normas ou princípios constitucionais,
será sempre a decisão que a terá cometido. Ora, nem a decisão judicial em si
mesma, nem o sistema no seu conjunto nem as omissões legislativas constituem
objecto idóneo de recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, tal
como a Constituição (artigo 280.º da CRP) e a Lei (artigo 70.º da LTC) o
configuram.
E também é certo que, adquirida a certeza de que o recurso nunca
poderia prosseguir por falta de um pressuposto, seria inútil convidar o
recorrente a completar o requerimento de interposição.
5. Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a reclamação e condenar o recorrente nas
custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs, sem prejuízo do benefício
de apoio judiciário.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2009
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
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