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Processo n.º 25/08
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
Por acórdão de 26 de Setembro de 2007 (a fls. 55 e seguintes), o Tribunal da
Relação do Porto negou provimento ao recurso interposto pelo arguido A., do
despacho proferido pelo Juiz de Instrução Criminal que, na sequência de
requerimento de abertura de instrução, decidiu pela improcedência da nulidade e
inconstitucionalidade suscitadas pelo arguido, confirmando integralmente a
decisão recorrida.
Pode ler-se no texto do acórdão, para o que agora releva, o seguinte:
“[…]
No processo de instrução n.º 349/04.31DPRT do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de
Lousada, o arguido A., vem interpor recurso do despacho proferido pelo M.mo JIC
que, na sequência de requerimento de abertura de instrução que requereu, decidiu
pela improcedência da nulidade e inconstitucionalidade suscitadas pelo arguido.
Com os fundamentos constantes da respectiva motivação formulou as seguintes
conclusões:
[…]
4) É inconstitucional, por violação do art° 32° da Constituição da República
Portuguesa e do princípio da estrutura acusatória do processo que ali se
consagra o art° 48° do CPP bem como o art° 40º, n° 3, do RGIT, quando e se
interpretados, como no caso, no sentido de que é admissível a realização de
diligências de prova levadas a cabo por órgãos da segurança social relativamente
a crimes de natureza parafiscal cometidos contra esta, mesmo que não comunicada
de imediato a existência do processo criminal respectivo, e que se limitam a dar
do mesmo conhecimento ao MP, remetendo-lhe os autos, depois de realizadas todas
as diligências de inquérito.
5) É ainda inconstitucional, por violação do mesmo normativo e princípio
constitucionais, o art° 119°, alínea c), do CPP se e quando, como parece
resultar da fundamentação do despacho recorrido, de que existe inquérito, não
existindo por isso qualquer nulidade processual, mormente a constante daquele
artigo do CPP, quando no âmbito do processo em que estão em causa indícios da
prática de crimes de abuso de confiança cometidos perante a segurança social,
todas as diligências de inquérito são levadas a cabo pelo órgão administrativo
da segurança social, no âmbito de processo crime que o mesmo impulsionou, sem
que do mesmo tenha sido dado conhecimento ao MP, que se limitou, quando recebeu
os autos que lhe foram remetidos a deduzir acusação contra os arguidos.
[…]
cumpre agora apreciar e decidir.
Nos termos do art. 219º, n.° 1, da CRP, compete ao MP “representar o Estado e
defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do
disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da
política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal
orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”.
No caso em apreço apenas nos interessam as competências do MP no âmbito do
processo penal. De acordo com o figurino penal, assim que o MP obtêm a notícia
do crime abre inquérito, iniciando-se o processo penal comum com a abertura da
fase de inquérito, cujo objecto se consubstancia nas diligências tendentes a
investigar a existência de infracções criminais, a determinar os seus agentes e
a descobrir e recolher provas com vista à decisão do MP sobre o exercício ou não
da acção penal. — cf. artigos 241.º e segs. e 262.° do Código de Processo Penal
(CPP).
No domínio dos crimes comuns, o Ministério Público adquire notícia do crime por
conhecimento próprio, mediante denúncia e por intermédio dos órgãos de polícia
criminal (artigo 241.° do CPP).
Os órgãos de polícia criminal (OPC), logo que tomem conhecimento de qualquer
crime, comunicam o facto ao Ministério Público no mais curto prazo, sem prejuízo
de deverem iniciar de imediato a investigação/inquérito (art. 270º CPP) e,
praticar os actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de
prova (art. 248.° do CPP).
A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de
polícia criminal, que, para este efeito actuam sob a directa orientação do
Ministério Público e na sua dependência funcional (artigo 263° ainda do CPP).
A Lei n.° 15/2001, de 5 de Junho (doravante designada de RGIT), prevê que a
notícia do crime possa ser adquirida pelos órgãos da administração da segurança
social (art. 35º, n.°s 1 e 7); mesmo que a notícia do crime tenha sido adquirida
pela autoridade judiciária é sempre transmitida ao órgão de administração da
segurança social, com competência delegada para o inquérito (n.°s 2 e 7 do mesmo
preceito). Órgão este a quem cabe, durante o inquérito, os poderes e as funções,
dos órgãos de policia criminal (art. 263° e 53°, al. b), do CPP do citado
diploma).
E de acordo com o preceituado no n° 1 do art. 40.° «Adquirida a notícia de um
crime tributário procede-se a inquérito, sob a direcção do Ministério Público,
com as finalidades e nos termos do disposto no Código de Processo Penal”.
É pois inquestionável que quem dirige o inquérito é o MP.
Por força do n.º 3 do citado art. 40º do RGIT, normativo a instauração de
inquérito deve ser de imediato comunicada ao MP.
Ora, no caso em apreço, resulta evidente que os órgãos da administração
tributária não comunicaram de imediato ao MP a instauração de inquérito, como
determina o citado preceito - longe disso, uma vez que tal comunicação só ocorre
cerca de um ano e meio depois.
A verdade é que, durante aquele período, a investigação foi efectuada de forma
completamente livre e não controlada imediatamente pela autoridade judiciária
competente: o MP.
Apesar disso, estamos com a decisão recorrida quando afirma “que o cumprimento
tardio dessa comunicação, não equivale à falta de inquérito, nulidade insanável
prevista no artigo 119º, d), do C.P.Penal (...).”
É que a “falta de inquérito”, refere-se à falta do conjunto de diligências ou
actos compreendidos no art. 262º, n.° 1, do C.P.P., que relembre-se compreendem
“o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime,
determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as
provas, em ordem à decisão sobre a acusação.”
Tal vício ocorre quando se verifique ausência absoluta ou total de inquérito ou
falta absoluta de actos de inquérito - cfr. Souto de Moura in Jornadas de
Direito Processual Penal, pág. 118, e também Maia Gonçalves in C.P.P. Anotado,
1996, pág. 250.
Ora, é insofismável que foram praticados actos de inquérito daí que tal situação
não se enquadra no conceito acima definido de “falta de inquérito”, o que
equivale por dizer que não se verifica a nulidade invocada ou qualquer outra
sanável ou insanável.
No dizer do Prof. Germano M. Silva: “é o conjunto dos actos de inquérito que
constituem o inquérito, enquanto actividade; todos os actos que ocorram no
decurso da fase processual do inquérito e têm por fim a decisão sobre a acusação
constituem o inquérito, enquanto fase processual em sentido lógico, e todos os
actos praticados entre a decisão do Ministério Público de abrir o inquérito e o
requerimento de abertura de instrução ou a remessa do inquérito para o tribunal
de julgamento, fazem parte da fase processual denominada inquérito, tomada agora
em sentido cronológico.” Assim sendo, incumbe ao MP, depois de tomar
conhecimento (ainda que tardiamente) da instauração do inquérito, escrutinar os
actos efectuados – desde que se compreendam na esfera das suas atribuições, de
fora ficam obviamente os actos que contendam com direitos, liberdades e
garantias dos cidadãos, esses da competência do juiz de instrução, e que não
vêem ao caso como abaixo se irá dizer –, que pode invalidar, aquilatar se os
mesmos são ou não suficientes para a prolação de despacho final, ordenar que
sejam completados, praticados outros ou ordenar diligências complementares de
modo a apurar os factos. Deste ponto de vista ao validar os actos de
investigação efectuados (com a prolação do despacho de acusação) não deixa de
não dirigir/controlar a actividade de investigação até aí realizada e que se
enquadra naquele conjunto de actos que constituem o inquérito, enquanto
actividade. Recorde-se que a fase de inquérito é uma fase destinada a que o MP
possa formar a decisão sobre o exercício da acção penal.
Nesta medida, e considerando o entendimento antes exposto, afigura-se-nos que
não se coloca a questão da inconstitucionalidade das normas dos art. 48º CPP e
40º, n° 3, do RGIT, tal com vem suscitado.
É sabido que o nosso processo penal é um processo de estrutura basicamente
acusatória integrada pelo princípio da investigação judicial.
O art. 32°, n.° 5, da C.R.P. consagra como princípio fundamental enformador do
processo penal, o princípio do acusatório, prescrevendo que “o processo criminal
tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os
actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução,
acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa diferenciação entre o juiz
de instrução e juiz julgador e entre ambos e órgão acusador.
No sistema acusatório, o arguido é um sujeito processual que tem intervenção em
todas as fases do processo, garantindo-se-lhe o contraditório, ou seja, a
possibilidade de o arguido questionar ou negar factos constantes da queixa e seu
enquadramento jurídico.
Por isso no inquérito, entre os actos que são obrigatórios para o MP, conta-se o
do interrogatório do arguido — art. 272°, nº 1, do C.P.P. — excepto se não for
possível notificá-lo — cf. G. Marques da Silva, ob. cit., págs. 90 e 91 —
exarando-se nos autos, neste caso, as diligências efectuadas para o efeito.
Por sua vez o art. 61º, n.° 1, do C.P.P. enumera (embora não exaustivamente) um
conjunto de direitos de que goza o arguido.
Entre eles, está o direito de tomar posição sobre os factos que lhe são
imputados na queixa, requerendo a realização das diligências que se lhe
afigurarem necessárias — art. 61º, n.° 1, f), do C.P.P. — alcançando-se tal
desiderato, com o interrogatório do suspeito como arguido, momento em que se lhe
dá conhecimento da existência do processo contra si instaurado.
Pese embora o princípio da igualdade de armas só vigorar tendencialmente nas
fases jurisdicionais do processo, o certo é que no inquérito, o arguido vê
protegidos os seus direitos fundamentais com a já referida obrigatoriedade da
constituição de arguido, com a obrigação de se lhe dar a conhecer os seus
direitos e deveres, entre outros.
Ora, o recorrente não aponta a preterição ou violação de qualquer destes
direitos fundamentais. Assim, e como se conclui na decisão recorrida: “No caso
em apreço verifica-se que não foi omitida a prática de nenhum acto que a lei
prescreve ou obrigue à sua realização, tendo sido o Ministério Público quem
proferiu o despacho final de acusação, com base nos elementos de prova
recolhidos pelos órgãos da administração tributária com competência para a
investigação do ilícito em causa, que entendeu serem suficientes, pelo que não
se verifica qualquer violação do princípio do acusatório, não se verificando
assim a apontada inconstitucionalidade (...).
Em conformidade, com todo o exposto, impõe-se a improcedência do recurso.
[…]”
Deste acórdão interpôs A. recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da
alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, nos
seguintes termos (fls. 68 e 69):
“[…]
O recurso funda-se na inconstitucionalidade, já vinda de invocar já no
requerimento de abertura de instrução e depois no recurso interposto da decisão
instrutória, do art° 40º, n° 3 ,do RGIT e 48° do CPP, por violação do art° 32°
da CRP e do princípio da estrutura acusatória do processo penal nele expresso,
quando e se interpretados no sentido de que é admissível a realização de
diligências de prova levadas a cabo por órgãos da segurança social relativas a
crimes de natureza parafiscal cometidos contra esta, mesmo que não comunicada de
imediato a existência do processo criminal respectivo e que se limitam a dele
dar conhecimento ao MP, com remessa dos autos, apenas depois de realizadas todas
as diligências do inquérito.
Funda-se ainda o recurso na inconstitucionalidade, igualmente vinda de invocar
no requerimento de abertura de instrução e depois da decisão instrutória, por se
entender violado os mesmos normativo e princípio constitucionais, do disposto no
art° 119°, alínea c), do CPP se e quando interpretados, como igualmente continua
a resultar das anteriores decisões proferidas nestes autos, e que existe
inquérito – não existindo, por isso, a referida nulidade processual, quando no
âmbito de processo em que estão em causa indícios da prática de crimes de abuso
de confiança à Segurança Social, todas as diligências do inquérito são levadas a
cabo pelo órgão administrativo da segurança social, no âmbito de processo crime
que o mesmo impulsionou, sem que dele tenha dado conhecimento ao MP, que se
limitou, quando recebeu os autos, depois das diligências realizadas, a deduzir
acusação contra os arguidos.
[…]”
O recurso de constitucionalidade foi admitido, por despacho de fls. 70.
O recorrente apresentou (a fls. 90 a 99) alegações, nas quais formula as
seguintes conclusões:
“[…]
1) A estrutura acusatória do processo penal implica – do ponto de vista material
e subjectivo – que no inquérito a direcção do mesmo pertença ao magistrado do
MP, com as características de uma magistratura a quem é confiada a garantia da
legalidade, e não a outras entidades (mormente administrativas e com interesses
directos no desfecho dos processos), pois que, doutro modo, é a própria isenção
e imparcialidade de actuação, para além da legalidade, que estão postos em causa
e com isso a estrutura em que assenta o próprio Estado de Direito e Democrático.
2) E se a direcção do inquérito implica, como de facto assim é, o controlo e a
vigilância dos actos que no âmbito do mesmo se praticam — pois que só assim se
justifica que a legalidade possa ser controlada nos moldes em que a lei o exige,
através de uma magistrado — não pode falar-se em inquérito sem esse poder de
vigilância e de alerta quando toda a fase anterior à instrução, com excepção da
acusação, decorre e faz todo seu curso sem que sequer o MP dele tenha
conhecimento.
3) Em tais circunstâncias o que teríamos era (e foi), com o devido respeito, a
farsa de um inquérito, visto que só na aparência se cumpria(iu) a legalidade e
eram (foram) assegurados os direitos fundamentais pelo MP, dado que na prática
dirigido e assegurado por funcionários do próprio Estado, ele mesmo
indirectamente lesado com as condutas dos agentes averiguados.
Por isso,
4) É inconstitucional, por violação do art° 32° da Constituição da República
Portuguesa e do princípio da estrutura acusatória do processo que ali se
consagra o art° 48° do CPP bem como o art° 40°, n° 3, do RGIT, quando e se
interpretados, como no caso, no sentido de que é admissível a realização de
diligências de prova levadas a cabo por órgãos da segurança social relativamente
a crimes de natureza parafiscal cometidos contra esta, mesmo que não comunicada
de imediato a existência do processo criminal respectivo, e que se limitam a dar
do mesmo conhecimento ao MP, remetendo-lhe os autos, depois de realizadas todas
as diligências de inquérito.
5) É ainda inconstitucional, por violação do mesmo normativo e princípio
constitucionais, o art° 119º, alínea d), do CPP se e quando, como parece
resultar da fundamentação do despacho recorrido, de que existe inquérito, não
existindo por isso qualquer nulidade processual, mormente a constante daquele
artigo do CPP, quando no âmbito de processo em que estão em causa indícios da
prática de crimes de abuso de confiança cometidos perante a segurança social,
todas as diligências de inquérito são levadas a cabo pelo órgão administrativo
da segurança social, no âmbito de processo crime que o mesmo impulsionou, sem
que do mesmo tenha sido dado conhecimento ao MP, que se limitou, quando recebeu
os autos que lhe foram remetidos a deduzir acusação contra os arguidos.
6) Tais inconstitucionalidades determinam a própria nulidade de todo o processo
(nulidade absoluta) por falta de inquérito nos termos do art° 119°, alínea d),
do CPP, conforme se invocou antes, no requerimento de abertura de instrução.
7) Assim não considerando, o despacho recorrido violou os normativos e
princípios constitucionais acima indicados.
[…]”.
O Ministério Público apresentou contra-alegações (fls. 100 a 103), nas quais
conclui da seguinte forma:
“[…]
1. A comunicação tardia da instauração de inquérito ao Ministério Público, por
parte de quem tem esse dever legal e o deve cumprir atempadamente, não determina
a inconstitucionalidade das normas dos artigos 40º, nº 3, do RGIT e 48º do
Código de Processo Penal.
2. A realização do inquérito sem que a instauração do mesmo tenha sido
comunicada ao Ministério Público, mas que é por este apreciado, antes de ser
proferida acusação, não é equivalente à falta do inquérito, a que alude o artigo
119º, alínea d), do Código de Processo Penal, não ocorrendo, por via disso,
qualquer inconstitucionalidade.
3. Termos em que não deverá proceder o presente recurso.”
A fls. 104 o Juiz Conselheiro Relator proferiu despacho com o seguinte teor:
“Considerando que o objecto do recurso se encontra delimitado pelo requerimento
de interposição e pelas conclusões 4ª e 5ª da respectiva alegação, que se lhe
referem, é possível suscitar a questão do seu não conhecimento, porquanto a
decisão recorrida não aplicou as interpretações normativas censuradas, antes
considerou que o MP, ao validar os actos de investigação efectuados (com a
prolação do despacho de acusação) não deixa de dirigir/controlar a actividade de
investigação até aí realizada, o que conduziu o tribunal recorrido a concluir
que não se coloca a questão de inconstitucionalidade que vem suscitada.
[…]”
Notificado para se pronunciar sobre a questão prévia suscitada, o recorrente
veio dizer o seguinte (fls. 113 a 115):
“[…]
Quando no acórdão da Relação se escreveu que “…no caso apreço, resulta evidente
que os órgãos da administração tributária não comunicaram de imediato ao MP a
instauração de inquérito, como determina o citado preceito - longe disso, uma
vez que tal comunicação só ocorre cerca de um ano e meio depois.
A verdade é que, durante aquele período, a investigação foi efectuada de forma
completamente livre e não controlada imediatamente pela autoridade judiciária
competente: o MP.”,
Para depois, melhor explicitando, considerar,
“Deste ponto de vista ao validar os actos de investigação efectuados (com a
prolacção do despacho de acusação) não deixa de não dirigir/controlar a
actividade de investigação até aí realizada e que se enquadra naquele conjunto
de actos que constituem o inquérito, enquanto actividade. Recorde-se que a fase
de inquérito é uma fase destinada a que o MP possa afirmar a decisão sobre o
exercício da acção penal” e prosseguindo afirmar-se ainda, a respeito do art°
119°, al. c), do CPP, e da inconstitucionalidade invocada, tal como expressa na
conclusão 5ª das alegações:
“ (…) não foi omitida a prática de nenhum acto que a lei prescreve ou obrigue à
sua realização, tendo sido o Ministério Público quem proferiu o despacho final
de acusação, com base nos elementos de prova recolhidos pelos órgãos da
administração tributaria com competência para a investigação do ilícito em
causa, que entendeu serem suficientes, pelo que não se verifica qualquer
violação do princípio do acusatório, não se verificando assim a apontada
inconstitucionalidade”
salvo diferente e melhor opinião, parece que de forma expressa, ainda que com
diferente redacção e de maneira porventura mais sintetizada e aberta, as
interpretações normativas censuradas são as que se enunciam nas conclusões 4ª a
5ª e no requerimento de interposição de recurso.
Com efeito,
Defender-se que ao ser proferida acusação o MP não deixou, este, de
dirigir/controlar o inquérito (que se iniciou e deu continuidade à sua margem),
não é diferente que afirmar que são interpretados como admissíveis os actos
levados a cabo por órgãos da segurança social por crimes cometidos contra esta
em processo que tramita sem o conhecimento daquele, a quem se limita a
remeter-lhe o processo depois de realizadas tais diligências de prova, se o MP
as sanciona, acusando, achando-se conforme uma tal interpretação dos art°s 48°
do CPP e 40º, n° 3, do RGIT em análise, com o preceituado no art° 32° da CRP e o
princípio da estrutura acusatória do processo criminal que este consagra, e que
assim se violam.
Como - e ainda - é conciliável a afirmação transcrita em último lugar que consta
do acórdão recorrido, com aquela que vem explicitada na conclusão 5ª das
alegações apresentadas.
[…]”
2. Fundamentação
Tendo o presente recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do
artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, constitui seu pressuposto
processual a aplicação, na decisão recorrida, da norma ou interpretação
normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie.
Este pressuposto processual decorre da natureza instrumental do recurso
constitucional e visa garantir a utilidade da decisão, pois se a norma ou
interpretação normativa cuja conformidade constitucional se pretende que o
Tribunal Constitucional aprecie não coincidir com aquela que foi efectivamente
aplicada pela decisão recorrida, a decisão que vier a ser proferida pelo
Tribunal Constitucional é insusceptível de alterar o sentido da decisão do
tribunal recorrido.
Como resulta do requerimento de interposição de recurso e das alegações
apresentadas (conclusões 4.ª e 5.ª), o recorrente pretende que o Tribunal
Constitucional aprecie a conformidade constitucional de duas interpretações:
(i.) a interpretação do artigo 40.º, n.º 3, do RGIT, e do artigo 48.º do CPP, no
sentido de que é admissível a realização de diligências de prova levadas a cabo
por órgãos da segurança social relativas a crimes de natureza parafiscal
cometidos contra esta, mesmo que não comunicada de imediato a existência do
processo criminal respectivo e que se limitam a dele dar conhecimento ao MP, com
remessa dos autos, apenas depois de realizadas todas as diligências do
inquérito.
(ii.) a interpretação do artigo 119.º, alínea d), do CPP no sentido de que
existe inquérito quando no âmbito de processo em que estão em causa indícios da
prática de crimes de abuso de confiança à Segurança Social, todas as diligências
do inquérito são levadas a cabo pelo órgão administrativo da segurança social,
no âmbito de processo crime que o mesmo impulsionou, sem que dele seja dado
conhecimento ao MP, que se limita, quando recebe os autos, depois das
diligências realizadas, a deduzir acusação contra os arguidos.
Ora, a decisão recorrida não aplicou as interpretações normativas que o
recorrente pretende ver sindicadas.
Na verdade, como decorre do texto da decisão sindicada, entendeu o tribunal
recorrido que “incumbe ao MP, depois de tomar conhecimento (ainda que
tardiamente) da instauração do inquérito, escrutinar os actos efectuados (…),
que pode invalidar, aquilatar se os mesmos são ou não suficientes para a
prolação de despacho final, ordenar que sejam completados, praticados outros ou
ordenar diligências complementares de modo a apurar os factos. Deste ponto de
vista ao validar os actos de investigação efectuados (com a prolação do despacho
de acusação) não deixa de não dirigir/controlar a actividade de investigação até
aí realizada e que se enquadra naquele conjunto de actos que constituem o
inquérito, enquanto actividade.”
Ou seja, o tribunal recorrido não adoptou o entendimento, que o recorrente
pretende ver sindicado, no sentido de que é admissível a realização de
diligências sem que tenha sido comunicada de imediato ao Ministério Público a
instauração do inquérito, ou ainda no sentido de que existe inquérito quando,
realizadas todas as diligências pelos órgãos da segurança social, o Ministério
Público se limita a deduzir acusação.
Pelo contrário, defende o tribunal recorrido que, apesar da comunicação da
instauração de inquérito pelos órgãos da administração da segurança social ser
tardiamente efectuada, cabe ainda ao Ministério Público dirigir/controlar a
actividade de investigação até aí realizada, incumbindo-lhe, designadamente,
escrutinar os actos efectuados que pode invalidar, aquilatar se os mesmos são ou
não suficientes para a prolação de despacho final, ordenar que sejam
completados, praticados outros ou ordenar diligências complementares de modo a
apurar os factos, o que se enquadra naquele conjunto de actos que constituem o
inquérito, enquanto actividade.
E foi com base em tais considerações, que a decisão recorrida julgou
improcedente o recurso e concluiu pela não verificaçao da inconstitucionalidade
das normas dos artigos 119º, alínea d), do CPP e 40º, n.º 3, do RGIT e 48º do
CPP.
Assim sendo, não tendo sido aplicadas, na decisão recorrida, as interpretações
cuja conformidade constitucional o recorrente submete à apreciação do Tribunal
Constitucional, não pode conhecer-se do objecto do recurso, por falta de
preenchimento de um dos seus pressupostos processuais.
3. Decisão
Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, acordam, na 3.ª Secção do Tribunal
Constitucional, em não conhecer do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 12 UC.
Lisboa, 18 de Junho de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
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