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Processo n.º 933/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por acórdão do Juízo de Instância Criminal de Oliveira do Bairro da Comarca do Baixo Vouga, de 29 de novembro de 2012, foram os arguidos A. e B. condenados, respetivamente, nas penas de dois anos e seis meses e de dois anos de prisão efetiva, pela prática, em coautoria, de um crime de roubo, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal; foi ainda o arguido B. absolvido da prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, de que estava acusado.
Inconformados, os arguidos e o Ministério Público recorreram para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 15 de maio de 2013, concedeu parcial provimento aos recursos, condenando o arguido B. na pena de seis meses de prisão, pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, e na pena de 14 meses de prisão, pela prática de uma crime de roubo, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 14 meses de prisão, suspensa por igual período, com sujeição a regime de prova, condenando ainda o arguido A. na pena de 18 meses de prisão, pela prática de um crime de roubo.
O arguido A. recorreu desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15/11, nos seguintes termos:
«…
1- No âmbito do recurso para a Relação de Coimbra no processo em cima referido, o arguido invocou a inconstitucionalidade do art. 133 nº 2 do CPP, por violação do Princípio nemo tenetur se ipsum acusare, princípio este inserido no direito à plenitude de defesa (Art. 32 nº 1 da CRP), quando interpretado no sentido de que uma testemunha que seja menor criminalmente à data dos factos, não está abrangida por tal principio (Cfr. Conclusão nº 29 do recurso)
2- Mais se referiu que tal interpretação resultou de despacho proferido pelo tribunal de primeira instância, que indeferiu o requerimento do arguido, que pretendia que para que tal testemunha fosse inquirida, teria de previamente consentir na sua inquirição, nos termos do art. 133 nº 2 CPP, de forma a salvaguardar o princípio da não auto incriminação.
3- Deste modo, o arguido em sede de recurso - tendo arguido tempestivamente a irregularidade de tal inquirição em primeira instância - (Cfr. Conclusão nº 20 do recurso, e ata de julgamento de 28-11-2011, de onde consta todo o teor do requerimento da defesa) disse que tal testemunha teria obrigatoriamente de ser advertida nos termos do art. 133 nº 2 do CPP e art. 32 nº 1 da CRP, de forma a
4- Cumprir tal princípio que se integra nos direitos de defesa do arguido. Só com tal advertência, no sentido de consentir ou não a sua inquirição, é que a mesma poderia ser ouvida (Cfr. Conclusão nº 28 do recurso).
5- Acontece que tal pretensão não foi aceite pelo tribunal da relação, já que este decidiu que aquela testemunha (participante dos factos criminosos) não estava sujeita ao Princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
6- O arguido tem legitimidade para recorrer e está em prazo para o fazer.
7- De momento estão esgotados todos os outros recursos ordinários que o arguido poderia interpor.
8- Nestes termos, pretende-se que o Tribunal constitucional, aprecie a constitucionalidade do art. 133 nº 2 do CPP, quando interpretado no sentido que o princípio nemo tenetur se ipsum acusare, que tal artigo visa salvaguardar, não se aplica a testemunha menor criminalmente à data dos factos, mas que se demonstrou que participou nos mesmos, violando-se dessa forma tal princípio e por conseguinte o art. 32 nº 1 da CRP, já que o mesmo se integra no direito à Plenitude da defesa.
9- Os requisitos de admissão deste recurso estão cumpridos, daí que deverá, após o recebimento do recurso por parte do Tribunal Constitucional, ser notificado o arguido para apresentar as suas alegações.»
O arguido apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1.- A defesa em sede de Julgamento no dia 28-11-2011 e antes da inquirição da testemunha C., através de requerimento para a ata requereu nomeadamente que, “nos termos do art. 133 nº 2 do CPP, para a testemunha ser ouvida tinha de expressamente consentir na sua inquirição…” Mais referiu e arguiu desde logo a irregularidade de tal depoimento, caso o tribunal não questione tal testemunha, no sentido de consentir ou não a sua inquirição (Cfr. Ata de julgamento de dia 28-11-2011, de onde consta todo o teor do requerimento da defesa)
2.- Acontece que perante esta fundamentação e arguição desde logo da irregularidade do depoimento caso não se cumprisse o disposto no art. 133 nº 2 do CPP, o Tribunal indeferiu o requerido dizendo, nomeadamente que não se encontravam preenchidos os requisitos do art. 133 nº 2 do CPP, que não se aplicava tal princípio de autoincriminação à testemunha em questão, pois que no processo tutelar educativo, visava-se a proteção de interesses distintos (Cfr. Totalidade da fundamentação do despacho na ata de julgamento de dia 28-11-2011, ou a fundamentação integral de tal despacho que se indicou na motivação do recurso)
3.- Ora, a argumentação tecida em tal despacho não colhe, porque efetivamente a testemunha C. foi arguido no processo e houve efetivamente uma separação de processos. Basta consultar atentamente o processo, para verificar que em 14-04-2009, apenas figuravam como arguidos o Sr. B. e o Sr. C. (Cfr. 1º volume do processo).
4.- Em segundo lugar, houve uma efetiva separação processual nos termos do art. 26 do CPP, pois o arguido/testemunha C. tinha participado em tais factos, só que não podia ser julgado criminalmente em virtude da idade e por este facto, foi arquivado o inquérito criminal e extraída certidão para o mesmo ser julgado em processo Tutelar Educativo.
5- Verificam-se todos os requisitos do art. 133 nº 2 do CPP, pois foi tal testemunha arguida no processo, houve separação processual e também se verifica o último requisito previsto em tal artigo. A parte final do artigo diz “mesmo já tendo sido condenados por sentença transitada em julgado. Efetivamente, já tinha sido julgada, e absolvida, daí que ainda mais força o estatuído em tal artigo, pois ao ser absolvido em tal processo tutelar educativo, conexo com o presente processo, as declarações da mesma poderão originar a sua responsabilidade a nível tutelar educativo com a reabertura de tal processo tutelar pelo Ministério Público.
6- O entendimento vertido em tal despacho pelo tribunal, viola o princípio nemo tenetur se ipsum accusare, princípio este que está inserido no direito à plenitude da defesa, já que a disposição constitucional prevista no art. 32 nº 1 é fonte autónoma de garantias de defesa, pois não resultavam dúvidas que devido à conexão processual existente e ao facto de tal testemunha ter passado a ser arguida no processo tutelar, haveria sempre com a sua inquirição a possibilidade de autoincriminação. (Vide neste sentido, Sobre o silêncio do arguido no interrogatório no processo penal português, ADRIANA DIAS PAES RISTORI, Almedina, pág. 178).
7- A ilustre Autora em cima referida diz-nos o seguinte: “O Princípio nemo tenetur se ipsum acusare significa que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo ou praticar atos lesivos à sua própria defesa. O Silêncio, ausência de qualquer manifestação perante o interlocutor, é uma das decorrências do princípio no interrogatório”. Sendo que a mesma conclui: “Da aplicação do direito ao silêncio, conclui-se que são titulares do direito ao silêncio o arguido, o suspeito, a pessoa coletiva, para além das testemunhas, da vítima e do menor de dezasseis anos e abrange todos os interrogatórios formais e também as declarações colhidas informalmente, sempre que houver possibilidade de auto incriminação (Vide neste sentido, ADRIANA DIAS PAES RISTORI, obra referida, pág. 178 e 179).
8- E a possibilidade de auto incriminação acaba por se consumar, com o facto do tribunal na sentença ter dado como provado sob o nº 12, a intervenção da testemunha nos factos criminosos, ao referir-se o seguinte: os arguidos atuaram de forma concertada e em conjugação de esforços com D. e C., com o propósito de fazer seus os bens pertencentes ao ofendido E....”.
9- Deste modo teria obrigatoriamente de ser advertida nos termos do art. 133 nº 2 do CPP e nos termos do art. 32 nº 1 da CRP, de forma a cumprir tal princípio que se integra nos direitos de defesa do arguido. Só com tal advertência, no sentido de consentir ou não a sua inquirição é que a mesma poderia ser ouvida.
10- Ao não fazê-lo, foi violado com tal despacho o art. 133 nº 2 do CPP (irregularidade arguida de forma tempestiva) e foi violada a constituição no seu art. 32 nº 1, pois na ótica da defesa é inconstitucional a interpretação do art. 133 nº 2 do CPP, vertida em tal despacho, ao entender que uma testemunha que à data dos factos era menor criminalmente não está abrangida com a protecão de tal principio.
11- Uma vez que a inquirição da testemunha C. e a prova resultante de tal inquirição foi produzida em violação do princípio nemo tenetur se ipsum acusare, trata-se de prova proibida em consonância com o art. 126. ns 1, 122 nº 1 do CPP e art. 32 nº 8 e 34 nº 4 da CRP (Vide neste sentido, ADRIANA DIAS PAES RISTORI, OBRA REFERIDA, PÁG. 180). Daí que se requeira a declaração de invalidade absoluta da prova testemunhal de tal testemunha por violação do princípio nemo tenetur se ipsum acusare.
12- Desse modo sendo a prova testemunhal do Sr. C. proibida, devido ao modo como foi produzida, isso conduz à nulidade absoluta da sentença condenatória, de acordo com “o efeito à distância ou teoria dos frutos da árvore envenenada” (Cfr. ADRIANA DIAS PAES RISTORIA, OBRA REFERIDA, PAG. 180).
13- No entanto, tratando-se de prova proibida as declarações da testemunha referida, e mesmo que tal prova proibida não conduza à nulidade absoluta da sentença, conduzirá sempre, salvo melhor opinião, à absolvição do arguido, pois foi em exclusivo com essas declarações que o tribunal condenou o mesmo.
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, requer-se a declaração de inconstitucionalidade do entendimento vertido em tal despacho, ou seja, que se determine a inconstitucionalidade material do art. 133 nº 2 do CPP, quando interpretado no sentido de que o principio nemo tenetur se ipsum acusare – que tal artigo visa salvaguardar – não se aplica a testemunha menor criminalmente à data dos factos – e que se provou que participou nos mesmos – por violação de tal princípio e por conseguinte do art. 32 nº 1 CRP, princípio esse integrado no direito à Plenitude de defesa. Mais se requer, que na sequência da declaração de inconstitucionalidade, se declare a prova testemunhal referida, como prova proibida, e se determinem as devidas consequências legais, nomeadamente, a impossibilidade de valoração da mesma, com consequente sentença absolutória por tarde do tribunal a quo.»
O Ministério Público apresentou contra-alegações, tendo concluído da seguinte forma:
«[…]
16º Vejamos, então, a solução a dar ao recurso de constitucionalidade em apreciação, relativo à interpretação feita pelo arguido no que respeita ao art. 133º, nº 2, do Código de Processo Penal e ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
Sendo certo que, no entender do signatário, a argumentação do recorrente não merece ser acolhida por este Tribunal Constitucional, quer por não se adequar aos preceitos constitucionais e legais aplicáveis, quer por desrespeitar a jurisprudência deste Tribunal Constitucional.
17º Relembremos, por comodidade de exposição, os principais elementos a atender na escolha da solução para os presentes autos, para além, naturalmente, das conclusões a retirar da jurisprudência constitucional acabada de referir.
C. foi, inicialmente, constituído arguido, pelo órgão de polícia criminal autuante (GNR), nos presentes autos, por ter sido detido em flagrante delito, mas, atendendo ao facto de ser menor, a constituição como arguido não foi validada pelo Ministério Público que, determinou, por isso, em relação a ele, a abertura de um processo tutelar educativo (cfr. supra nºs 3 e 4 das presentes contra-alegações).
Nessa medida, é como se a qualidade de arguido de C. nunca tivesse existido, como expressamente referido pelo tribunal de 1ª instância (cfr. supra nº 5 das presentes contra-alegações) e pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ora recorrido (cfr. supra nº 6 das presentes contra-alegações).
18º Por outro lado, não há aqui lugar à existência de dois processos criminais, mas apenas de um (os presentes autos) e de um processo de outra natureza (processo tutelar educativo), que não é, nem pode ser confundido com um processo de natureza criminal.
A finalidade de um processo tutelar educativo não é punitiva, mas visa «a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade» (cfr. art. 2º, nº 1 da Lei Tutelar Educativa, aprovada pela Lei 166/99, de 14 de setembro).
Os interesses prosseguidos no processo tutelar são, pois, muito diferentes daqueles subjacentes a um processo criminal, como igualmente sublinhado pelo tribunal de 1ª instância (cfr. supra nº 5 das presentes contra-alegações) e pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ora recorrido (cfr. supra nº 7 das presentes contra-alegações).
Formalmente não existe, pois, separação de processos criminais, como previsto no art. 133º, nº 2 do Código de Processo Penal.
19º Por outro lado, ao contrário da esforçada argumentação do recorrente, ao longo dos presentes autos, o depoimento de C. nunca poderá acarretar, para ele, qualquer possibilidade de responsabilização criminal pela prática dos factos averiguados nos presentes autos, uma vez que o mesmo era, à data da respetiva prática, penalmente inimputável, como devidamente salientado pelo Ministério Público, pelo tribunal de 1ª instância e pelo Tribunal da Relação de Coimbra (cfr. supra nºs 3, 4, 5, 6 e 7 das presentes contra-alegações).
Nessa medida, não havendo qualquer possibilidade de autoincriminação quanto ao depoimento de C., não há nenhuma razão para considerar invalidamente prestado ou proibido o respetivo depoimento.
20º Finalmente, a liberdade de prestação de declarações, por parte de um arguido, tem de ser vista de uma dupla perspetiva.
Por um lado, representa um direito irrestrito de intervenção e declaração, por parte do arguido, em abono da sua defesa.
Por outro, encerra igualmente uma vertente negativa – traduzida no princípio nemo tenetur se ipsum accusare –, que assume particular relevância em matéria de produção de prova, não podendo o arguido ser fraudulentamente induzido ou coagido a contribuir para a sua incriminação.
21º O conteúdo material do princípio nemo tenetur é, desde logo, assegurado através da imposição, às autoridades judiciárias e aos órgãos de polícia criminal, de deveres de esclarecimento ou de advertência ao arguido sobre os seus direitos, estabelecendo-se, por outro lado, a sanção de proibição de valoração e da nulidade das provas obtidas mediante tortura, coação ou ofensa da integridade, física ou moral do arguido.
22º Por outro lado, a justificação do impedimento de o coarguido depor como testemunha tem, como fundamento essencial, uma ideia de proteção do próprio arguido, como decorrência da vertente negativa da liberdade de declaração e depoimento, em obediência ao princípio nemo tenetur se ipsum accusare, o também chamado privilégio contra a autoincriminação.
23º O alargamento do impedimento – alargamento do direito do arguido ao silêncio – aos restantes coarguidos, decorre da mesma garantia contra a autoincriminação, enquanto expressão do direito de defesa, entendida como a exigência de assegurar ao coarguido o direito a defender-se, sem que, através do testemunho sobre facto de outro, ele comprometa a sua própria posição processual, autoincriminandosse.
24º Assim, a consagração deste impedimento representa uma renúncia do Estado à «colaboração forçada», na investigação de factos criminosos, por parte de quem é alvo dessa mesma investigação, ou seja, o(s) arguido(s);
25º O modelo do testemunho consentido, previsto no artigo 133º, nº 2 do CPP, pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do coarguido a um processo em que ele não se encontra a responder, sem eliminar, porém, a garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime ao constrangimento característico da prova testemunhal.
Cabe, no entanto, ao coarguido a decisão expressa sobre o exercício concreto do direito de depor como testemunha.
26º A norma, que estabelece o impedimento previsto no art. 133º do CPP visa, exclusivamente, a proteção dos direitos do coarguido, enquanto tal, no processo pertinente, em ordem a garantir o seu direito de se não autoincriminar.
Com efeito, o impedimento cessa no caso de separação de processos, relativamente aos arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo, mesmo que já condenados por sentença transitada um julgado, se os mesmos arguidos expressamente consentirem em depor como testemunhas.
Por outras palavras, o impedimento cessa no caso de o coarguido deixar de o ser no processo separado, por qualquer forma por que o procedimento criminal se pode extinguir.
Nessa medida, o consentimento expresso do arguido revela-se suficiente para assegurar a legalidade deste meio de prova.
27º Ou seja, o arguido, no processo onde o depoimento é prestado, nada pode opor, verificado o consentimento expresso do depoente, à inquirição do coarguido como testemunha.
Assim, a eventual ofensa do disposto no art. 133º, nº 2 do CPP, por o coarguido não ter expressado o seu consentimento, não pode implicar violação das garantias de defesa, constitucionalmente asseguradas, do arguido que está a ser julgado no processo onde o depoimento é prestado.
Se tal violação ocorrer, ela só poderá operar relativamente ao coarguido depoente no processo separado, se, e na medida, em que o depoimento funcione como prova da sua autoincriminação.
O que não é, como se viu, o caso dos autos.
28º Por outras palavras, o recorrente, nos presentes autos, não poderá prevalecer-se do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, mas sim, eventualmente, a testemunha C., uma vez que só em relação a ele a invocação de tal princípio poderia fazer algum sentido.
Muito embora, como se viu, faltem outros pressupostos para a referida invocação, designadamente o facto de não estarmos perante a separação de processos criminais, mas de um processo criminal e de um processo tutelar educativo.
Só pode, pois, concluir-se que o depoimento da testemunha C. é inteiramente válido, como sucessivamente confirmado pelas instâncias, quer a 1ª instância, quer o Tribunal recorrido, o Tribunal da Relação de Coimbra.
29º Nestes termos, entende o Ministério Público que deverá negar-se provimento ao presente recurso, confirmando-se, assim, o Acórdão recorrido, do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15 de maio de 2013.»
Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O Recorrente foi sujeito a julgamento nos presentes autos, sendo-lhe imputado a prática de um crime de roubo.
Na audiência de julgamento depôs como testemunha C., o qual havia sido inicialmente arguido no mesmo processo, tendo o inquérito sido arquivado quanto a ele, por se ter constado que o mesmo era menor de 16 anos à data da prática dos factos, pelo que foi extraída certidão para procedimento tutelar educativo.
Aquando do depoimento de C. na audiência de julgamento do Recorrente, este requereu que, “nos termos do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, para a testemunha ser ouvida, tinha de expressamente consentir na sua inquirição…”. E arguiu desde logo a irregularidade de tal depoimento, caso o tribunal não questionasse a testemunha, no sentido de consentir ou não a sua inquirição.
O Tribunal indeferiu o requerido com fundamento em que não se encontravam preenchidos os requisitos do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não se aplicando este preceito à testemunha em questão, uma vez que ele não era arguido em processo penal separado.
O Recorrente veio a interpor recurso da sentença condenatória em que invocou a nulidade do depoimento daquela testemunha, tendo o Tribunal da Relação de Coimbra julgado improcedente o recurso interposto pelo arguido nessa parte, com fundamento em que a exigência de consentimento para prestar depoimento, prevista no artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não é aplicável a menor de 16 anos, à data dos factos, em relação ao qual foi instaurado um processo tutelar educativo com fundamento na sua participação no crime imputado ao arguido no processo criminal. Este critério foi formulado de forma ampla, não se preocupando o Tribunal recorrido com o estado em que se encontrava esse processo quando o menor depôs como testemunha. Para o tribunal recorrido foi indiferente se o processo tutelar ainda se encontrava pendente ou se já tinha terminado e, nesta hipótese, qual tinha sido o seu desfecho. Nos termos do critério adotado, independentemente da situação do processo tutelar, ou do seu desfecho, na hipótese dele já estar extinto, o disposto no artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nunca se aplicaria quando a testemunha é um menor, à data da prática dos factos, a quem foi instaurado um processo tutelar educativo com fundamento na sua participação no crime imputado ao arguido no processo penal.
Apesar de ter sido este o entendimento amplo da decisão recorrida que foi objeto do pedido de fiscalização de constitucionalidade, nas alegações de recurso apresentadas neste Tribunal, o Recorrente invocou que, quando o menor depôs na audiência de julgamento, o processo tutelar já havia terminado com a sua “absolvição”, ou seja o seu arquivamento, pelo que, implicitamente, reduziu a amplitude do critério normativo impugnado às situações em que o processo tutelar educativo já se encontra arquivado quando o menor depõe como testemunha no processo penal.
Se não é possível uma ampliação do objeto do recurso constitucional nas alegações, já é admissível a sua redução, pelo que o presente recurso deve ter como objeto a constitucionalidade da norma constante do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não exigir consentimento para o depoimento em processo penal, como testemunha, de menor de 16 anos, à data dos factos, a quem tenha sido instaurado processo tutelar educativo pela prática dos factos criminalmente imputados ao arguido, tendo esse processo já terminado com o seu arquivamento.
2. Do mérito do recurso
Segundo o Recorrente, a interpretação normativa acima enunciada como objeto do presente recurso é inconstitucional por violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare e, por conseguinte, do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Como se referiu recentemente no Acórdão n.º 340/13, desta secção, “o direito ao silêncio tem vindo a ser reconhecido pela legislação processual penal da maioria dos ordenamentos jurídicos dos Estados de Direito modernos, encontrando também consagração expressa em instrumentos jurídicos internacionais (cfr. art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, da ONU).
Intimamente ligado ao direito ao silêncio está o direito do arguido à não autoincriminação, entendido como o direito de não contribuir para a sua própria incriminação, conhecido pelo brocardo latino nemo tenetur se ipsum accusare. É facilmente explicável a relação deste direito com o direito ao silêncio, uma vez que, não sendo reconhecido ao arguido o direito a manter-se em silêncio, este seria obrigado a pronunciar-se e a revelar informações que poderiam contribuir para a sua condenação.
A Constituição da República Portuguesa não consagra expressis verbis este princípio, mas, não obstante essa não consagração expressa, tanto a doutrina como a jurisprudência têm defendido que o nemo tenetur se ipsum accusare tem assento constitucional, sendo considerado um direito constitucional do processo penal não escrito (cfr., neste sentido, Manuel da Costa Andrade, em “Sobre as proibições de prova em processo penal”, pág. 120 e seg., Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, em “Poderes de supervisão, direito ao silêncio e provas proibidas (Parecer)”, in Supervisão, Direito ao Silêncio e Legalidade da Prova, Almedina, 2009, págs. 38-39 e Augusto Silva Dias e Vânia Costa Ramos, “O direito à não autoinculpação (nemo tenetur se ipsum accusare) no processo penal e contraordenacional português”, Coimbra Editora, 2009, págs. 14-15, e os Acórdão do Tribunal Constitucional n.ºs 695/95, 304/2004, 181/2005, 155/2007 e 461/11, acessíveis na Internet em www.tribunalconstitucional.pt).
Os direitos ao silêncio e à não autoincriminação devem considerar-se incluídos nas garantias de defesa que o processo penal deve assegurar (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), não deixando estes direitos processuais de proteger mediata ou reflexamente a dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais com ela conexos, como sejam os direitos à integridade pessoal, ao livre desenvolvimento da personalidade e à privacidade, não se revelando necessário, para sustentar o acolhimento constitucional, o recurso a parâmetros mais genéricos ou distantes como o direito ao processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) ou à presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da Constituição).
O princípio nemo tenetur se ipsum accusare, é uma marca irrenunciável do processo penal de estrutura acusatória, visando garantir que o arguido não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual de repressão do crime, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa e tratado como presumivelmente inocente. Daí que para proteção da autodeterminação do arguido, este deva ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto do processo.
Este princípio, além de abranger o direito ao silêncio propriamente dito, desdobra-se em diversos corolários, designadamente nas situações em que estejam em causa a prestação de informações ou a entrega de documentos autoincriminatórios, no âmbito de um processo penal.
Tal princípio intervém no processo penal sob duas formas distintas: preventivamente, impedindo soluções que façam recair sobre o arguido a obrigatoriedade de fornecer meios de prova que possam contribuir para a sua condenação e repressivamente, obrigando à desconsideração de meios de prova recolhidos com aproveitamento duma colaboração imposta ao arguido.
Mas tem sido também reconhecido que o direito à não autoincriminação não têm um caráter absoluto, podendo ser legalmente restringido em determinadas circunstâncias (v.g. a obrigatoriedade de realização de determinados exames ou diligências que exijam a colaboração do arguido, mesmo contra a sua vontade).”
No plano infraconstitucional, encontra-se expressamente consagrado o princípio nemo tenetur, na vertente do direito ao silêncio, no artigo 61.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal, o qual é acompanhado, por forma a garantir-lhe efetividade prática, da adoção de outras exigências associadas àquele princípio: proibição de valoração do silêncio contra o arguido (artigos 343.º, n.º 1 e 345.º, n.º 1, do Código de Processo Penal); dever de esclarecimento ou advertência sobre os direitos decorrentes daquele princípio (artigos 58.º, n.º 2, 61.º, n.º 1, al. h), 141.º, n.º 4, al. a), e 343.º, n.º 1, do Código de Processo Penal); proibição da utilização de provas obtidas com violação daquele direito e proibição de valoração de declarações anteriores do arguido que, em audiência, não preste declarações.
Nesta linha dispõe ainda o artigo 133.º do Código de Processo Penal (na redação introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto), sob a epígrafe, «Impedimentos», o seguinte:
«1 - Estão impedidos de depor como testemunhas:
a) O arguido e os coarguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem aquela qualidade;
…
2 - Em caso de separação de processos, os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo, mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado, só podem depor como testemunhas se nisso expressamente consentirem.»
Neste preceito estende-se o direito ao silêncio ao coarguido, permitindo-se que este se defenda não revelando, através de testemunho sobre facto de outro, qualquer circunstância que possa comprometer a sua posição.
Para a compreensão da razão de ser destas normas importa ter em atenção alguns dos deveres associados ao estatuto processual de testemunha, quando comparados com as prerrogativas inerentes ao estatuto de arguido.
A testemunha tem, desde logo, o dever de “prestar juramento, quando ouvida por autoridade judiciária” (cfr. artigo 132.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal), sendo a recusa em depor sancionada nos termos do artigo 360.º, n.º 2, do Código Penal, e o dever de “responder com verdade às perguntas que lhe forem dirigidas” (cfr. artigo 132.º, n.º 1, al. d), do Código de Processo Penal), incorrendo, no caso de faltar à verdade, na prática de um crime de falsidade de testemunho, previsto no artigo 360.º, n.º 1, do Código Penal. A testemunha pode, no entanto, escusar-se a responder “quando alegar que das respostas resulta a sua responsabilização penal” (cfr. artigo 132.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
O arguido, por outro lado, para além de gozar do direito de “não responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe forem imputados” (cfr. artigo 61.º, n.º 1, al d), do Código de Processo Penal), “não presta juramento em caso algum” (cfr. artigo 140.º, n.º 3, do Código de Processo Penal) e tem “direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência (…) sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo” (cfr. artigo 343.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Assim, tendo em atenção os constrangimentos a que está sujeita a testemunha, que contrastam com os que, neste âmbito, são impostos ao arguido, o legislador estabeleceu, no artigo 133.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, que estão impedidos de depor como testemunhas «o arguido e os coarguidos no mesmo processo ou em processos conexos, enquanto mantiverem essa qualidade».
Com este impedimento afastou-se liminarmente a possibilidade de um arguido, a pretexto de depor sobre factos que respeitam a outro coarguido, ser obrigado a tomar posição sobre factos que lhe são imputados no mesmo processo ou em processos conexos, sujeitos a um mesmo julgamento, revelando-se uma medida eficaz de garantia da possibilidade de, no exercício de uma plena liberdade de vontade, o arguido decidir qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto do processo.
Mas o Código de Processo Penal não teve em consideração apenas uma perspetiva formal do conceito de coarguido. Antes teve presente que aquela proteção não podia ficar na dependência de uma configuração processual mutável e permeável à ação da administração da justiça, pelo que estabeleceu no n.º 2, do mesmo artigo, que, no caso de separação de processos, «os arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo, mesmo que já condenados por sentença transitada em julgado, só podem depor como testemunhas se nisso expressamente consentirem». Ou seja, nos casos em que alguém assuma a dupla qualidade, de testemunha num processo e de arguido “de um mesmo crime ou de crime conexo” em “processo separado”, só poderá depor no primeiro processo como testemunha, com o seu assentimento expresso. Nestes casos, o depoente, para além de beneficiar da proteção concedida, em geral, às testemunhas, de se recusarem a responder a perguntas de cuja resposta possa resultar a sua responsabilização penal (artigo 132.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), goza ainda da proteção concedida aos arguidos de se recusarem a prestar quaisquer declarações, mantendo-se em silêncio.
Nestas situações em que processos, relativos à prática do mesmo crime ou de crimes conexos, são julgados separadamente, o legislador, liberto da incompatibilidade de alguém ter a dupla qualidade de arguido e testemunha no mesmo processo, adotou uma específica medida de conciliação do interesse no máximo aproveitamento possível de todo o material probatório, com vista à descoberta da verdade, com a manutenção da garantia da liberdade de declaração do “arguido” chamado a testemunhar no processo contra outro arguido. Reportando-se a esta solução, Medina de Seiça (em “O conhecimento probatório do arguido”, pág. 122, da ed. de 1999, da Coimbra Editora), refere que «[o] modelo do testemunho consentido plasmado no art. 133.º, n.º 2, pretende satisfazer a exigência de trazer o conhecimento probatório do coarguido a um processo em que não se encontra a responder sem eliminar a primacial garantia do impedimento: a não sujeição dos arguidos do mesmo crime (ou crime conexo) ao constrangimento característico da prova testemunhal».
Em vez do recurso a um impedimento absoluto, foi suficiente a consagração de um impedimento relativo.
Contudo, não deixou de entender-se que, para garantia da observância do direito à não autoincriminação, não era suficiente agir-se repressivamente proibindo a valoração da prova produzida pelo “coarguido”, enquanto testemunha no “processo separado”, sendo antes necessário uma medida preventiva que garantisse ao coarguido a liberdade de, desde logo, este prestar ou não depoimento no processo em que, sendo aí testemunha, eram objeto de prova factos que também o incriminavam.
Na verdade, o simples facto do coarguido ser obrigado a tomar posição sobre factos que o incriminam, constitui um meio compulsório deste fornecer dados que podem vir a ser utilizados contra a sua defesa no processo onde irá ser julgado pela prática desses factos. Daí que a proibição deva incidir desde logo sobre a obrigação do arguido prestar depoimento.
Conforme tem sido afirmado, as exigências impostas pelo artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, no que respeita à admissibilidade do depoimento dos arguidos de um mesmo crime ou de um crime conexo em caso de separação de processos, têm como finalidade a proteção dos direitos e da posição processual do arguido chamado a prestar tal depoimento, tendo em vista garantir o seu direito de se não autoincriminar (vide, neste sentido, os Acórdãos deste Tribunal n.º 304/2004 e 181/2005, acessíveis, em www.tribunalconstitucional.pt, Paulo Dá Mesquita, em “A prova do crime e o que se disse antes do julgamento”, pág. 487, ed. de 2011, da Coimbra Editora, e Medina de Seiça, ob. cit., pág. 33-34; contudo, no sentido de que esta proibição não visa apenas proteger o arguido chamado a depor como testemunha do que, nessa qualidade, possa dizer em prejuízo da sua posição, mas também proteger o arguido do processo conexo, cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2.ª Edição, Universidade Católica Editora, págs. 355-356).
Daí que este impedimento apenas valha, em regra, enquanto o arguido mantiver essa qualidade no processo. Cessando essa qualidade, por extinção do procedimento criminal ou por absolvição, deixa de estar em jogo a aplicação de uma pena ao depoente (vide, neste sentido, Medina de Seiça, ob. cit., pág. 92, e Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pág. 372), pelo que nada impede que o ex-arguido deponha como testemunha, não tendo o direito ao bom nome e à reputação uma valia suficiente para se sobrepor ao interesse do máximo aproveitamento possível de todo o material probatório em processo penal (assim ajuizou o Acórdão n.º 181/2005 deste Tribunal, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
O mesmo não sucede quando a cessação da qualidade de arguido resulte da sua condenação por decisão transitada em julgado. Nestas situações, o legislador, ponderando a possibilidade que o condenado ainda dispõe de pedir a revisão da decisão condenatória, através do recurso extraordinário previsto e regulado nos artigos 449.º e seg. do Código de Processo Penal, entendeu estender-lhe a faculdade de recusar-se a depor em processo penal separado em que esteja em apreciação o mesmo crime ou crime conexo.
Tecidas considerações gerais sobre o princípio nemo tenetur se ipsum accusare e descritas e analisadas as regras constantes do artigo 133.º, n.º 1, a), e 2, do Código de Processo Penal, cumpre agora apreciar se a interpretação deste último número, no sentido de não ser exigível consentimento para o depoimento, como testemunha, de menor de 16 anos (à data dos factos) a quem tenha sido instaurado processo tutelar educativo pela prática dos factos criminalmente imputados ao arguido, tendo esse processo já terminado com o seu arquivamento, viola o referido princípio.
Nesta hipótese o depoente não tem a qualidade de arguido em processo de natureza criminal, uma vez que, sendo menor em razão da idade, à data da prática dos factos, foi-lhe instaurado um processo tutelar educativo, não havendo, em rigor, separação de processos de natureza criminal.
Na verdade, como é realçado pela decisão recorrida, bem como pelo Ministério Público nas suas alegações, o processo tutelar educativo não tem natureza criminal, não se confundindo com este, desde logo por não possuir uma finalidade punitiva.
Essa diferença é, desde logo, evidenciada na exposição de motivos constante da proposta de Lei n.º 266/VII (que veio a dar origem à Lei n.º 166/99, de 14 de setembro, que aprovou a Lei Tutelar Educativa), onde se refere o seguinte:
«[…] sendo finalidade da intervenção tutelar a educação do menor para o direito, e não a retribuição pelo crime, não poderá aplicar-se medida tutelar sem que se conclua, em concreto, pela necessidade de corrigir a personalidade do menor no plano do dever-ser jurídico manifestada na prática do facto.
Esta consideração mostra que a medida tutelar não pretende constituir um sucedâneo do direito penal e que é primacialmente ordenada ao interesse do menor: interesse fundado no seu direito à realização de condições que lhe permitam desenvolver a sua personalidade de forma socialmente responsável».
Por outro lado, estas finalidades estão ainda traduzidas no artigo 2.º, n.º 1, da Lei Tutelar Educativa, onde se estabelece que as medidas tutelares educativas «visam a educação do menor para o direito e a sua inserção, de forma digna e responsável, na vida em comunidade» (sobre o sentido desta norma, cfr. Anabela Miranda Rodrigues e António Carlos Duarte-Fonseca, Comentário da Lei Tutelar Educativa, Coimbra Editora, 2000, págs. 61 e ss.; e Tomé d’Almeida Ramião, Lei Tutelar Educativa anotada e comentada, 2.ª Edição, Quid Juris, 2007, págs. 35 e ss.).
Todavia, não pode esquecer-se que a aplicação de certas medidas tutelares, maxime a de internamento, constitui uma severa restrição de direitos fundamentais, que tem por fundamento a prática de um facto qualificado pela lei penal como crime, o que coloca o menor numa posição que, nesta perspetiva, não deixa de ter semelhanças com a do arguido no processo penal, o que, aliás se reflete, com evidência, no modelo processual adotado pela Lei Tutelar Educativa. Daí que no ponto 11. da exposição de motivos da referida proposta de Lei n.º 266/VII, se tenha assumido o seguinte:
«[…]
Genericamente, pode dizer-se que o processo penal serve de fonte ao processo tutelar por constituir um ordenamento que realiza de forma particularmente ativa as garantias constitucionais da pessoa em face de pretensões de intervenção do Estado na esfera dos direitos fundamentais.
Considerando que a intervenção tutelar pode ocasionar uma limitação de direitos, liberdades e garantias - ainda que ordenada a promover outros direitos fundamentais do menor -, dota-se o processo de garantias que realizam o conteúdo essencial de princípios consagrados na Constituição. […]»
Referindo-se também a estas semelhanças, Anabela Miranda Rodrigues e António Carlos Duarte-Fonseca (cfr. Comentário da Lei Tutelar Educativa, Coimbra Editora, 2000, pág. 22) dizem o seguinte:
«Uma nota saliente do modelo processual adotado é a sua semelhança com o processo penal. E, com efeito, nada obsta a que este processo sirva de fonte ao processo educativo, já que constitui um ordenamento que realiza de forma particularmente ativa as garantias constitucionais da pessoa em face de pretensões de intervenção do Estado na esfera dos direitos fundamentais.
Considerando que a intervenção educativa pode ocasionar uma limitação de direitos, liberdades e garantias – ainda que ordenada a promover outros direis fundamentais do menor – dota-se, pois, o processo de garantias que realizam o conteúdo essencial de princípios consagrados na Constituição.
Assim, o processo educativo aproxima-se do processo penal em matérias tão importantes como são as que se referem ao princípio da legalidade processual, ao direito de audição, ao princípio do contraditório ou ao direito a constituir advogado.»
Estas semelhanças encontram tradução concreta no regime legal do processo tutelar educativo (cfr. Título IV, art. 41.º e segs. da Lei Tutelar Educativa), sendo de realçar, no que ora releva, o artigo 45.º, no qual se consagra o estatuto processual do menor, titular de um conjunto de direitos e garantias processuais (em termos semelhantes ao que acontece com o arguido, nos termos do artigo 61.º do Código de Processo Penal). Entre estes direitos, as alíneas b) e c), do n.º 2, do referido artigo 45.º, consagram o direito ao silêncio do menor, quer “sobre os factos que lhe forem imputados ou sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar” (al. b)), quer “sobre a sua conduta, o seu caráter ou a sua personalidade” (al. c)).
Por outro lado, são também estas semelhanças que fazem com que, no artigo 128.º da Lei Tutelar Educativa, se determine a aplicação subsidiária do Código de Processo Penal às disposições do título IV (relativas à tramitação do processo tutelar educativo).
E, como se escreveu no Relatório Final apresentado pela Comissão para a Reforma do Sistema de Execução de Penas e Medidas, “no essencial, pode afirmar-se que os aspetos em que o processo tutelar se aproxima de forma mais nítida das características do processo penal são reflexos de realidades normativas mais fundas, nomeadamente de índole constitucional, das quais o processo tutelar participa ao mesmo título e em pé de igualdade com o processo penal.” (o relatório encontra-se publicado por Anabela Miranda Rodrigues e António Carlos Duarte-Fonseca, na ob. cit., pág. 419 e seg.).
Daí que, apesar da intervenção tutelar não ter uma finalidade punitiva, as limitações aos direitos fundamentais que integra, não podem deixar de exigir do legislador ordinário uma garantia dos direitos de audiência e defesa, nos termos do n.º 10, do artigo 32.º, da Constituição, ou por força da proibição da indefesa, inerente ao processo equitativo imposto pelo artigo 20.º, n.º 4, da Constituição.
E nesses direitos de defesa está necessariamente presente o direito à não autoincriminação, visando garantir que o menor sujeito a um processo tutelar pela prática de um facto que a lei tipifica como crime não seja reduzido a mero objeto da atividade estadual, devendo antes ser-lhe atribuído o papel de verdadeiro sujeito processual, armado com os direitos de defesa. Na verdade, tendo em consideração, por um lado, os valores tutelados pelo princípio nemo tenetur se ipsum accusare, e por outro lado, a dimensão das limitações aos direitos fundamentais que podem resultar da intervenção tutelar, aquele princípio não pode deixar de acolher sob o seu manto protetor a posição do menor que é sujeito a um processo tutelar.
É essa também a orientação da Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de setembro de 1990, quando no artigo 40, n.º 2, b), iv, dispõe que “a criança suspeita ou acusada de ter infringido a lei penal, tenha, no mínimo direito…a não ser obrigada a testemunhar ou a confessar-se culpada…”.
Daí que, para proteção da autodeterminação do menor, este deva também ter a possibilidade de decidir, no exercício de uma plena liberdade de vontade, qual a posição a tomar perante a matéria que constitui objeto simultâneo do processo penal e do processo tutelar, nos quais é chamado a depôr, como testemunha e como menor a quem pode ser imposta medida tutelar, respetivamente.
É certo que os menores de 16 anos não prestam juramento (artigo 91.º, n.º 6, a), do Código de Processo Penal), nem podem ser sancionados penalmente pela recusa em depor ou por prestarem depoimento falso (artigo 19.º, do Código Penal), mas não deixam de ter a obrigação de prestar de depoimento e de dizer a verdade, nos termos do artigo 132.º, d), do Código de Processo Penal.
Sendo necessário, relativamente ao menor sujeito a um processo tutelar, garantir que qualquer contributo, que resulte em desfavor da sua posição, seja uma afirmação esclarecida e livre de autorresponsabilidade, a simples obrigação deste prestar depoimento como testemunha, em processo penal, cujo objeto integre os mesmos factos que estão em jogo em processo tutelar, pode constituir uma violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.
Todavia, restringindo-se a interpretação normativa sob análise à hipótese em que, no momento em que o menor depõe como testemunha no processo penal, o processo tutelar já terminou, tendo o mesmo já sido objeto de decisão de arquivamento, as razões que presidem à invocação daquele princípio deixam de se justificar, pois, o depoimento que o menor venha a efetuar já não é suscetível de contribuir para a aplicação de uma medida violadora dos seus direitos fundamentais.
Na verdade, arquivado o processo tutelar educativo não prevê a lei a possibilidade do mesmo ser reaberto com fundamento no depoimento prestado pelo menor em processo penal ou por terem sido descobertas novas provas em resultado desse depoimento.
Assim sendo, a obrigatoriedade do menor prestar depoimento no processo penal nestas circunstâncias deixa de constituir uma violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare, ficando por isso prejudicada a apreciação da questão, suscitada pelo Ministério Público nas suas contralegações, na senda do Acórdão n.º 304/2004, deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), relativa à possibilidade de um terceiro, para cuja condenação contribuiu um depoimento testemunhal prestado em violação daquele princípio, obter um juízo de inconstitucionalidade do critério normativo que validou esse depoimento.
Por estas razões não deve julgar-se inconstitucional a norma constante do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de não exigir consentimento para o depoimento, como testemunha, de menor de 16 anos, à data dos factos, a quem tenha sido instaurado processo tutelar educativo pela prática dos factos criminalmente imputados ao arguido, tendo esse processo já terminado com o seu arquivamento, julgando-se improcedente o recurso interposto.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional, a norma do artigo 133.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de não exigir consentimento para o depoimento, como testemunha, de menor de 16 anos, à data dos factos, a quem tenha sido instaurado processo tutelar educativo pela prática dos factos criminalmente imputados ao arguido, tendo esse processo já terminado com o seu arquivamento.
e, em consequência,
b) julgar improcedente o recurso interposto por A..
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de fevereiro de 2014. – João Cura Mariano – Pedro Machete - Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura - Joaquim de Sousa Ribeiro.
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