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Processo nº 1155/2007
Plenário
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. O requerimento do Ministério Público
O representante do Ministério Público junto deste Tribunal veio requerer, nos
termos do artigo 82º da Lei nº 28/82, que o Tribunal Constitucional aprecie e
declare, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma extraída
das disposições conjugadas do artigo 119º, nº 1, alínea a), do Código Penal e do
artigo 336º, nº 1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na
interpretação segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende
com a declaração de contumácia.
Diz‑se, a fundamentar o pedido, que “tal dimensão normativa foi julgada
inconstitucional, por violação do artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição da
República Portuguesa através do Acórdão nº 110/2007 e das decisões sumárias nºs
379/07 e 576/07”. E acrescenta‑se ainda que o facto de o pedido se reportar a
uma norma já revogada não exclui o interesse processual da fiscalização
abstracta sucessiva dado “o elevado número de situações em que vem sendo
convocada a dita questão de constitucionalidade, bem ilustrada pelo número de
processos que têm vindo a ser distribuídos neste Tribunal Constitucional” e
ainda “o facto de se ter sedimentado uma divergência de entendimentos, expressa
no Acórdão nº 524/07, que considerou desprovida de natureza normativa tal
questão de constitucionalidade, abstendo-se, em consequência, de conhecer do
mérito do recurso – e sendo inviável dirimir os diferentes entendimentos,
expressos nos citados acórdãos nºs 110/07 e 524/07, através da interposição do
recurso para o Plenário, previsto no artigo 79º-D da Lei do Tribunal
Constitucional – o que poderá criar dificuldades para através da fiscalização
concreta, os interessados terem plena possibilidade de, com eficácia, verem
sempre acautelados os seus direitos e interesses, através da obtenção de uma
decisão de mérito sobre a questão de constitucionalidade suscitada”.
Termina o representante do Ministério Público pedindo “a apreciação e declaração
de inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma extraída das
disposições do artigo 119.º, n.º 1 alínea a) do Código Penal e do artigo 336.º,
n.º 1, do Código de Processo Penal”.
2. A resposta do órgão autor da norma
Notificado o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para os efeitos do
disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3 da Lei n.º 28/82, nenhuma resposta veio
a ser por ele apresentada.
3. O Memorando
Elaborado pelo Presidente do Tribunal o memorando a que se refere o artigo 63º
da Lei do Tribunal Constitucional, e tendo este sido submetido a debate nos
termos do nº 2 do referido preceito, cumpre agora decidir de acordo com a
orientação que o Tribunal fixou.
II
Fundamentos
4. A delimitação do objecto do processo
A questão que se coloca é a de saber se terá ou não havido uma violação do
princípio da legalidade criminal a que alude a Constituição da República
Portuguesa nos números 1 e 3 do artigo 29.º, violação essa geradora de
inconstitucionalidade da norma extraída das disposições conjugadas do artigo
119º, nº 1, alínea a), do Código Penal e do artigo 336º, nº 1, do Código de
Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a
prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
Como se sabe, o instituto da suspensão de prescrição do procedimento criminal –
pela primeira vez previsto na reforma de 1972 do Código Penal de 1886 – veio a
ser introduzido no artigo 119º, nº 1, do Código Penal de 1982. O teor do
referido preceito era o seguinte:
1. A prescrição do procedimento criminal suspende‑se, para além dos casos
especialmente previstos na lei, durante o tempo em que:
a) O procedimento criminal não possa legalmente iniciar‑se ou não possa
continuar por falta de uma autorização legal ou de uma sentença prévia a
proferir por tribunal não penal, ou por efeito da devolução de uma questão
prejudicial para juízo não penal;
b) O procedimento criminal esteja pendente, a partir da notificação do despacho
de pronúncia ou equivalente, salvo no caso de processo de ausentes;
c) O delinquente cumpra no estrangeiro uma pena ou uma medida de segurança
privativa da liberdade.
Em 1987 veio a ser aprovado o Código de Processo Penal que, por sua vez, criou
uma figura processual nova, a “declaração de contumácia”, dispondo no artigo
336.º, n.º 1, o seguinte:
A declaração de contumácia é da competência do presidente e implica a suspensão
dos termos ulteriores do processo até à apresentação ou à detenção do arguido,
sem prejuízo da realização de actos urgentes nos termos do artigo 320.º.
A aprovação deste preceito gerou a interpretação de que a declaração de
contumácia prevista no artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal seria
uma causa de suspensão da prescrição para os efeitos do artigo 119.º, n.º1, do
Código Penal.
Surgiu, também, a interpretação contrária no sentido de que tal interpretação
não seria possível e que a declaração de contumácia não poderia integrar a
previsão do artigo 119.º, n.º 1.
A divergência jurisprudencial acabou por dar origem ao Assento n.º 10/2000
(publicado no Diário da República, 1ª Série-A, de 10 de Novembro de 2000) que
fixou a seguinte jurisprudência:
No domínio da vigência do Código Penal de 1982 e do Código de Processo Penal de
1987, a declaração de contumácia constituía causa de suspensão da prescrição do
procedimento criminal.
A questão que em sede de fiscalização da constitucionalidade se coloca é a de
saber se será ou não conforme ao princípio da legalidade criminal, consagrado no
artigo 29.º, nos 1 e 3 da Constituição, admitir que, à luz do Código Penal de
1982 e do Código de Processo Penal de 1987, a declaração de contumácia constitua
causa de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Poderá, porém, questionar-se se tal problema relativo ao âmbito do princípio da
legalidade criminal se insere no domínio da actividade do Tribunal
Constitucional.
Esta questão não tem sido objecto de jurisprudência uniforme e tem suscitado
dois tipos de resposta de que são paradigmáticos os Acórdãos 110/07 e 524/07, os
dois contrários um ao outro e ambos com votos de vencido.
Assim, no Acórdão n.º 110/07 a segunda secção do Tribunal Constitucional
decidiu:
Julgar inconstitucional, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da
Constituição da República, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo
119.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de
Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a
prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia.
Pelo contrário, no Acórdão n.º 524/07, a primeira secção do Tribunal
Constitucional entendeu que não podia tomar conhecimento do recurso, isto é, que
não podia apreciar a questão de constitucionalidade que se suscitara nas
instâncias:
Nestes termos, acordam, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional, em não tomar
conhecimento do objecto do recurso.
Havendo pelo menos duas decisões sumárias favoráveis a uma das duas posições
(vejam-se, nomeadamente, as decisões sumárias nºs 379/07 e 576/07), estão
reunidas as condições para que a questão se possa decidir em sede de
fiscalização abstracta, nos termos do artigo 281.º, n.º 3 da Constituição da
República Portuguesa e do artigo 82º da Lei do Tribunal Constitucional.
Vejamos pois os termos em que o problema se coloca.
Sabe-se que a Constituição não acolheu um sistema de recurso de amparo ou de
queixa constitucional mas sim um sistema de fiscalização normativa da
constitucionalidade, que impede que o Tribunal conheça de actos (não normativos)
dos poderes públicos que sejam directamente lesivos de direitos fundamentais,
constitucionalmente tutelados. Nessa medida, não pode também o Tribunal conhecer
da eventual inconstitucionalidade de decisões judiciais em si mesmas tomadas.
Mantém-se exemplar, a este propósito, a explicação do Acórdão n.º 674/99
(publicado no Diário da República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000) que foi
recentemente transcrito no já citado Acórdão n.º 524/07 e que aqui se repete:
[…] mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para conhecer
das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter procedido a
uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma operação
equivalente, designadamente a uma interpretação ‘baseada em raciocínios
analógicos’, o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional
possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos
tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade.[…]
[…] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar,
em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já
que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia
ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal).
E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal
Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade
de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se
dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das
respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma
legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu ‘sentido natural’ (e
qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da
separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição
com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação
atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia
da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de
ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do
Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema
de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei
Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos
recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de
inconstitucionalidade normativa.
Tudo isto é verdade e terá de se manter como boa jurisprudência.
De facto, como se disse, não vigora entre nós um sistema de recurso de amparo ou
de queixa constitucional, existindo, sim, um sistema de fiscalização normativa
da constitucionalidade que não permite que o Tribunal conheça do mérito
constitucional do acto casuístico de subsunção de um pormenorizado conjunto de
factos concretos na previsão abstracta de uma certa norma legal.
Contudo, o problema que agora se coloca − que é o de saber se não haverá
porventura uma violação do princípio da legalidade criminal quando se considera
que a declaração de contumácia constituía uma causa de suspensão da prescrição à
luz do artigo 119.º n.º 1 do Código Penal de 1982 e do artigo 336.º, n.º 1 do
Código de Processo Penal de 1987 − tem uma especificidade que não poderá ser
negligenciada.
Esta especificidade do problema poderá ser explicada partindo de uma distinção
metodológica relativa ao referente da norma legal.
As normas podem referir-se (i) a factos concretos cujo circunstancialismo
envolvente será sempre inabarcável, podem também referir-se (ii) a realidades
típicas não configuradas pelo legislador e podem, ainda, referir-se (iii) a
meras categorias normativas fixadas por lei (sobre o “referente” da linguagem
jurídica como realidade autonomamente constituída no domínio do direito e que
não se identifica necessariamente com a realidade em si mesma, Castanheira
Neves, O actual problema metodológico da interpretação jurídica, Coimbra 2003,
p. 251-268).
Esta diferença é processualmente relevante.
Se no primeiro caso é líquido que a determinação do referente da norma (factos
concretos) está fora do domínio de actividade do Tribunal Constitucional, já o
mesmo não se poderá dizer, com igual certeza, no segundo caso em que o referente
são factos típicos com um elevado grau de abstracção e, menos ainda, no terceira
hipótese em que o referente sejam categorias legais.
O sistema português de fiscalização da constitucionalidade inclui a
possibilidade de apreciar a validade daquilo que geralmente se designam como
interpretações normativas, admitindo o artigo 80º, nº 3, da Lei do Tribunal
Constitucional a possibilidade de “o juízo de constitucionalidade sobre a norma
que a decisão tiver aplicado, ou a que tiver recusado aplicação, se fundar em
determinada interpretação dessa mesma norma”.
O controlo de constitucionalidade das “interpretações normativas”, assim
admitido, não atribui, porém, ao Tribunal a competência que ele não pode ter,
desde logo face ao disposto no artigo 221º da Constituição. Um “tribunal ao qual
compete especificamente administrar a justiça em matérias de natureza
jurídico‑constitucional” não pode, evidentemente, transformar‑se em instância
revisora do modo como os demais tribunais interpretam e aplicam o direito
infra‑constitucional, substituindo‑se‑lhes na tarefa (que exclusivamente lhes
pertence) de subsunção de certos factos a certo tipo de determinação legal. Tal
em caso algum poderá ocorrer; tal não ocorre seguramente no caso agora sub
judice.
Com efeito, e ao invés do que sucede quando se pergunta se determinado conjunto
de factos concretos é ou não susceptível de subsunção num determinado tipo
legal, quando se pergunta se a declaração de contumácia é ou não susceptível de
integrar o universo das causas legais de suspensão da prescrição, não se está a
determinar se uma expressão legal é ou não susceptível de ter como referente um
determinado conjunto de factos concretos, mas sim um acto processual legalmente
definido de forma geral e abstracta. O referente é pois, em primeira linha, o
conteúdo geral e abstracto de uma norma legal e não um conjunto de factos
concretos ou típicos.
Não se pergunta se um determina facto concreto com todo o seu circunstancialismo
se pode incluir no âmbito da norma. A esta pergunta não pode o Tribunal
Constitucional responder.
Não se coloca aqui, sequer, a questão de saber se um determinado facto típico
dotado já de um grau médio de abstracção está abrangido pelo âmbito de uma norma
− que era o que sucederia, por exemplo, se se perguntasse se a “energia
eléctrica” se pode considerar uma “coisa móvel” ou se o “ácido” se poderá
considerar uma “arma” para efeitos de um determinado tipo de crime (veja-se
Figueiredo Dias, Direito penal. Parte geral, Tomo I: Questões Fundamentais. A
Doutrina Geral do Crime, 2ª ed. Coimbra 2007, p. 188 s.).
Pergunta-se, sim, se um acto processual normativamente inventariado em termos
gerais e abstractos pela lei – a “declaração de contumácia” – é, ou não,
passível de ser assimilado pelos conceitos utilizados pelo texto do artigo 119.º
na versão originária de 1982 e, em especial, se ela se poderá configurar como um
“caso de suspensão da prescrição especialmente previsto na lei” ou como uma
hipótese de “falta de autorização legal para continuar o procedimento”.
Trata-se apenas de saber se − em abstracto − será possível incluir o conteúdo
normativo constante de uma norma – o artigo 336.º do Código de Processo Penal –
no conteúdo normativo constante de outra norma – o artigo 119.º, n.º 1, do
Código Penal, na versão originária de 1982.
Assim, os argumentos fundamentais invocados para não conhecer das eventuais
violações do princípio da legalidade não valem para este caso em que o possível
referente da norma é uma outra norma geral e abstractamente fixada por lei.
Note-se que, a este respeito, é indiferente entender (como fez o Supremo
Tribunal de Justiça no Assento n.º 10/2000) que se trata de uma interpretação da
norma legal do artigo 119.º do Código Penal ou pelo contrário de uma norma
implícita (conjecturada porventura segundo o método previsto no artigo 10.º, n.º
3, do Código Civil) como parece decorrer do já referido acórdão do Tribunal
Constitucional n.º 110/07.
De facto, mantém-se válido o que se explicou no Acórdão n.º 205/99, a respeito
da questão de saber se violava ou não o princípio da legalidade considerar a
declaração de contumácia como uma causa de interrupção da prescrição para
efeitos do artigo 120.º, n.º 1, alínea a) do CP:
Questão afim da anterior é a de saber se o objecto do recurso é efectivamente o
artigo 120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal ou antes uma norma construída
pelo julgador através de um processo de integração de lacuna por analogia, nos
termos do artigo 10.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil. Note‑se, porém, que em
ambos os casos estaremos confrontados com uma norma cuja conformidade à
Constituição é sindicável perante o Tribunal Constitucional. Na primeira
hipótese, concluir‑se‑á que a aplicação analógica ainda constitui uma actividade
interpretativa, em sentido amplo, dando como resultado uma certa dimensão
normativa que pode contrariar normas ou princípios constitucionais. Na segunda
hipótese, estará em causa uma norma não escrita igualmente susceptível de
afrontar a Constituição quer quanto ao seu conteúdo quer quanto à sua génese (a
circunstância de ser obtida mediante uma aplicação analógica vedada pelo artigo
29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição feri‑la‑á de inconstitucionalidade material).
Todavia, esta questão acaba por ser de cunho puramente teorético na medida em
que estará sempre em causa a questão de saber se é compatível com a Constituição
a norma que determina a interrupção da prescrição obtida a partir do artigo
120.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal. E, independentemente de estar em causa
uma interpretação extensiva ou aplicação analógica desta norma legal, o que se
pergunta é se a norma, dimensão, sentido ou interpretação obtidos contrariam ou
não, na sua génese, o princípio da legalidade e, em concreto, a exigência de lex
certa que lhe é ínsita.”
Nos acórdãos n.os 412/2003 e 110/2007, o Tribunal Constitucional entendeu que,
para que houvesse um objecto apto à apreciação da constitucionalidade, bastaria
que se estivesse perante
um critério normativo, dotado de elevada abstracção e susceptível de ser
invocado e aplicado a propósito de uma pluralidade de situações concretas.
Seria pois necessário que a questão se colocasse com um grau suficiente de
generalidade e abstracção, de tal modo que se pudesse dizer que se trataria de
uma interpretação normativa que não dependeria do circunstancialismo concreto
dos factos.
Se admitimos que este critério possa gerar dúvidas no que respeita a realidades
típicas sem previsão legal, já o mesmo não se poderá dizer quando está em causa
uma figura processual abstracta normativamente prevista como é o caso da
declaração de contumácia.
Nestes termos, está o Tribunal Constitucional habilitado a tomar conhecimento da
questão da constitucionalidade que aqui se coloca quer o objecto do processo
seja entendido como uma interpretação normativa do artigo 119.º do Código Penal
de 1982, quer seja entendido como norma extraída das disposições conjugadas do
artigo 119.º, nº 1, do Código Penal e do artigo 336.º, nº 1, do Código de
Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação segundo a qual a
prescrição do procedimento criminal se suspende com a declaração de contumácia
(sobre o problema das “normas implícitas” como objecto idóneo de fiscalização da
constitucionalidade, Rui Medeiros, “A Força expansiva do conceito de norma no
sistema português de fiscalização concentrada da constitucionalidade”, in
Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Armando Marques Guedes, Lisboa, 2004, p.
187 ss., esp., p. 193 s., onde se “recoloca” o problema da fiscalização do
cumprimento do princípio da legalidade criminal por parte do Tribunal
Constitucional).
5. A questão da violação do princípio constitucional da legalidade criminal
Tudo está pois em saber se foi ou não efectivamente violado o princípio da
legalidade criminal. Este princípio resulta dos artigos 29.º, n. 1 e 3, da
Constituição da República Portuguesa:
Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos
pressupostos não estejam fixados em lei anterior” e “Não podem ser aplicadas
penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei
anterior.
O princípio aqui consignado é um “princípio-garantia”; visa, portanto,
“instituir directa e imediatamente uma garantia dos cidadãos” (Gomes Canotilho,
Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª ed., p. 1167).
Não se trata, pois, apenas de um qualquer princípio constitucional mas de uma
“garantia dos cidadãos”, uma garantia que a nossa Constituição – ao invés de
outras que a tratam a respeito do exercício do poder jurisdicional –
explicitamente incluiu no catálogo dos direitos, liberdades e garantias
relevando, assim, toda a carga axiológico-normativa que lhe está subjacente. Uma
carga que se torna mais evidente quando se representa historicamente a
experiência da inexistência do princípio da legalidade criminal na Europa do
Antigo Regime e nos Estados totalitários do século XX (cf. Figueiredo Dias,
Direito Penal. Parte Geral, I, p. 178).
Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de
limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do
sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado.
É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da
presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da
legalidade (nullum crimen sine lege certa). Estes princípios e direitos parecem
não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses
político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de
sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade
pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências
comunitárias que justificam o poder punitivo.
Não se pense pois que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de
uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial.
O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo
de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção
“axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar
a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.
Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser
corrigidos pelo intérprete contra o arguido.
É o que bem explica Figueiredo Dias (Direito Penal. Parte Geral, Tomo I,
2ª ed., p. 180):
Esquecimentos, lacunas, deficiências de regulamentação ou de redacção funcionam,
por isso, sempre contra o legislador e a favor da liberdade, por mais evidente
que se revele ter sido intenção daquele (ou constituir finalidade da norma)
abranger na punibilidade também outros comportamentos. Neste sentido se tornou
célebre a afirmação de v. Liszt segundo a qual a lei penal constitui a magna
Charta do criminoso.
No mesmo sentido, diz Taipa de Carvalho (Direito Penal, I, Porto 2003,
p. 210 s.):
O texto legal constitui, porém, um limite às conclusões interpretativas
teleológicas, no sentido de impedir a aplicação da norma a uma situação que não
esteja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um ou vários
significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-á dizer que, assim,
ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico-penal situações tão ou mais graves
do que as expressamente abrangidas pela norma legal (…). Responde-se que assim
é, e tem de ser quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha
do carácter fragmentário do direito penal.
A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal
encontra aqui, na moldura semântica do texto, uma barreira intransponível − uma
barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito
concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades
político‑criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na
base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia
pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo
dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da
República Portuguesa).
No domínio da legalidade criminal, a linguagem da lei perde o sentido pragmático
que geralmente tem no âmbito do direito para, excepcionalmente, se conter dentro
de um sentido semântico que abstrai da concreta teleologia da norma legal. Isto
em nome da garantia da liberdade ético-pessoal que se situa no cerne da
teleologia última do Direito.
Saliente-se, aliás, que os autores que, no domínio do direito criminal,
expressamente criticam o modelo da subsunção, e que apelam para uma metodologia
hermeneuticamente aberta em que a analogia desempenhe um papel nuclear, são
extremamente rigorosos no que respeita ao cumprimento do princípio da
legalidade. É assim que eles entendem que os “sentidos literais possíveis” do
texto são um limite garantístico relevante, mas insuficiente! (veja-se, por
exemplo, Arthur Kaufmann, Filosofia do Direito, p. 191, n. 55). O que significa
que se em geral, no Direito penal, a analogia tem um papel ampliador das
soluções previstas pelo legislador, nos domínios garantidos pelo princípio da
legalidade criminal só poderá ter um papel limitador obrigando a reduzir a
moldura do texto legal ao âmbito necessariamente mais restrito do “tipo de
ilícito”.
Pode colocar-se a questão de saber se as causas de suspensão da prescrição
estão, ou não, abrangidas por este princípio-garantia da legalidade criminal. Na
Alemanha, por exemplo,, esta matéria tem sido excluída do âmbito da garantia
constitucional da legalidade, por se considerar a prescrição como mero
pressuposto processual que se refere exclusivamente às condições de exercício da
acção penal (assim Leibholz/Rink, Grundgesetz Kommentar, Art. 103., Köln,
1975/2005, Rz. 1492; sobre a aceitação generalizada da prescrição como mero
pressuposto processual na jurisprudência, Lemke, in Strafrechtgesetzbuch, hrsg.
Kindhäuser/ /Neumann/Paeffgen, Bd 1, 2. Aufl., 2005, p. 2146).
Como explica Claus Roxin, a natureza da “prescrição” não é irrelevante, pois
dela depende a aplicabilidade do princípio da legalidade que “se limita ao
direito penal substantivo” (Strafrecht, 3. Aufl., 1997, p. 912 s.).
A posição da nossa doutrina é porém diferente. Ela admite, e bem, que a
prescrição tem, pelo menos em parte, uma natureza substantiva (sobre a dupla
natureza processual e substantiva do instituto da prescrição, Jorge de
Figueiredo Dias, Direito Penal Português. Parte Geral, II, As Consequências
Jurídicas do Crime, Coimbra 1993, p. 698 ss. e Germano Marques da Silva, Direito
Penal Português, III, Lisboa 1999, p. 225), sendo certo que se considera em
geral que o princípio da legalidade se deverá impor sempre que ele funcione como
garantia do arguido, ou seja, sempre que a ultrapassagem do sentido semântico da
norma criminal funcione contra o arguido. É o que parece resultar das palavras
de Figueiredo Dias:
Depois do que ficou dito, torna-se evidente que o argumento de analogia,
largamente admitido na generalidade dos ramos do direito tem em direito penal de
ser proibido, por força do conteúdo de sentido do princípio da legalidade,
sempre que este funcione contra o agente e vise servir a fundamentação ou
agravação da sua responsabilidade (Direito penal, p. 187).
Assim sendo, tudo está em saber se a interpretação normativa que foi dada ao
artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal na versão originária de 82 respeita ou não
os limites do princípio da legalidade criminal, equacionando‑se do seguinte modo
o problema agora colocado: pode o artigo 336.º do CPP ser considerado −
juridicamente − como um “caso especialmente previsto na lei” de suspensão da
prescrição ou de “falta de autorização legal” para efeitos do artigo 119.º, n.º
1, alínea a), do CP de 1982?
Diz a este respeito o Assento n.º 1/2000:
Como resulta do conteúdo das actas, nenhum membro da comissão revisora entendeu
que a situação de contumácia poderia ser abrangida nos segmentos «o procedimento
criminal não possa legalmente iniciar-se ou não possa continuar por falta de uma
autorização legal» ou nos «casos especialmente previstos na lei» usados no
transcrito artigo 119.º.
Logo depois salienta-se, no mesmo parágrafo, que todos os membros da comissão
revisora estiveram de acordo em que a lei deveria ser alterada:
Mas também parece resultar claro que foi entendimento da comissão que, dado o
seu regime legal, a contumácia deveria ser considerada como causa da suspensão
do procedimento criminal.
Finalmente, explica-se o modo como se chegou à conclusão de que a declaração de
contumácia deveria implicar a suspensão da prescrição:
Ao preceituar-se no n.º 1 do artigo 119.º «para além dos casos especialmente
previstos na lei» não se pode deixar de considerar abrangidos quer aqueles casos
que de momento já se encontrem previstos em leis quer aqueles que, de futuro,
venham a ser consagrados em diplomas legais. Na verdade, nada impede que, desde
logo, se preveja a possibilidade de, em normas avulsas ou não, se venha a
consagrar situações que determinem a suspensão da prescrição do procedimento
criminal. É como que um dar aqui como reproduzido o estabelecido nas tais normas
futuras.
Dizendo o artigo 336.º do Código de Processo Penal que a declaração de
contumácia implica a suspensão dos termos ulteriores do processo até à
apresentação do arguido, só poderá querer ter tido em vista aquela suspensão
relacionada com a prescrição do procedimento criminal. O efeito visado coincide
com o previsto no artigo 119.º, n.º 3: desde o momento de declaração de
contumácia até àquele em que caduca – n.º 3 do artigo 336.º - a prescrição não
corre.
(…)
O facto de ser desconhecido, à data da entrada em vigor do Código Penal de 1982,
o instituto da contumácia não justifica a afirmação de que o n.º 1 do artigo
119.º não se podia referir ao mesmo. A expressão usada, «casos especialmente
previstos na lei», não se quer referir a denominações, mas a situações, a certos
conteúdos. É isto que interessa, e não o nome que se lhes aplica. Para efeitos
iguais tem de haver soluções idênticas.
Há sem dúvida analogia entre os casos previstos no artigo 119.º do Código Penal
e a declaração de contumácia. E é verdade que o legislador entendeu que se
justificava que a declaração de contumácia funcionasse como causa de suspensão
da prescrição de tal forma que acabou por acrescentar uma nova alínea ao
preceito que expressamente o previsse.
Não pode todavia negar-se que a declaração de contumácia não era um caso de
suspensão da prescrição especialmente previsto na lei.
Ela não estava legalmente prevista, enquanto tal, na versão originária do Código
Penal de 1982.
Só passou a estar a partir da revisão de 1995.
E não era sequer absolutamente necessário que assim sucedesse. Note-se que a
própria suspensão da prescrição é um instituto excepcional, formulado primeiro
em 1972 e depois adoptado pelo Código Penal de 1982.
Pode, sem dúvida, dizer-se que a declaração de contumácia era uma situação
análoga às especialmente previstas no artigo 119.º do Código Penal de 1982. Mas
não podem restar dúvidas de que a declaração de contumácia não foi prevista em
1982 como causa de suspensão da prescrição. O intérprete poderá dizer que tal se
justificaria de um ponto de vista teleológico; o legislador poderá alterar a lei
de modo a inclui-la entre as causas de suspensão da prescrição. Mas não se pode
dizer que esse efeito estivesse previsto na lei. De facto, não estava.
Aliás, é de recordar que o Tribunal – e a propósito de questão próxima da que
agora se coloca – já considerou inconstitucional a criação de uma causa de
interrupção da prescrição pelo facto de não estar prevista na lei ou seja, por
violação do princípio da legalidade.
Na verdade, o Acórdão n.º 412/03 decidiu:
Julgar inconstitucionais, por violação do artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da
Constituição, as normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de
1987, conjugados com o artigo 120.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal de 1982
(redacção originária), na interpretação segundo a qual a declaração de
contumácia pode ser equiparada, como causa de interrupção da prescrição do
procedimento criminal, à marcação de dia para julgamento em processo de
ausentes, aí prevista”.
Poderia dizer-se que a situação da suspensão é diferente da interrupção.
A possibilidade de uma solução diversa foi aberta pelo próprio Acórdão n.º
412/03 que fez um referência incidental ao problema:
Relativamente à recusa de aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade,
das normas dos artigos 335.º e 337.º do Código de Processo Penal de 1987,
conjugados com o artigo 119.º, n.º 1, do Código Penal de 1982 (redacção
originária), na interpretação, dada pelo Supremo Tribunal de Justiça no
“Assento” n.º 10/2000, segundo a qual a declaração de contumácia constitui causa
de suspensão da prescrição do procedimento criminal, a solução não teria de ser
necessariamente no mesmo sentido, atentos a diferente natureza e os distintos
efeitos das duas figuras (interrupção e suspensão) e o carácter taxativo do
elenco das causas de interrupção do originário artigo 120.º do Código Penal de
1982 em confronto com a norma de remissão para outras “situações especialmente
previstas na lei” como causas de suspensão constante do n.º 1 do 119.º do mesmo
Código.
Contudo, não há razão suficiente para uma diversidade de tratamento. Não há
qualquer justificação para considerar abrangidas no âmbito do princípio da
legalidade criminal as normas relativas à interrupção da prescrição e não
considerar também as normas relativas à suspensão da prescrição.
A distinção conjecturada obiter dicta pelo acórdão n.º 412/03 baseia-se na
contraposição do carácter aberto das causas de suspensão ao carácter taxativo
das causas de interrupção da prescrição.
Simplesmente, este argumento parece colocar o âmbito do princípio constitucional
da legalidade criminal dependente do modo mais ou menos aberto com que a lei
ordinária regula a questão. Ora a primazia normativa da Constituição não se
compadece com uma tal inversão. Aliás, se a lei regula a questão de modo aberto,
através de um conceito amplo ou de uma remissão para outros casos especialmente
previstos na lei, menos razão há para não se respeitarem as exigências do
princípio da legalidade.
Poderia dizer-se que a interrupção da prescrição é mais gravosa para o arguido
do que a suspensão da prescrição. Logo, dir-se-ia, o princípio da legalidade
vale para as causas de interrupção da prescrição mas não para as causas de
suspensão dessa mesma prescrição.
A diferença seria porém de mero grau. Em ambos os casos, as regras que se
inserem no mesmo instituto funcionam contra o mesmo destinatário, o arguido e em
semelhante medida. E, bem vistas as coisas, nem sequer será totalmente
verdadeira a afirmação de que a interrupção fosse mais gravosa do que a
suspensão da prescrição na versão originária do Código Penal de 1982. Pois a
interrupção não impedia o funcionamento de um prazo peremptório de prescrição,
enquanto a suspensão, pelo contrário, não tinha um limite temporal máximo que
estivesse legalmente previsto.
Seria estranho que todo o sistema jurídico-penal estivesse limitado pelo
princípio garantístico da legalidade e apenas a suspensão da prescrição
estivesse isenta das mesmas exigências garantísticas que todas as normas da
Parte Geral do Código Penal que possam funcionar contra o arguido.
Resta pois apenas perguntar, como se disse no Acórdão n.º 110/07, se “o tribunal
recorrido, ao adoptar um entendimento das disposições conjugadas do artigo
119.º, n.º 1, do Código Penal, e do artigo 336.º, n.º 1, do Código de Processo
Penal, na redacção originária, segundo o qual a prescrição do procedimento
criminal se suspende com a declaração de contumácia, respeitou o princípio da
legalidade, previsto no artigo 29.º, n.os 1 e 3, da Constituição da República”.
A este respeito, terá de se manter a resposta apresentada neste mesmo Acórdão:
as expressões “suspensão do processo” e “suspensão da prescrição” do
procedimento não são sinónimas, nem sequer existe entre si qualquer relação de
implicação: não existe norma, ou qualquer princípio geral, no sentido de que
qualquer suspensão da instância (suspensão do processo) conduz a uma suspensão
da prescrição (e, por definição, esta começa mesmo a correr antes do início do
procedimento criminal, “desde o dia em que o facto se consumou” – artigo 118.º,
n.º 1, do Código Penal, na redacção de 1982), e há também casos de suspensão da
prescrição que se não ligam a qualquer suspensão do processo.
Não estando a declaração de contumácia legalmente prevista como causa de
suspensão da prescrição nem estando a suspensão da prescrição legalmente
prevista como um efeito necessário da declaração de contumácia, torna-se
evidente que − dentro dos limites do princípio garantístico da legalidade − não
se poderá considerar que a declaração de contumácia (enquanto acto
normativamente previsto no artigo 336º do Código de Processo Penal) constituía
já à luz da redacção originária do artigo 119º, nº 1, do Código Penal uma causa
legalmente prevista de suspensão da prescrição.
Não foi, por isso, respeitado o princípio da legalidade criminal
constitucionalmente consagrado enquanto princípio-garantia “directa e
imediatamente aplicável aos cidadãos”.
III
Decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional declara, com
força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do disposto no
artigo 29º, nºs 1 e 3, da Constituição, da norma extraída das disposições
conjugadas do artigo 119º, nº 1, alínea a), do Código Penal e do artigo 336º, nº
1, do Código de Processo Penal, ambos na redacção originária, na interpretação
segundo a qual a prescrição do procedimento criminal se suspende com a
declaração de contumácia.
Lisboa, 12 de Março de 2008
Maria Lúcia Amaral
Maria João Antunes
João Cura Mariano
Joaquim de Sousa Ribeiro
Mário José de Araújo Torres
Carlos Fernandes Cadilha
José Borges Soeiro (vencido, relativamente ao conhecimento, de harmonia com
a declaração de voto que junto).
Carlos Pamplona de Oliveira –
- Vencido conforme declaração.
Gil Galvão (vencido, conforme declaração junta)
Vítor Gomes (vencido, conforme declaração anexa).
Ana Maria Guerra Martins (vencida quanto ao conhecimento e quanto ao fundo, no
essencial, pelos fundamentos constantes da declaração de voto do Exmo. Senhor
Conselheiro Vice – Presidente, para a qual remeto).
Benjamim Rodrigues (vencido nos termos da declaração anexa)
Rui Manuel Moura Ramos
VOTO DE VENCIDO
Vencido, quanto ao conhecimento da questão de constitucionalidade, pois que, na
linha da jurisprudência, até há pouco maioritária, deste Tribunal postulava que
não constitui questão normativa a que, em áreas constitucionalmente abrangidas
pelo princípio da legalidade, na sua vertente de tipicidade (portanto, nos
campos do direito fiscal e do direito penal), se traduz na sindicância do
processo interpretativo efectuado pela instância recorrida extravasando, por
conseguinte, as competências que lhe assistem em sede de fiscalização concreta
da constitucionalidade.
Como se escreveu no Acórdão n.º 331/2003 (publicado no Diário da República, II
Série, de 17 de Outubro), a propósito de questão semelhante à dos autos, “em
rectas contas, aquilo que o juiz a quo veio a considerar desarmónico com a lei
fundamental foi uma interpretação dada a um dado conjunto normativo (…) e da
qual resultava, ao fim e ao resto, um entendimento que extravasava o campo
semântico natural dos conceitos jurídicos utilizados pelo legislador, o que, por
consequenciar uma interpretação ‘extensiva’ ou ‘analógica’, conflituaria com o
princípio da legalidade criminal. Ora, se assim é, então haverá que concluir-se
que aquilo que, verdadeiramente, foi censurado por aquele juiz foi, não o
confronto directo com a Constituição (…) mas sim a determinação do âmbito
aplicativo que a jurisprudência dos tribunais (ou de alguns tribunais) deu
àquele mesmo conjunto normativo.”
O problema da concretização da competência do Tribunal Constitucional para
conhecer de questões atinentes à violação do princípio da legalidade penal ou
fiscal tem sido, como se disse, objecto de díspares abordagens na jurisprudência
constitucional.
No entanto, embora com votos de vencido, nas duas ocasiões em que o Plenário se
pronunciou sobre esta questão, vingou a tese de que não assiste competência
àquele sempre que o objecto do recurso incida já não sobre uma norma ou segmento
normativo mas sobre o resultado de actividade hermenêutica desenvolvida pelo
Tribunal a quo cujo resultado extravasa, mercê de interpretação extensiva ou
analógica, o campo semântico dos conceitos jurídicos mobilizados pelo
legislador.
Assim, conforme se decidiu no Acórdão n.º 674/99 (publicado no Diário da
República, II Série, de 25 de Fevereiro de 2000),
“ […] mesmo que se entendesse que este Tribunal ainda era competente para
conhecer das questões de inconstitucionalidade resultantes do facto de se ter
procedido a uma constitucionalmente vedada integração analógica ou a uma
operação equivalente, designadamente a uma interpretação ‘baseada em raciocínios
analógicos’, o que sempre se terá por excluído é que o Tribunal Constitucional
possa sindicar eventuais interpretações tidas por erróneas, efectuadas pelos
tribunais comuns, com fundamento em violação do princípio da legalidade. […]”
Exarou-se, ainda, no aludido aresto:
“ […] Aliás, se assim não fosse, o Tribunal Constitucional passaria a controlar,
em todos os casos, a interpretação judicial das normas penais (ou fiscais), já
que a todas as interpretações consideradas erróneas pelos recorrentes poderia
ser assacada a violação do princípio da legalidade em matéria penal (ou fiscal).
E, em boa verdade, por identidade lógica de raciocínio, o Tribunal
Constitucional, por um ínvio caminho, teria que se confrontar com a necessidade
de sindicar toda a actividade interpretativa das leis a que necessariamente se
dedicam os tribunais – designadamente os tribunais supremos de cada uma das
respectivas ordens –, uma vez que seria sempre possível atacar uma norma
legislativa, quando interpretada de forma a exceder o seu ‘sentido natural’ (e
qual é ele, em cada caso concreto?), com base em violação do princípio da
separação de poderes, porque mero produto de criação judicial, em contradição
com a vontade real do legislador; e, outrossim, sempre que uma tal interpretação
atingisse norma sobre matéria da competência legislativa reservada da Assembleia
da República, ainda se poderia detectar cumulativamente, nessa mesma ordem de
ideias, a existência de uma inconstitucionalidade orgânica.
Ora, um tal entendimento – alargando de tal forma o âmbito de competência do
Tribunal Constitucional – deve ser repudiado, porque conflituaria com o sistema
de fiscalização da constitucionalidade, tal como se encontra desenhado na Lei
Fundamental, dado que esvaziaria praticamente de conteúdo a restrição dos
recursos de constitucionalidade ao conhecimento das questões de
inconstitucionalidade normativa.”
Com efeito, e de forma semelhante à decidida no Acórdão n.º 674/99, que vimos
acompanhando, posição que viria a ser retomada no Acórdão n.º 196/2003, também
do Plenário (publicado no Diário da República, II Série, de 16 de Outubro de
2003), para ser posteriormente contrariada pelo Acórdão n.º 110/2007 (publicado
no Diário da República, II Série, de 20 de Março de 2007), o que se questiona,
nos presentes autos, não é que o conteúdo das normas, com a interpretação
adoptada, seja compatível com o texto constitucional. O que se questiona é
tão-somente que o julgador possa alcançar esse mesmo conteúdo normativo através
de um processo interpretativo, já que, ao fazê-lo através de uma forma
desrespeitadora dos limites fixados à interpretação da lei criminal, violaria o
princípio da legalidade penal.
Deste modo, e como referiu o Conselheiro Benjamim Rodrigues, na declaração de
voto aposta ao Acórdão n.º 110/2007, citado,
“(…) não constitui uma questão de constitucionalidade normativa a apreciação da
correcção do processo hermenêutico desenvolvido pelo tribunal a quo, tendente a
determinar o sentido das normas, bem como do resultado a que o mesmo chegou. O
princípio da legalidade penal ou (fiscal) opera como mero limite constitucional
à admissibilidade do resultado interpretativo a que se chegou no processo de
interpretação, obrigando o intérprete a excluir aqueles resultados que não
tenham na letra da lei um mínimo de correspondência verbal. Deste modo, ele não
é portador de qualquer sentido axiológico substancial com o qual possa ser
contrastado directamente certa norma de direito infraconstitucional, para
aferir, da sua validade, mas tão só para excluir o resultado de um processo
concreto de conhecimento judicial da norma.”
Assim, entendendo-se que, no caso dos autos, não está em causa uma verdadeira
questão de constitucionalidade normativa, mas apenas a sindicância do resultado
alcançado pelo processo interpretativo efectuado pelo Tribunal a quo, resultante
da leitura combinada dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal e
336.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, nas respectivas redacções
originárias, falha o pressuposto de conhecimento do recurso interposto ao abrigo
do artigo 70.º, n.º 1, alínea a) da Lei do Tribunal Constitucional – recusa de
aplicação de norma com fundamento em inconstitucionalidade.
Lisboa, 12 de Março de 2008
José Borges Soeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido.
Entendi, em primeiro lugar, que o Tribunal não deveria tomar conhecimento do
recurso, cujo objecto não é, em minha opinião, uma norma, mas uma construção
dogmática de natureza jurisprudencial, ligada a peculiaridades do caso concreto,
que constitui, tipicamente, o veredicto judicial – artigo 70º n.º 1 alínea b) da
Lei n.º 28/82 de 15 de Novembro.
Uma vez que o Tribunal ultrapassou este obstáculo ao conhecimento do recurso,
encarando a impugnada determinação jurídica como uma regra dotada de suficiente
generalidade e abstracção e comportando, por isso, natureza normativa, divergi
do julgamento de inconstitucionalidade dessa 'norma' fundado apenas na sua
origem jurisprudencial. Na verdade, mesmo que se admita que, na área do direito
penal, o Tribunal pode intervir, em sede de fiscalização concreta, numa
perspectiva de violação do princípio da legalidade, o certo é que os tribunais
não estão constitucionalmente impedidos de, no cumprimento da tarefa de
aplicação concreta de normas, adoptarem determinações genéricas retiradas do
sistema, desde que o resultado dessas operações não concretize violação de lei.
Ora, no caso concreto, não só se apura que a norma 'criada' não é materialmente
desconforme com a Constituição, como se verifica que, estando expressamente
motivada no Assento n.º 10/2000 (DR, 1ª série-A de 10 de Novembro de 2000),
representa, afinal, a aplicação de um instrumento jurídico manifestamente apto a
validamente criar a 'regra' que constituiu o objecto do recurso.
Em suma, entendi que a norma não se mostra desconforme com os n.ºs 1 e 3 do
artigo 29.º da Constituição.
Carlos Pamplona de Oliveira
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei vencido o presente acórdão.
Em primeiro lugar, quanto ao conhecimento do recurso, no essencial, pelas razões
constantes, entre muitos outros, dos acórdãos 674/99, 331/2003 e 336/2003,
entendendo que não constitui uma questão de constitucionalidade normativa, sobre
a qual possam recair os poderes cognitivos do Tribunal Constitucional, a
fiscalização de um alegado processo interpretativo que conduziria a uma
aplicação de uma norma que, por força do princípio da legalidade penal,
ultrapassasse o campo semântico dos conceitos que o legislador penal terá
utilizado; ou seja, entendendo que não é constitucionalmente permitido a este
Tribunal a verificação da ocorrência de uma alegada interpretação («extensiva»,
«analógica» ou «actualista») de uma norma penal, em invocada colisão com os
princípios da legalidade e da tipicidade.
Na sequência, porque, não sendo o alegado processo interpretativo susceptível de
ser sindicado por este Tribunal, está o mesmo, então, confrontado com uma norma
– assumida como um dado - que, pura e simplesmente, afirma que a declaração de
contumácia suspende a prescrição. Ora, quanto a uma norma com um tal teor
entendo que de nenhuma inconstitucionalidade padece.
Gil Galvão
DECLARAÇÃO DE VOTO
Vencido.
1. Pelo essencial das razões em que se sustenta a linha jurisprudencial
materializada, por último, no acórdão 524/2007 que versou sobre a questão agora
em apreciação, entendo não constituir questão de constitucionalidade normativa,
susceptível de ser conhecida em recurso de fiscalização concreta pelo Tribunal
Constitucional e, consequentemente, também não poder ser objecto de apreciação
com vista à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral ao
abrigo do artigo 82.º da LTC, saber se implica violação do princípio
constitucional da legalidade criminal a interpretação das disposições conjugadas
dos artigos 119.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal de 1982 e do artigo 336.º,
n.º 1, do Código Penal, na sua redacção originária, no sentido de que a
contumácia era causa de suspensão do procedimento criminal. Nos termos em que a
questão é colocada, não se pretende censurar uma deficiência estrutural dos
enunciados normativos dos preceitos em causa para cumprir as exigências
constitucionais do princípio da legalidade (as exigências acrescidas da
determinabilidade da lei em matéria penal). Nem sequer é objecto de apreciação
uma norma (ou uma determinada interpretação dela pelos tribunais, ainda que
implícita) que verse sobre os critérios de interpretação da lei penal (v. gr.
artigo 1.º do Código Penal) a propósito da qual se discuta se habilita os
tribunais à aplicação das normas penais de modo que possa contrariar o princípio
constitucional da legalidade, designadamente, a possibilidade de usar certos
modos de interpretação ou a analogia em determinado domínio. É certo que a
apreciação da questão submetida tem por pressuposto a resposta positiva à
questão da inclusão da regulação da prescrição do procedimento criminal no
âmbito dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da Constituição, mas não é essa a questão
constitucional principal. Apesar do esforço de afinação categorial a que o
acórdão procedeu, o Tribunal acabou por ter de apreciar se determinada
interpretação conferida pelos tribunais comuns a certo conjunto normativo (a
interpretação que fez vencimento no Assento n.º 10/2000, do Supremo Tribunal de
Justiça) é errónea com fundamento em violação do princípio da legalidade. Aquilo
que se está a julgar desconforme à Constituição é o percurso hermenêutico que
está na génese da determinação desse sentido normativo e não o resultado dessa
actividade interpretativa dos tribunais. O que o Tribunal é chamado a decidir é
se o sistema de direito ordinário previa determinada causa de suspensão da
prescrição e não se podia prevê-la.
2. Ultrapassada esta questão, também não acompanho o julgamento de
inconstitucionalidade a que se chegou.
Adiro às razões do referido Assento n.º 10/2000, que me parece ter determinado o
sentido normativo questionado por um processo hermenêutico que não colide com as
exigências de certeza que decorrem dos n.ºs 1 e 3 do artigo 29.º da
Constituição. A conclusão de que a contumácia era causa de suspensão da
prescrição é obtida por um processo interpretativo que ainda se contém nos
limites da interpretação extensiva, método que não é vedado pelas referidas
normas constitucionais, pelo menos relativamente à matéria da prescrição do
procedimento criminal. Aceita-se que o fundamento de segurança jurídica do
princípio da legalidade impõe que o intérprete seja particularmente cauteloso na
determinação do “significado literal possível” dos enunciados legais in mala
partem no direito penal. Porém, no domínio da prescrição do procedimento, sem
contestar a natureza substantiva do instituto, a exigência de exacta
cognoscibilidade por parte do agente (seguramente quanto às representações no
momento da prática do facto, mas também no momento da ocorrência do evento que
interfere com a contagem do prazo) é menos intensa do que sucede relativamente
aos elementos cobertos pelos ditames da tipicidade. Não estamos perante normas
directamente ordenadoras do comportamento do agente (modelos negativos de
comportamento), cujo menor grau de certeza (ou cognoscibilidade) colida
intoleravelmente com a tutela da confiança, da liberdade e da segurança, como
sucede com as normas que respeitem à descrição da matéria proibida ou, mais
amplamente, com as normas penais positivas, isto é, as normas que geram ou
agravam a responsabilidade.
Além do que se diz no Assento, relembro a génese do artigo 119.º do Código Penal
na sua versão originária, que demonstra que a suspensão do processo imposta por
uma disposição especial da lei foi querida pelo legislador como causa de
suspensão da prescrição. Este artigo corresponde, com ligeiras alterações (a
comentarística dos primeiros tempos de vigência do Código Penal de 1982 é assim
que se lhe refere – cfr. maia gonçalves, Código Penal Português, Anotado, 1983,
pág. 187), ao artigo 110.º do projecto do Código Penal segundo o qual “[a]
prescrição suspende-se durante o tempo em que: 1.º - O procedimento criminal não
pode iniciar-se ou continuar por falta de uma autorização legal ou de uma
sentença prévia a proferir por tribunal não penal, por efeito da devolução de
uma questão prejudicial para um juízo não penal, bem como em todos os casos em
que a suspensão do processo penal é imposta por uma disposição especial da lei;
[itálico aditado]. Esta opção de erigir em causa de suspensão da prescrição os
casos de suspensão do procedimento por determinação especial da lei não mereceu
nenhuma objecção substantiva no seio da Comissão revisora (cfr. Actas das
Sessões da Comissão Revisora do Código Penal, Parte Geral, I volume, págs.
223-227). Apenas foi entendido que “a redacção da 2.º parte deste número (“bem
como”) não joga certo com o corpo do artigo”. E, em conformidade, 'a Comissão
expendeu o desejo que em uma futura revisão fosse considerada a necessidade de
concatenar perfeitamente a fórmula do proémio com a da 2.ª parte do n.º 1.º
(“bem como …”). Embora de modo imperfeito, a fórmula que foi encontrada na
versão final, deslocando a previsão para o corpo do preceito, ainda dá um mínimo
de correspondência verbal a esta intenção legislativa de fazer corresponder as
causas especiais de suspensão do processo penal a causas de suspensão do prazo
de prescrição do procedimento criminal (Refira-se que a circunstância de a
declaração de contumácia ser figura ao tempo desconhecida pelo ordenamento e,
consequentemente, não ser qua tale prevista pelo legislador penal de 1982, não
obsta à sua inclusão na remissão aberta para causas legais de suspensão
constante do n.º 1 do artigo 119.º do Código Penal, como se decidiu no acórdão
n.º 449/02, publicado no Diário da República, II Série, de 12 de Dezembro de
2002).
Vítor Gomes
DECLARAÇÃO DE VOTO
1 – Votámos vencido quanto ao conhecimento e quanto ao fundo, na esteira da
maioria dos acórdãos do Tribunal Constitucional que versaram sobre a matéria, e
que são muitos, entre os quais lembramos os n.ºs 674/99, 196/03, 197/03.
2 – Na verdade, entendemos, de uma parte, que não se configura uma
questão de constitucionalidade normativa, mas de sindicabilidade da decisão
judicial em si própria, e, do outro, que o resultado interpretativo a que chegou
o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de Fixação de Jurisprudência, n.º
10/2000 respeita inteiramente o princípio da legalidade criminal condensado no
art.º 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição.
3 – Não negamos a configuração do princípio da legalidade criminal
como uma garantia fundamental dos cidadãos no Estado de direito democrático que
o acórdão subscreve e o valor axiológico que o mesmo comporta.
Mas esse valor axiológico, como garantia de defesa contra o Estado,
opera no plano da conformação da lei penal (não podendo o legislador ignorá-lo
quando, na criação da lei, pretenda criminalizar acções e omissões e estatuir a
respectiva pena) e, decorrentemente, no da determinação do seu sentido pelos
tribunais que a aplicam.
Nesse sentido reafirmamos aqui o que escrevemos no voto de vencido
aposto ao Acórdão n.º 110/2007: “O princípio da legalidade penal (ou fiscal)
opera como mero limite constitucional à admissibilidade do resultado
interpretativo a que se chegou no processo de interpretação, obrigando o
intérprete a excluir aqueles resultados que não tenham na letra da lei um mínimo
de correspondência verbal”.
Sendo assim, esse princípio manifesta a efectividade da sua força
constitucionalmente vinculante no momento em que o órgão que aplica a lei
criminal tem de responder à questão sobre se existe lei anterior que declare
punível a acção ou omissão e comine a respectiva pena.
Ora, esse momento é um momento da decisão judicial e não um momento
normativo. É o momento em que o juiz, no exercício da sua actividade
judicativo-hermenêutica, procede à determinação da lei ordinária aplicável ao
caso, à fixação do sentido da mesma face aos textos legais. É claro que,
tratando-se de um juízo objectivamente externado, ele pode ser repetido. Mas
repetido apenas pelo tribunal superior da respectiva instância judicial.
Nesta perspectiva, o controlo do resultado interpretativo obtido
como tendo expressão verbal no texto da lei criminal por parte da decisão
judicial não é uma questão normativa, mas uma questão de controlo da correcção
do juízo judicial desenvolvido, dentro da aplicação dos cânones que regem a
actividade hermenêutica, com vista à fixação do sentido emergente do texto
verbal da lei criminal infraconstitucional.
Dir-se-á que, vindo a conclusão desse juízo a ser fixada em termos
gerais e abstractos, como sucede no Acórdão de Fixação de Jurisprudência, a
questão se converte numa questão normativa, em termos semelhantes aos que se
passam com a interpretação concretamente dada a certa norma legal (“o preceito
interpretado no sentido de que…”).
Mas se ainda consentimos que a questão possa ser vista deste ângulo,
o certo é que uma tal conclusão nunca autorizará depois que o problema de
constitucionalidade se resolva com completo desconhecimento do processo genético
de obtenção desse resultado interpretativo ou seja, com o desconhecimento de que
o tribunal chegou a essa norma em face do texto da lei criminal e que o vê nela
exprimido em termos correspondentes. Chegados a esse ponto, a única coisa que
será permitido é perguntar se, interpretado o texto da lei criminal em certo
sentido e concluído que esse sentido tem no texto da lei correspondência verbal,
essa acepção do preceito criminal respeita ou não o princípio da legalidade
criminal, entendido este com a axiologia retratada no acórdão.
Ora, não é essa a pergunta que o acórdão fez. O que o acórdão fez
foi demandar se o critério normativo que foi determinado [no Acórdão de fixação
de jurisprudência, por via interpretativa] encontra no texto da lei ordinária o
necessário suporte verbal.
E assim sendo, o acórdão não fez outra coisa do que sindicar a
correcção do processo intelectual de apuramento do sentido da lei levado a cabo
pelo tribunal que fixou o critério normativo em causa.
O acórdão não efectuou qualquer confronto entre o critério normativo
e o parâmetro constitucional cujo sentido vinculante previamente determinou. O
acórdão resolveu a questão que disse ser de constitucionalidade no plano do
direito infraconstitucional, corrigindo o resultado interpretativo e a
actividade hermenêutica desenvolvida pelo tribunal sobre o texto da lei
ordinária. O Tribunal Constitucional corrigiu, pois, o juízo de determinação do
sentido da lei infraconstitucional, fazendo prevalecer o seu juízo
interpretativo relativo à lei ordinária sobre o do Supremo Tribunal de Justiça.
O Tribunal Constitucional julgou segundo os termos de um recurso de amparo que a
nossa Constituição não prevê.
4 – Mas, independentemente de não se tratar de uma questão de
constitucionalidade normativa, temos, também, para nós que a correcta
interpretação da lei infraconstitucional é a que foi levada a cabo pelo Acórdão
de Fixação de Jurisprudência do STJ e não aquela que é sufragada no acórdão a
que esta declaração está apendiculada, pelas razões que nele são densamente
expendidas.
Benjamim Rodrigues
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