|
Processo nº 1143/07
2ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., foi condenado por sentença proferida em 7-3-2007, no processo sumário nº
29/06.5GTBGC, do Tribunal Judicial de Macedo de Cavaleiros, na pena de 4 meses
de prisão, pela prática de um crime de desobediência qualificada, p.p. pelo
artigo 348.º, n.º 2, do C.P., conjugado com o artigo 138.º, n.º 2, do Código da
Estrada.
O arguido recorreu desta sentença para o Tribunal da Relação do Porto que, por
acórdão de 3-10-2007, concedeu parcialmente provimento ao recurso interposto,
substituindo a pena aplicada na 1ª instância, por prisão em dias livres, fixando
24 períodos de privação de liberdade, correspondentes a fins de semana.
O arguido recorreu deste acórdão para o Tribunal Constitucional, nos termos do
artigo 70.º, n.º 1, b), da LTC, com o seguinte fundamento:
“…pretende ver-se apreciada a inconstitucionalidade do art. 340.º, do Código de
Processo Penal e a do art.º 70.º do Código Penal, mormente na interpretação que
lhes foi conferida pela Douta decisão recorrida.
Considera o recorrente que foi violado o direito de defesa do arguido,
consagrado no art.º 32.º, n.º 1 e o art.º 27.º, ambos da Constituição da
República Portuguesa”.
Notificado para explicitar quais as interpretações normativas contidas na
decisão recorrida cuja inconstitucionalidade pretendia ver sindicadas, o
recorrente apresentou requerimento com o seguinte teor:
“Vem procurando corresponder ao determinado, expor e requerer o seguinte:
Crê-se antes de mais quando se alude no douto despacho “Explicitar as
interpretações normativas suscitadas no Acórdão recorrido, cuja
constitucionalidade pretende ver apreciada”.
Quererá aludir à norma, mas de todo o modo, se de facto se pretende a
identificação do Acórdão sempre terá que referir-se que a inconstitucionalidade
que se detecta sobressai do acórdão, dado que analisados os preceitos legais em
questão, isto é, “se a audição ou não da prova testemunhal entretanto arrolada
estava postergada pelo acórdão inicial desta relação é questão que não nos
parece ter solução unívoca”.
“Em nossa opinião, não vemos razão evidente, para esse afastamento...”
“Seja como for, essa resposta não é aqui essência fl. 8 da Douta Sentença.”
“A questão já só poderá ser suscitada em sede de eventual insuficiência”
Isto é referido no douto acórdão fls. 81.
Assim no acórdão refere que a não inquirição de testemunhas arroladas pelo
arguido, afigura-se não poder ter solução diversa da preconizada pelo Senhor
Procurador Geral Adjunto no seu parecer, ou seja, aponta para uma nulidade que
o arguido não está em tempo de invocar.
Tal como também o acórdão.
Tal interpretação aplicação censurada, no que também com a decisão do Tribunal
da Relação do Porto está profusamente há que reconhecer, plasmado na apreciação
da inconstitucionalidade suscitada.
Vem ainda esclarecer a inconstitucionalidade que se pretende ver aferida,
contudo com a aplicação e aplicação imperativa de o facto de não ser ouvida a
prova testemunhal não violar o direito de defesa do arguido.
No modesto alvitre do Recorrente, o Tribunal ao não permitir o inquirição de
testemunhas e no momento da aplicação da pena de prisão de liberdade e não em
momento ulterior, cabe ao Tribunal ouvir toda o prova e aí interpretar e aplicar
os referidos preceitos com a observância pelos princípios penais e
constitucionais, designadamente quanto a estes últimos, os conceitos do artigo
8º, 13º especificamente n.º 2 a 18, 26º, 27º, 32º, 71º e 72º da C.R.P.
Também o Tribunal da Relação no douto acórdão, ao aplicar a pena privativa de
liberdade, viola os princípios da proporcionalidade e da adequação, logo
pretende-se ver-se apreciado o artigo 340º C.P.P. e 70º C.P., por violação do
direito de defesa do arguido, consagrado no artigo 32º, n.º 1 e 27º da C.R.P.
O que não sucedeu, mercê de uma imperatividade observada decorrente das normas
atrás referidas e que, modestamente se reputa inconstitucional.
Termos em que se conclui como no requerimento de interposição de Recurso.”
Foi proferida decisão sumária em 30-1-2008 de não conhecimento do recurso, com a
seguinte fundamentação:
“1. Dos requisitos de admissibilidade do recurso constitucional
Importa começar por recordar que no sistema português de fiscalização de
constitucionalidade a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a
interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade
imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A
distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a
interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão
judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida
a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto
em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de
aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a
aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do
caso concreto.
Tratando‑se de recurso interposto ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo
70.º, da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende
ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de
inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo
processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão
recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo
72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio
decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo
recorrente.
2. Da inadmissibilidade de apreciação das questões colocadas
O recorrente invoca que a decisão recorrida efectuou interpretações dos artigos
340.º, do C.P.P., e 70.º, do C.P., que são desconformes à Constituição.
Conforme tem vido o Tribunal Constitucional a enunciar insistentemente,
questionando-se o sentido de certas interpretações de normas pretensamente
sustentadas pela decisão recorrida e não o conteúdo abstracto destas, tem o
recorrente o ónus de precisar, com clareza, essas interpretações, uma vez que é
essa indicação que delimita inicialmente o objecto do recurso.
Apesar do recorrente não ter primado pela clareza ao ser-lhe solicitada a
explicitação exigível dos sentidos interpretativos contidos na decisão
recorrida, cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada, é discernível,
num esforço de compreensão, serem as seguintes as interpretações questionadas:
- a do artigo 340.º, do C.P.P., no sentido de que o tribunal pode não permitir
a audição da prova testemunhal arrolada pelo arguido.
- a do artigo 70.º, do C.P., no sentido da aplicação de pena privativa de
liberdade.
2.1. Da alegada interpretação do artigo 340.º, do C.P.P.
Relativamente à primeira das interpretações questionadas lê-se o seguinte no
acórdão recorrido:
“A questão conexa com a não inquirição da prova testemunhal arrolada pelo
arguido, na sequência do reenvio parcial determinado por esta Relação,
afigura-se-nos não poder ter solução diversa da preconizada pelo Exm.º Sr.
Procurador-Geral Adjunto no seu parecer.
Com efeito, por decisão inicial de 6 de Abril de 2006, foi o ora recorrente
condenado na pena de quatro meses de prisão em razão do crime de desobediência
qualificada que lhe era imputado nestes autos, que assim se teve como
verificado.
Na sequência do recurso por si interposto, foi decidido então nesta Instância,
por acórdão prolatado em 8 de Novembro do mesmo ano, “o reenvio do processo para
novo julgamento limitado à averiguação dos concretos antecedentes criminais do
arguido, especialmente, da condenação sofrida em 21/12/2005, através de
certidão a pedir ao processo da condenação, e, se tal se mostrar viável, às
condições pessoais e de inserção social e profissional do recorrente”.
O processo baixou à 1.ª Instância, e em cumprimento do assim disposto, por
despacho proferido a fls. 132, foi solicitada a aludida certidão, do mesmo modo
que foi pedida aos serviços competentes a elaboração de relatório social
contemplando os aspectos mencionados na parte final do acórdão desta Relação.
O arguido arrola três testemunhas a fim de serem ouvidas em audiência, que foram
objecto de admissão a fls. 143.
Veio a suceder no entanto, que em julgamento, logo após a abertura da
respectiva sessão, a Mm.ª Juiz que presidia, proferiu o seguinte despacho:
“Compulsados os autos designadamente o teor do acórdão da Relação do Porto
constante de fls. 118 a 127, constata-se que no mesmo foi claramente
circunscrito o âmbito do julgamento a efectuar aos concretos antecedentes
criminais do arguido, e se tal se mostrar viável, às condições pessoais,
profissionais e sociais do mesmo.
Assim, (…) o despacho de fls. 143 dos autos, na parte em que admite o rol de
testemunhas de defesa, resulta de manifesto lapso, na medida em que o
acatamento do acórdão da Relação do Porto não o permite.
Assim determino a não inquirição das testemunhas arroladas pela defesa.
Notifique e desconvoque”.
A acta de audiência não regista qualquer reacção processual a esta comunicação,
tendo o “julgamento” prosseguido com a audição do arguido e alegações finais.
III – 3.2.) Se a audição ou não da prova testemunhal entretanto arrolada estava
postergada pelo acórdão inicial desta Relação é questão que não nos parece ter
solução unívoca.
Em nossa opinião, não vemos razões evidentes para esse afastamento, já que tudo
se reconduziria a um problema de “viabilidade” e esta, prima facie, não se
mostraria afastada, em termos de possibilidade, no contexto patenteado.
Seja como for, a resposta não é aqui essencial. É que ainda que fosse positiva,
a entender-se o contrário, e nessa medida a sua falta constituir omissão de
diligência reputada essencial para a descoberta da verdade (o que sem mais não
concedemos), haveria a mesma que ser alegada nos termos do art. 120.º, n.º 2,
al. d), e n.º 3, al.ªs a) e d), do Cód. Proc. Penal, pelo interessado nesse
próprio acto, pois a ele estava a assistir.
Não o tendo sido, o seu levantamento em sede de recurso é extemporânea, estando
assim sanada a eventual correspondente nulidade (cfr. Ac. do STJ de 18/06/1997,
no proc. n.º 55/97, citado em Simas Santos – Leal-Henriques, Código de Processo
Penal Anotado, Rei dos Livros, II Vol., pág.ª 349).
A questão já só poderá ser suscitada em sede de uma eventual insuficiência da
matéria de facto para a decisão, embora sem espaço de procedência, pois a este
nível (factualidade atinente às condições pessoais e de inserção social e
profissional do recorrente), basta comparar a primeira sentença com a que depois
foi elaborada na sequência do anterior acórdão desta Relação, para se alcançarem
as diferenças.”
Da leitura deste excerto da fundamentação do acórdão recorrido resulta, com
clareza, que o Tribunal da Relação do Porto não baseou a sua decisão de
improcedência do recurso por entender ser possível ao Tribunal de 1ª instância
não permitir a audição da prova testemunhal arrolada pelo arguido, mas sim no
facto deste não ter reagido oportunamente perante tal posição do Tribunal de 1ª
instância, o que sanou a irregularidade cometida.
A interpretação do artigo 340.º, do C.P.P., apontada de inconstitucional pelo
recorrente não foi, pois, fundamento da decisão recorrida, pelo que não se
mostra preenchido o requisito essencial ao conhecimento da questão de
constitucionalidade, de que a interpretação questionada constitua ratio
decidendi da decisão recorrida.
2.2. Da alegada interpretação do artigo 70.º, do C.P.
O recorrente pretende questionar ainda a aplicação, no caso concreto, pelo
tribunal recorrido de pena efectiva privativa da liberdade, quando podia ter
optado por uma pena suspensa.
Conforme acima se referiu a competência atribuída ao Tribunal Constitucional
cinge‑se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões
de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a
interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade
imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Não
estando consagrado entre nós um recurso do tipo de amparo espanhol ou da queixa
constitucional alemã, não pode o Tribunal Constitucional apreciar a impugnação
de constitucionalidade imputada directamente à decisão do caso sub iudicio, como
sucede nesta situação, pelo que também esta questão não pode ser conhecida.
2.3. Conclusão
Não podendo o Tribunal Constitucional apreciar qualquer uma das questões de
inconstitucionalidade suscitadas pelo Recorrente, deve ser proferida decisão
sumária nesse sentido, nos termos do art. 78.º-A, nº 1, da LTC.”
Desta decisão vem agora o recorrente reclamar, com os seguintes argumentos:
“…4) Salvo o devido respeito, entende o Reclamante que as questões não foram bem
perspectivadas na decisão tomada.
5) Com efeito, o que o Reclamante quis, e quer, colocar em causa foi a
interpretação dada pelo Tribunal da Relação do Porto, aos art. 340º do C. P. P.
e art. 70º do C. P., uma vez que são estes que determinaram a decisão tomada.
6) Ora, das decisões dos Tribunais relativas às questões de
inconstitucionalidade cabe recurso para o Tribunal Constitucional.
7) E, sendo certo que o objecto do recurso não é a decisão do Tribunal a quo sob
o mérito da questão, mas sim o segmento da decisão judicial relativo à questão
da inconstitucionalidade, todavia trata-se sempre de uma norma
interpretativamente mediatizada pela decisão recorrida, porque a norma deve ser
apreciada no recurso segundo a interpretação que lhe foi dada nessa decisão.
8) O caso presente é um recurso de decisão que aplica várias normas, não
obstante a sua inconstitucionalidade ter sido arguida no processo, efectuado
pela parte de acordo com as regras gerais do processo e é facultativo.
9) Quanto à interpretação do art. 340º do C. P. P.
1ª O reclamante foi condenado na pena de quatro meses de prisão efectiva, pela
prática de um crime de desobediência qualificada, p. e p. pelo art. 343º do C.
P., conjugado com o art. 138º nº 2.
2º Não foi inquirida a prova testemunhal que iria depor sobre as condições
pessoais e de inserção social e profissional do reclamante.
3º O Tribunal apenas se interessou em apurar o currículo do reclamante, para
posteriormente lhe aplicar uma pena de prisão efectiva, sem que atendesse à
prova que mesmo pretendia produzir em sua defesa.
4º Mostrando-se, deste modo, violado o direito de defesa do reclamante.
5ºA interpretação que se faça do artigo 340º do Código de Processo Penal no
sentido de impedir a produção de prova testemunhal relativamente às condições
pessoais do reclamante, determinantes na escolhas correcta da pena e sua medida,
como sucedeu no caso em apreço, viola o art. 32º, nº 1 da CRP e é por essa razão
inconstitucional.
10) Quanto à interpretação do art. 70º do C. P.
1º Decorre da Constituição da Republica Portuguesa (art. 27º) e da lei penal
(art. 70º e sgs. do C. P.) a preferência pelas penas não privativas da
liberdade.
2º Assim sendo, o Tribunal a quo ao aplicar uma pena de quatro meses de prisão
efectiva ao reclamante, e posteriormente de 24 fins-de-semana, quando a natureza
do crime, o grau de ilicitude e a culpa, cujo dolo não poderá considerar-se mais
do que médio, sempre deveriam ter conduzido a uma pena não privativa da
liberdade, ou seja, reduzida ao seu mínimo legal, a uma pena de prisão suspensa
ou, aplicada uma pena de prisão, a sua substituição por prestação de trabalho a
favor da comunidade, violou os art. 70º e 71º do C. P. (e com eles o art. 27 da
CRP).
Termos em que,
Requer-se a V. Exas. se dignem a resolver a admissão do recurso em devido tempo
interposto.”
O Ministério Público respondeu nos seguintes termos:
“A presente reclamação é manifestamente improcedente.
Na verdade, a argumentação do reclamante em nada afecta os fundamentos da
decisão reclamada, no que toca à evidente inverificação dos pressupostos do
recurso interposto.”.
*
Fundamentação
O reclamante defende que as questões de constitucionalidade por si colocadas
neste recurso respeitam a interpretações normativas dos artigos 340.º, do
C.P.P., e 70.º, do C.P., que fundamentaram a decisão recorrida.
Contudo, como resulta, com evidente clareza, da fundamentação da decisão
reclamada, a invocada interpretação normativa do artigo 340.º, do C.P.P., não se
mostra perfilhada pela decisão recorrida e a desconformidade constitucional
imputada a uma suposta interpretação do artigo 70.º, do C.P., reconduz-se à
própria decisão em si mesmo considerada.
Não constituindo a primeira das interpretações questionadas ratio decidendi da
decisão recorrida e não integrando a segunda uma verdadeira interpretação
normativa, revela-se correcta a decisão de não conhecimento do mérito do
recurso, pelo que deve ser indeferida a reclamação apresentada.
*
Decisão
Pelas razões expostas indefere-se a reclamação apresentada por A. da decisão
sumária proferida em 30-1-2008.
*
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta,
ponderados os critérios enunciados no artigo 9.º, nº 1, do D.L. n.º 303/98, de 7
de Outubro (artigo 7.º, do mesmo diploma).
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
João Cura Mariano
Mário José de Araújo Torres
Rui Manuel Moura Ramos
|