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Processo n.º 469/07
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. No processo de instrução criminal n.º 30/03, que segue termos no Tribunal
judicial da comarca de Vieira de Minho, A. e B. foram pronunciados pelo crime de
infracção das regras de construção previsto e punido pelo artigo 277º, n.º 1,
alínea a), do Código Penal.
Em fundamentação do despacho de pronúncia, o juiz de instrução diz, além do
mais, o seguinte:
Nos termos do artigo 277º do Código Penal quem no âmbito da sua actividade
profissional infringir regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser
observadas no planeamento, direcção ou execução de construção, demolição ou
instalação ou na sua modificação, e criar deste modo perigo para a vida ou para
a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor
elevado, por negligência, é punido com pena de prisão até cinco anos”
Acrescentando o artigo 285º do Código Penal, que do facto resultar a morte ou
ofensa á integridade física grave de outra pessoa, o agente é punido com pena
que ao caso caberia, agravada de um terço nos seus limites mínimo e máximo”
Ora sobejamente resultam indícios fortes de que os arguidos, ao procederem ao
descalçamento da base do escombro, que ficou sem apoio seguro; ao ignorarem
altura da coluna de água sobre o escombro, contra o método aprovado, não
informando do facto a equipa de segurança, nem a equipa que tinha aprovado o
projecto; não voltando a bombear a água que ia acumulando na CES, omitiram
regras técnicas básicas criando deste modo perigo para a vida e integridade
física de terceiros.
Pelo crime de vêm acusados aludido no artigo 277º do Código Penal, resultam, dos
elementos de prova recolhidos na fase de inquérito e que não foram postos em
causa pela instrução, indícios seguros e suficientes para se poderem imputar aos
arguidos, objectiva e subjectivamente, os elementos típicos de tal crime.
Assim, e nos ternos do artigo 307º, n° 1. do Código Processo Penal, porque se
verificam os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena,
pronuncio os arguidos, pelos fundamentos de facto e de direito constantes da
douta acusação deduzida pelo Digno Magistrado do Ministério Público, reproduzida
nos termos do artigo 207 n° 1 do Código processo Penal, — A., casado,
engenheiro, nascido aos 25.10.61, natural da freguesia de Stº. António dos
Olivais, concelho de Coimbra, filho de C. e de D., residente na Rua …, n°..,
Figueira da Foz e com domicílio profissional no … , …, Lugar de …, Ruivães,
Inconformados com o assim decidido, os arguidos vieram interpor recurso para o
Tribunal Constitucional, com fundamento no disposto na alínea b) do n.º 1 do
artigo 70° da Lei do Tribunal Constitucional, definindo como objecto do recurso
a inconstitucionalidade da norma do artigo 277. ° do Código Penal.
Notificados para completarem o requerimento de interposição de recurso com a
indicação, designadamente, da peça processual onde fora suscitada a questão da
inconstitucionalidade, os recorrentes vieram declarar que haviam invocado a
inconstitucionalidade da norma do citado artigo 277. ° do Código Penal nos
artigos 484º a 488º do requerimento de abertura de instrução.
Estando em causa uma decisão negativa de inconstitucionalidade, o juiz de
instrução considerou que o recurso para o Tribunal Constitucional apenas poderia
ser admitido após a exaustão dos meios recursórios normais, pelo que o rejeitou
por extemporaneidade. Porém, na sequência de reclamação contra o despacho de não
admissão do recurso, apresentada nos termos dos artigos 76º e 77º da Lei do
Tribunal Constitucional e que correu por apenso, foi este ulteriormente admitido
com efeito suspensivo e subida imediata nos próprios autos.
Nada tendo obstado ao prosseguimento do recurso, no Tribunal Constitucional, os
arguidos apresentaram as suas alegações em que concluem do seguinte modo:
1. Os ora Recorrentes foram pronunciados pela prática, em co-autoria material,
de um crime de infracção de regras de construção, dano em instalações e
perturbação de serviços, agravado pelo resultado, previsto e punível nos termos
das disposições conjugadas constantes dos arts. 277°, nº 1, alíneas a) e b), e
n.° 2, 285° e 144°, alínea b), do Código Penal.
2. O tipo incriminador em causa pressupõe a infracção a regras legais,
regulamentares ou técnicas.
3. Do despacho de pronúncia — bem assim como da acusação, que mesmo reproduz —
não consta do enquadramento jurídico-criminal dos factos que constituem o
objecto do processo específica referência quaisquer regras legais ou
regulamentares.
4. Pelo que aos Recorrentes apenas se poderá atribuir a infracção de regras
técnicas, único entendimento possível, dada a manifesta - impossibilidade de
subsunção de condutas à norma do art.° 277°, n.° 1, alíneas a) e b), do CP sem o
concomitante apelo à infracção de regras de qualquer uma das categorias a que
acima se aludiu.
5. Da leitura atenta da acusação/pronúncia, resulta que aos ora Recorrentes se
atribui a inobservância da metodologia aprovada para a execução dos trabalhos, o
que só poderá ser entendido como uma alusão à infracção de regras técnicas por
parte dos ora Recorrentes.
6. As normas constantes do art.° 277°, n.° 1, alíneas a) e b), in fine, do CP
foram, assim, interpretadas e aplicadas com o sentido interpretativo segundo o
qual a remissão naquelas normas operada para o domínio das regras técnicas é
susceptível de abranger métodos ou procedimentos ad hoc, concebidos e destinados
à execução de trabalhos concretos e singulares.
7. As mencionadas normas são normas penais em branco, porquanto remetem, na sua
previsão, para fonte não normativa, in casu, para regras técnicas.
8. Estas regras são, então, chamadas a integrar a previsão da norma penal, ao
abrigo de uma remissão dinâmica operada por esta norma para tais regras.
9. Esta remissão tem sido posta em causa pela Doutrina, nomeadamente por Bernd
SHÜNEMANN, que nela vê uma inadmissível violação dos princípios do Estado de
Direito, traduzida numa verdadeira atribuição de competência legislativa a
círculos ou meios não estaduais e, ainda, irreconciliável com o princípio
fundamental dA publicação das leis.
10. Por outro lado, a mencionado remissão é incompatível com o princípio nullum
crimen, nulla poena sine lege stricta, consagrado no art.° 29º., nºs. 1 e 3, da
CRP.
11.0 Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre a conformidade
das normas penais em branco com a Constituição.
12. Fê-lo nos Acórdãos nº 427/95, de 6 de Julho, e n.° 534/98, de 7 de Agosto,
os quais apreciaram, porém, normas legais que remetiam para normas
regulamentares, o que não sucede no caso em apreço nestes autos.
13. No Acórdão n.° 427/95, de 6 de Julho, este Venerando Tribunal Constitucional
elegeu como ratio decidendi o critério da concretização técnica, informativa e
não inovadora, segundo o qual a norma em branco conteria todo o conteúdo da
incriminação — o desvalor da acção proibida, o desvalor do resultado lesivo e a
identificação do bem jurídico protegido — não deixando “(...) a descoberto
qualquer elemento essencial para a compreensão da conduta proibida ou para o
controlo democrático da incriminação”.
14. Já o Acórdão n.° 534/98, de 7 de Agosto, assenta no que pode denominar-se o
critério do valor probatório da remissão: a norma complementar — infra-legal — é
entendida como encerrando um (mero) juízo técnico análogo ao da prova pericial.
15. A jurisprudência constante destes dois Doutos Acórdãos não pode colher no
caso ora sob recurso.
16. Com efeito, o desvalor da acção típica no caso sub judice só logrará
alcançar-se através da integração da norma penal (em branco) pela regra técnica
infringida — é o que decorre do teor literal quer da alínea a) quer da alínea
b), in fine, do n.° 1 do preceito legal em referência.
17-Esta consideração, à luz do critério de solução acolhido no Acórdão nº.
427/95, de 6 de Julho, só pode conduzir à conclusão de que, no caso vertente, a
regra técnica complementar da norma penal se reveste de natureza inovadora,
interferindo materialmente na delimitação da conduta punível.
18. Isso implica, consequentemente, que as normas constantes do art.° 277º, nº
1, alíneas a) e b), in fine do CP, no segmento em que remetem a sua integração
para as regras técnicas, violam o princípio da legalidade e princípio da reserva
de lei formal, consagrados, respectivamente, nos arts. 29°, n.° 1, e 165°, n.°
1, alínea c), ambos da CRP.
19. Também o critério do valor probatório da remissão, subjacente ao juízo de
constitucionalidade do Acórdão n.° 534/98, de 7 de Agosto, é inaplicável neste
caso.
20. Em primeiro lugar, inexiste preceito legal equivalente ao do art.° 71.°, n.°
3, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro, expressamente invocado naquela
decisão.
21. Em segundo lugar, não se vê como, à luz da estrutura típica das previsões
constantes do art.º 277.°, n.° 1, alíneas a) e b), in fine, do CP, possa
entender-se o reenvio a que ali se procede para as regras técnicas como tendo um
alcance de mera regra de valoração de prova, com o sentido de uma prova pericial
antecipada.
22. Efectivamente, o reenvio tem necessariamente que operar em momento lógica e
ontologicamente prévio ao da valoração da prova, momento esse que é o do recorte
da factualidade típica. O que redunda no que atrás se deixou afirmado: a regra
técnica complementar da norma penal em branco — a regra técnica infringida
interfere materialmente na delimitação do ilícito típico, matéria reservada ao
império da lei formal.
23. Dever-se-á ainda sujeitar as normas constantes do art.° 277°, n.° 1, alíneas
a) e b), in fine, do CP a um segundo grau de apreciação de constitucionalidade.
24. Os trabalhos a cuja execução se procedia quando ocorreu o acidente que deu
origem aos autos-crime (remoção, do interior da chaminé de equilíbrio superior
da barragem de Venda Nova, de escombro com cerca de 79 m de altura) eram de
natureza singular, inseridos numa obra de inegável complexidade técnica, não
previstos no caderno de encargos, e para cuja execução não existiam quaisquer
procedimentos ou regras de execução e de segurança predefinidos.
25. A metodologia de execução da remoção do escombro foi definida pelo
Recorrente A., enquanto director da obra, sendo submetida à apreciação da dona
da obra e por esta aprovada.
26. É a alegada inobservância desta metodologia de execução dos trabalhos que,
nos nºs. 48, 49, 124, 125, 126 e 127 da acusação/pronúncia, parece fundamentar a
conclusão pela infracção de regras técnicas por parte dos ora Recorrentes.
27. Na decisão ora em recurso, as normas em apreciação são aplicadas e
interpretadas no sentido de que no âmbito da remissão legal para as regras
técnicas se compreende, igualmente, a inobservância de métodos ou procedimentos
ad hoc, concebidos e destinados à execução de trabalhos concretos e singulares.
28. Desta forma abre-se a porta a toda a sorte de arbítrios na aplicação das
citadas normas penais, porquanto mesmo a referência literal à infracção de
regras técnicas acaba por ser despojada de qualquer sentido material.
29. Com o assinalado sentido interpretativo, acaba, afinal, por prescindir da
referência a qualquer regra técnica!
30. As normas contidas no art.° 277°, n.° 1, alíneas a) e b), in fine, do CP, na
parte em que naquelas normas se remete para as regras técnicas, são
inconstitucionais, por violação dos princípios da legalidade e da reserva’ de
lei formal, consagrados, respectivamente, nos arts. 29°, n.° 1, e 165º, n.° 1,
alínea c), ambos da CRP, bem assim o são com o sentido interpretativo subjacente
à sua aplicação ao caso vertente.
Não houve contra-alegações.
O Exmo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se no sentido da
improcedência do recurso, por entender, em conclusão, que «a norma resultante do
artigo 277º, nº 1, alíneas a) e b), do Código Penal possui um grau suficiente de
clareza e determinabilidade, contendo em si todos os elementos essenciais e
relevantes que caracterizam o tipo legal de crime aí contemplado, não tendo sido
interpretada e aplicada em desconformidade com a Constituição».
No seu parecer suscitou, no entanto, também, uma questão prévia que, a proceder,
poderá obstar ao conhecimento do objecto do recurso, ao tecer as seguintes
considerações:
Um problema de indiciação na fase da pronúncia – ou de prova, na subsequente
fase de julgamento – não é deslocável para uma questão de constitucionalidade.
Esta circunscreve-se à validade e legitimidade da remissão que a norma do artigo
277º do Código Penal faz para regras técnicas (não necessariamente constantes de
diplomas formais), tal como o faz para regras legais e regulamentares, tendo
como parâmetros os princípios de legalidade e da reserva de lei, consagrados na
Lei Fundamental.
Saber quais as concretas e específicas regras técnicas que deveriam ser seguidas
e observadas, sob pena de os agentes poderem incorrer em responsabilidade
criminal é algo que está subtraído a juízos de constitucionalidade normativa,
sendo certo que a acção dos arguidos susceptível de integração, de acordo com a
pronúncia, no crime em causa, é posterior à fixação do conjunto de regras
técnicas definidas como tendo que ser observadas e respeitadas.
Notificados para se pronunciarem sobre a questão prévia assim colocada, os
recorrentes vieram dizer que a questão de constitucionalidade suscitada respeita
às normas do artigo 277°, n.° 1, alíneas a) e b), in fine, do Código Penal, na
parte em que remetem para as regras técnicas, nas duas aludidas vertentes (cfr.
conclusão 30ª das alegações de recurso), qualquer delas lógica e ontologicamente
prévia ao momento da aplicação do direito, pelo que não se trata de matéria que
releve da indiciação acolhida como suficiente na pronúncia ou de prova de
julgamento, e, nesses termos, propugnaram que se ordenasse o prosseguimento do
recurso para efeito do conhecimento do seu objecto.
II. Fundamentação
2. Importa começar por delimitar o objecto do recurso e tomar posição sobre a
questão suscitada pelo Ministério Público para efeito de verificar se existe
fundado motivo para não conhecer da matéria de constitucionalidade.
Como resulta do teor da decisão instrutória há pouco transcrito, o juiz de
instrução pronunciou os arguidos pelo crime de infracção das regras de
construção previsto e punido pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a), do Código
Penal, sustentando que os arguidos, ao procederem ao descalçamento da base do
escombro, que ficou sem apoio seguro; ao ignorarem a altura da coluna de água
sobre o escombro, contra o método aprovado, não informando do facto a equipa de
segurança, nem a equipa que tinha aprovado o projecto; não voltando a bombear a
água que se ia acumulando na CES, omitiram regras técnicas básicas criando deste
modo perigo para a vida e integridade física de terceiros.
Perante uma tal decisão, os recorrentes, no texto das alegações de recurso de
constitucionalidade, começam por caracterizar as normas das alíneas a) e b) do
artigo 277º do Código Penal como normas penais em branco por entenderem que elas
não descrevem ou não descrevem de forma completa os pressupostos da conduta
punível. Isso porque a delimitação do comportamento proibido ou prescrito só
pode alcançar-se através da remissão que é feita na norma incriminadora para uma
fonte normativa diversa, que poderá ser legal ou infra-legal — lei ou
regulamento — ou até extra-jurídica — regras técnicas. E concluem que, no caso
concreto, tendo sido afastada, pelo tribunal, a integração das normas contidas
no artigo 277°, n° 1, alíneas a) e b), do Código Penal com recurso a regras
legais ou regulamentares, o reenvio apenas poderia considerar-se como feito para
regras técnicas.
Depois de passarem em revista a doutrina e a jurisprudência constitucional sobre
o tema, os recorrentes não deixam de considerar que a regra técnica complementar
da norma penal, no caso vertente, se reveste de natureza inovadora, interferindo
materialmente na delimitação da conduta punível e, assim, tomam como assente que
«as normas constantes do artigo 277.°, n.° 1, alíneas a) e b), in fine do Código
Penal, no segmento em que remetem a sua integração para as regras técnicas,
violam o princípio da legalidade e princípio da reserva de lei formal,
consagrados, respectivamente, nos artigos 29.°, n.° 1, e 165°, n.° 1, alínea c),
ambos da Constituição da República Portuguesa».
Um pouco mais adiante, porém, os recorrentes, tendo presente a situação concreta
dos autos, acabam por efectuar um desenvolvimento adicional à delimitação do
objecto do recurso, que se mostra justificado – segundo afirmam – pelo facto de
as normas constantes do artigo 277°, n° 1, alíneas a) e b), in fine, do Código
Penal terem sido interpretadas e aplicadas, pela decisão recorrida, com o
«sentido interpretativo segundo o qual a remissão naquelas normas operada para o
domínio das regras técnicas é susceptível de abranger métodos ou procedimentos
ad hoc, concebidos e destinados à execução de trabalhos concretos e singulares».
Na perspectiva dos recorrentes, a interpretação normativa que está especialmente
em causa coloca, assim, um segundo grau de apreciação de constitucionalidade
relativamente à questão anteriormente suscitada que tangia, tout court, à
apreciação da conformidade constitucional da remissão da norma penal para as
regras técnicas.
Todos estes considerandos são retomados e têm plena correspondência nas
conclusões da alegação, onde se refere, além do mais, o seguinte:
(…)
17-Esta consideração, à luz do critério de solução acolhido no Acórdão nº.
427/95, de 6 de Julho, só pode conduzir à conclusão de que, no caso vertente, a
regra técnica complementar da norma penal se reveste de natureza inovadora,
interferindo materialmente na delimitação da conduta punível.
18. Isso implica, consequentemente, que as normas constantes do artigo 277º, nº
1, alíneas a) e b), in fine, do Código Penal, no segmento em que remetem a sua
integração para as regras técnicas, violam o princípio da legalidade e princípio
da reserva de lei formal, consagrados, respectivamente, nos arts. 29°, n.° 1, e
165°, n.° 1, alínea c), ambos da CRP.
(…)
27. Na decisão ora em recurso, as normas em apreciação são aplicadas e
interpretadas no sentido de que no âmbito da remissão legal para as regras
técnicas se compreende, igualmente, a inobservância de métodos ou procedimentos
ad hoc, concebidos e destinados à execução de trabalhos concretos e singulares.
28. Desta forma abre-se a porta a toda a sorte de arbítrios na aplicação das
citadas normas penais, porquanto mesmo a referência literal à infracção de
regras técnicas acaba por ser despojada de qualquer sentido material.
29. Com o assinalado sentido interpretativo, acaba, afinal, por prescindir da
referência a qualquer regra técnica!
30. As normas contidas no artigo 277º, n.° 1, alíneas a) e b), in fine, do CP,
na parte em que naquelas normas se remete para as regras técnicas, são
inconstitucionais, por violação dos princípios da legalidade e da reserva de lei
formal, consagrados, respectivamente, nos artigos 29°, n.° 1, e 265º, n.° 1,
alínea c), ambos da CRP, bem assim o são com o sentido interpretativo subjacente
à sua aplicação ao caso vertente.
Ou seja, os recorrentes formulam um juízo de inconstitucionalidade, por
referência às aludidas normas das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 277º do
Código Penal, por duas vias: por um lado, consideram que as mencionadas normas
são inconstitucionais, por violação dos princípios da legalidade penal e da
reserva de lei formal, no ponto em que concretizam um pressuposto da punição
através da mera remissão para regras técnicas; por outro lado, sustentam que as
mesmas normas são inconstitucionais, com idêntico fundamento, quando
interpretadas no sentido que as regras técnicas, como pressuposto de
punibilidade, poderem ser integradas por simples referência a métodos ou
procedimentos ad hoc que tenham sido concebidos para executar um determinado
tipo de trabalhos.
Sendo esse o objecto do recurso, parece claro que os recorrentes colocam um
problema de constitucionalidade normativa numa dupla vertente: por um lado,
reputam como inconstitucional a norma do artigo 277º, n.º 1, alínea a), do
Código Penal, em si mesma considerada – o que poderá conduzir a uma recusa de
aplicação da norma enquanto possa caracterizar-se, no ponto em que remete para
regras técnicas, como uma norma penal em branco; por outro lado, entendem como
inconstitucional a mesma norma quando interpretada no sentido de que permite uma
remissão para meros procedimentos ad hoc que tenham sido especialmente
concebidos para a execução de uma determinada obra - o que poderá implicar que
se declare a inconstitucionalidade da norma nessa concreta interpretação
normativa.
Sendo assim, estamos perante uma questão de constitucionalidade incidente sobre
uma norma e, também, sobre uma certa interpretação normativa, e não propriamente
perante um problema atinente à recolha de indícios destinados à demonstração da
prática do crime, pelo que se afigura não existir motivo para não conhecer do
objecto do recurso.
Importa, entretanto, efectuar uma outra precisão.
Os recorrentes, nas suas alegações, sempre se referem, como constituindo objecto
do recurso, às normas contidas no artigo 277º, n.º 1, alíneas a) e b), in fine,
do Código Penal.
No entanto, o juiz de instrução pronunciou os arguidos pelo crime de infracção
de regras de construção previsto e punido pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a).
Embora não tenha identificado expressamente a alínea e o número do artigo a que
considerava subsumíveis os factos, é esse o preceito que se encontra transcrito
na parte dispositiva da decisão, e é também essa a qualificação jurídica que
logicamente resulta de toda a fundamentação, sendo que em nenhum momento o juiz
alude à destruição, danificação ou inutilização de aparelhagem a que se refere a
incriminação da alínea b).
Sendo, pois, essa a única norma que foi aplicada pela decisão recorrida,
entende-se como objecto do recurso a norma do artigo 277º, n.º 1, alínea a), do
Código Penal e a interpretação normativa concretamente formulada pelo juiz de
instrução quanto a essa norma.
3. A norma em causa, sob a epígrafe «Infracção de regras de construção, dano em
instalações e perturbação de serviços», dispõe o seguinte:
1 - Quem:
a) No âmbito da sua actividade profissional infringir regras legais,
regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou
execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação;
b) Destruir, danificar ou tornar não utilizável, total ou parcialmente,
aparelhagem ou outros meios existentes em local de trabalho e destinados a
prevenir acidentes, ou, infringindo regras legais, regulamentares ou técnicas,
omitir a instalação de tais meios ou aparelhagem;
c) Destruir, danificar ou tornar não utilizável, total ou parcialmente,
instalação para aproveitamento, produção, armazenamento, condução ou
distribuição de água, óleo, gasolina, calor, electricidade, gás ou energia
nuclear, ou para protecção contra forças da natureza; ou
d) Impedir ou perturbar a exploração de serviços de comunicações ou de
fornecimento ao público de água, luz, energia ou calor, subtraindo ou desviando,
destruindo, danificando ou tornando não utilizável, total ou parcialmente, coisa
ou energia que serve tais serviços;
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou
para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão de
1 a 8 anos.
[…]
A norma caracteriza um crime de perigo comum, que visa tutelar o bem jurídico da
segurança em determinadas áreas de actividade económica e garantir o regular
funcionamento de serviços fundamentais. O perigo diz respeito à vida ou à
integridade física de outrem, ou a bens patrimoniais alheios de valor elevado,
e decorre ou do simples comportamento do agente, como no caso do tipo legal
descrito na alínea a) do n.º 1, ou da destruição ou danificação de aparelhagem
ou de instalações (alíneas b) e c), ou da perturbação de exploração de serviços
(alínea d)).
A lei distingue quatro modalidades da realização do tipo, interessando sobretudo
analisar, por ser essa a situação versada nos autos, a da alínea a) do n.º 1,
pela qual o legislador pretende assegurar a tutela do interesse da segurança na
construção. O cometimento do crime depende, nesse caso, da infracção de «regras
legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento,
direcção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua
modificação». O que significa que está em causa a violação de regras de
construção em qualquer das fases de desenvolvimento de uma obra de construção
civil e em relação a qualquer dos processos de trabalho que possam estar
envolvidos: concepção, execução material ou direcção técnica da obra (Paula
Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, Coimbra,
1999, págs. 911-913).
Segundo é entendimento doutrinal, a referida disposição, no ponto em que se
reporta à infracção de «regras legais, regulamentares ou técnicas» como
constituindo um pressuposto do crime de violação das regras de construção,
caracteriza um tipo de norma penal em branco (Teresa Beleza/Frederico de Lacerda
Costa Pinto, O regime legal do erro e as normas penais em branco, Coimbra, 1999,
pág. 50; Rui Patrício, O erro sobre regras legais, regulamentares ou técnicas
nos crimes de perigo comum no actual direito português (Um caso de infracção de
regras de construção e algumas interrogações no nosso sistema penal), Lisboa,
2000, pág. 264; Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., pág. 913).
A norma penal em branco tem a particularidade de descrever de forma incompleta
os pressupostos da punição de um cime (norma sancionadora), remetendo parte da
sua concretização para outras fontes normativas (norma complementar ou
integradora). Numa concepção ampla, poderá entender-se como norma penal em
branco toda a descrição incompleta de uma norma penal, independentemente da
forma como a mesma é integrada, o que levará a incluir no conceito não só as
remissões de uma norma penal para outros instrumentos normativos inferiores,
criados por uma instância legislativa diferente, como também as remissões para
outras disposições do Código Penal ou outras disposições da mesma instância
legislativa. A doutrina maioritária aponta, contudo, para uma noção mais
restrita, no sentido de considerar norma penal em branco apenas o primeiro caso,
isto é, aquele em que uma norma penal remete parte da concretização da sua
previsão para fontes normativas inferiores (Teresa Beleza/Frederico de Lacerda
Costa Pinto, ob cit., págs. 31 e 32; no mesmo sentido, Jorge Miranda /Miguel
Pedrosa Machado, Constitucionalidade da protecção dos direitos de autor e da
propriedade industrial. Normas penais em branco, tipos abertos, crimes formais e
interpretação conforme à Constituição, in Revista Portuguesa de Ciência
Criminal, n.º 4, 1994, pág. 483).
Pode até verificar-se que a remissão se efectue para instrumentos que não
possuam natureza normativa, como será o caso em que a integração da norma
incriminadora se realize através de regras técnicas de carácter profissional que
não se encontrem consignadas em diploma legal ou regulamentar (Teresa
Beleza/Frederico de Lacerda Costa Pinto, ob cit., págs. 32-33).
As diferentes modalidades de normas penais em branco podem suscitar, em tese
geral, questões de constitucionalidade, quer no que se refere à exigência de
reserva de lei na definição dos crimes, seus pressupostos e respectivas penas
(princípio da legalidade), quer quanto a saber se há uma suficiente garantia de
certeza e segurança quanto aos factos que constituem o tipo legal de crime
(princípio da tipicidade).
O Tribunal Constitucional teve já o ensejo de efectuar uma aproximação a esses
parâmetros constitucionais, em relação a normas penais em branco, em duas
diferentes ocasiões.
No acórdão n.º 427/95, analisou-se a constitucionalidade da norma do artigo 4.º,
n.º 1, do Decreto-Lei n.º 192/89, de 8 de Junho, pela qual se estipula que «[o]s
aditivos alimentares admissíveis nos géneros alimentícios, os respectivos
critérios de pureza e as condições da sua utilização constarão de portaria
conjunta», dispositivo que veio depois a ser concretizado através da Portaria
n.º 833/89, de 22 de Setembro.
Estando em causa a eventual violação do princípio da legalidade penal, o
Tribunal formulou então uma resposta negativa pelas seguintes duas ordens de
razões: (a) o conteúdo da proibição legal de «aditivos falsificados» não resulta
da portaria, nem sequer do referido artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 192/89, mas
das normas legais que fixam o conteúdo da proibição — no caso, os artigos 24.º,
n.º 1, alínea a), e 82.º, n.º 2, alínea a), I, do Decreto-Lei n.º 28/84 [normas
que definem o crime contra a genuinidade dos géneros alimentícios e aditivos
alimentares]; o princípio da legalidade atinge nuclearmente a norma
incriminadora, no sentido dos artigos 29.º da Constituição e 1.º do Código Penal
e não contempla com o mesmo rigor as delimitações negativas ou excepções à
incriminação; (b) a norma remissiva não é uma norma em branco que
delegue na portaria o poder de definir o conteúdo da incriminação. Os critérios
do ilícito penal — desvalor da acção proibida, desvalor do resultado lesivo e
identificação do bem jurídico tutelado — encontram-se nas normas dos artigos
24.º, n.º 1, alínea a), e 82.º, n.º 2, alínea a), I, do Decreto-Lei n.º 28/84.
A descrição, feita pela portaria, dos aditivos admissíveis é apenas uma
concretização do critério legal, através da enumeração de substâncias que são
insusceptíveis de afectar a pureza dos produtos, apesar de constituírem aditivos
alimentares. Mas tal enumeração de substâncias não documenta nenhum critério
autónomo de ilicitude — consiste apenas numa aplicação de conhecimentos
técnicos.
O acórdão n.º 534/98, por sua vez, teve por objecto a norma constante do artigo
71º, nº 1, alínea c), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, enquanto
estabelece, desprovida de credencial parlamentar, que os limites quantitativos
máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das
substâncias estupefacientes serão determinadas por portaria.
A fixação, por via regulamentar, da quantidade considerada correspondente ao
consumo médio individual era relevante para a qualificação do tipo legal de
crime, visto que nos termos do n.º 3 do artigo 26º do Decreto-Lei nº 15/93, o
agente não beneficiava do regime privilegiado do n.º 1 desse artigo (aplicável
ao traficante-consumidor), sendo punido pelo crime de tráfico, previsto no n.º 1
do artigo 21º, caso fosse encontrado com uma quantidade de estupefacientes que
excedesse aquele limite.
Nesta hipótese, o Tribunal enveredou por atribuir aos limites fixados na
portaria o valor de meio de prova, a apreciar nos termos da prova pericial, e da
qual o juiz poderia divergir, mediante decisão fundamentada, de harmonia com o
que estabelece o artigo 163º do Código Processual Penal quanto ao valor
probatório dos exames periciais.
O Tribunal excluiu, assim, que, também nessa hipótese, tivesse sido posto em
crise, através da apontada remissão, o princípio da legalidade criminal.
Nas duas espécies, estão em confronto soluções jurídicas que não são
necessariamente contraditórias.
Num caso (acórdão n.º 427/95), considerou-se como critério decisivo, para a
verificação da conformidade constitucional da norma penal remissiva, o carácter
inovador ou meramente concretizador da norma complementar: se esta é uma norma
de concretização técnica, não é posta em causa a segurança jurídica dos
destinatários; se é uma norma complementar inovadora fica afectado o princípio
da legalidade e da tipicidade penal. Noutro caso (acórdão n.º 534/98),
interpretou-se a norma complementar como possuindo um valor meramente probatório
e que, por essa razão, não era absolutamente imperativa para o julgador. Segundo
este outro critério, será possível legitimar algumas normas penais em branco que
se limitam a remeter para fontes normativas de hierarquia inferior a formulação
de juízos de natureza eminentemente técnica, que conduzem a resultados
equivalentes à prova pericial (neste sentido, Teresa Beleza/Frederico de Lacerda
Costa Pinto, ob cit., pág. 38).
De acordo com os autores agora citados, um critério orientador quanto à
conformidade constitucional das normas penais em branco poderá ser o seguinte
(ob. Cit., pág. 41):
[…] quando a remissão feita pela norma sancionadora principal para a norma
complementar tornar o tipo de ilícito incaracterístico, dificultar o seu
conhecimento pelos destinatários para além do que é exigível a uma pessoa média
ou implicar o recurso a critérios autónomos ou critérios novos de ilicitude, a
remissão e respectiva concretização violam o princípio da legalidade (neste
sentido, de exigência de lei penal expressa e certa). Nos demais casos só uma
ponderação perante a situação concreta e a amplitude ou grau da concretização
feita pela norma complementar é o caminho adequado para uma solução
satisfatória.
É essa também a ilação que se extrai da jurisprudência constitucional: a
validade das normas penais em branco terá de ser averiguada, em cada caso, em
função do grau de precisão que for possível atribuir aos respectivos
pressupostos de punição.
E na mesma linha de entendimento se posicionam Jorge Miranda e Miguel Pedrosa
Machado, quando excluem que se possa associar em abstracto o conceito de norma
penal em branco à violação do princípio da legalidade, como se vê do seguinte
excerto:
[…] em si e por si, nem as normas penais em branco, nem os denominados tipos
abertos são (ou funcionam como) casos de detecção de inconstitucionalidades
materiais, por abstracta violação da vertente do princípio da legalidade neste
trabalho considerada. Tanto em relação a umas como a outros, e tendo em conta a
extraordinária latitude das situações a que podem dizer respeito, não poderá
nunca bastar a formulação de um juízo abstracto de desconformidade à
Constituição.
4. No caso do tipo legal de infracção às regras de construção, o legislador
definiu como elemento constitutivo do crime a violação «regras legais,
regulamentares ou técnicas que devam ser observadas».
Não era essa a formulação utilizada, na versão originária do Código Penal, na
correspondente norma do artigo 263º. Aí, punia-se quem tivesse infringido as
«disposições legais ou regulamentares, ou ainda as regras técnicas que no caso,
segundo as normas geralmente respeitadas ou reconhecidas, devem ser observadas».
O inciso «segundo as normas geralmente respeitadas ou reconhecidas» era
entendido como referindo-se a um conjunto de normas de acção que muito embora
não encontrasse expressão legal ou regulamentar, constituía uma espécie de «arte
de construção». Como tal se deveriam considerar aquelas regras que são
utilizadas na prática, na convicção de que são necessárias para a segurança da
obra (Paula Ribeiro de Faria, ob. cit., pág. 918). O tipo de crime resultaria
assim, da violação das específicas regras de construção, regras essas que podiam
estar positivadas em disposições legais ou regulamentares ou ainda contidas em
normas de construção, geralmente respeitadas ou reconhecidas (Faria e Costa, O
Perigo em Direito Penal, Coimbra Editora, 1992, pág. 533).
Tendo o legislador eliminado o carácter generalizadamente respeitado ou
reconhecido das regras técnicas, basta agora que se trate de regras que devam
ser seguidas, ou porque decorrem das condições técnicas gerais a observar
naquele particular ramo de construção, ou porque são impostas pela análise do
concreto caderno de encargos (Paula Ribeiro de Faria, ob. e loc. cit.).
Naturalmente que continua a exigir-se a utilização das práticas comuns da arte
de construção. Por isso se entende que deverão ser adoptados todos os
procedimentos que permitam que a obra se desenvolva em condições de completa
segurança, como sejam as que respeitem à robustez e boa execução da obra, a
adequada qualidade dos materiais e a quantidade ajustada dos componentes (Leal
Henriques/Simas Santos, Código Penal, 2º vol., 2ª edição, Lisboa, pág. 853).
No entanto, há agora a considerar, face à nova formulação legal, outras regras
técnicas que tenham sido previstas nos documentos contratuais ou que tenham sido
legitimamente determinadas pelo dono da obra, no intuito de salvaguardar a
segurança da construção e prevenir a ocorrência de acidentes.
5. A remissão para regras técnicas, pela norma incriminadora, de parte da
concretização da previsão legal referente aos pressupostos da punibilidade
coloca, antes de mais, um problema de constitucionalidade por confronto com o
princípio da tipicidade penal, que se entende estar consagrado no artigo 29º,
n.º 1, da Lei Fundamental.
O princípio da tipicidade implica que a lei especifique suficientemente os
factos que constituem o tipo legal de crime (ou que constituem os seus
pressupostos) e que efectue a necessária conexão entre o crime e o tipo de pena
que lhe corresponde (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, Coimbra, pág. 495). A tipicidade impede,
por conseguinte, que o legislador utilize fórmulas vagas na descrição dos tipos
legais de crime, ou preveja penas indefinidas ou com uma moldura penal de tal
modo ampla que torne indeterminável a pena a aplicar em concreto. É um princípio
que constitui, essencialmente, uma garantia de certeza e de segurança na
determinação das condutas humanas que relevam do direito criminal (Lopes Rocha,
A função de garantia da lei penal e a técnica legislativa, in Legislação –
Cadernos de Ciência e Legislação, n.º 6, Janeiro-Março de 1993, pág. 25).
Nestes termos, a questão mais importante que a norma penal em branco suscita
prende-se com o conhecimento pelo destinatário do comportamento proibido ou
imposto (Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. I, Lisboa,
1997, pág. 220).
Quando, no entanto, como sucede com a disposição penal agora em apreço, a lei
remete para regras técnicas que são regras de carácter profissional tidas como
geralmente conhecidas e aplicadas nos trabalhos de construção civil, ou regras a
que o agente se encontra vinculado por efeito de estipulações constantes do
contrato ou de determinação expressa do dono da obra, não é posta em causa a
cognoscibilidade subjectiva desse específico elemento constitutivo do tipo
legal. Pode até dizer-se, tal como referem dois autores há pouco citados, que
«muitas vezes as remissões para outros instrumentos jurídicos não penais (como
regras profissionais ou regulamentos que orientam certas actividades) tornam os
regimes vigentes mais acessíveis aos destinatários das normas, pois os
instrumentos em causa são, pela sua proximidade empírica em relação aos sujeitos
a quem dizem respeito, mais facilmente conhecidos por estes do que as próprias
normas incriminadoras» (Teresa Beleza/Frederico de Lacerda Costa Pinto, ob.
cit., pág. 40).
Na verdade, trata-se de princípios básicos da arte de construir (sejam regras de
natureza técnico-profissional ou de prudência comum) ou medidas especificamente
atinentes à segurança da execução de obra, que, por dever de ofício, os
intervenientes não podem ignorar e relativamente aos quais não podem invocar a
falta de consciência da ilicitude, quando tenham deixado de lhes dar cumprimento
numa situação concreta, e, por conseguinte, também, o desconhecimento do
conteúdo da norma sancionatória.
A questão poderá colocar outro tipo de dificuldades quando se analise a
conformidade constitucional da norma penal em branco à luz do princípio da
legalidade.
O princípio da legalidade determina a existência de uma reserva de lei da
Assembleia da República quanto à definição dos crimes, penas, medidas de
segurança e respectivos pressupostos, matéria em que o Governo apenas pode
legislar mediante autorização legislativa daquela (artigo 165º, n.º 1, alínea
c), da CRP), e implica ainda a proibição de intervenção normativa dos
regulamentos em termos de não poder a lei cometer-lhes essa competência (Gomes
Canotilho/Vital Moreira, ob. cit., pág. 494).
Tratando-se, porém, de um princípio intimamente associado à tipicidade, que com
este constitui, por assim dizer, uma unidade incindível, o princípio da
legalidade não pode ser visto com uma dimensão ou amplitude diversa da que é
exigível, por aplicação daquele outro princípio, no que toca à individualização
do tipo legal de crime e da pena (quanto à indissociabilidade dos princípios da
legalidade e da tipicidade, Jorge Miranda/Miguel Pedrosa Machado, ob. cit., pág.
474; Lopes Rocha, ob. e loc. cit.).
Assim, do mesmo passo que, em relação à tipicidade, se coloca a tónica na
necessidade de garantir que a interpretação e aplicação das normas penais
revistam características de certeza e determinabilidade, também no que se refere
ao princípio da legalidade a reserva de competência legislativa deve
considerar-se confinada ao núcleo essencial de conexão entre a conduta proibida
e a pena que lhe corresponde, de molde a poder dizer-se que é a lei que regula,
em termos suficientemente compreensíveis, o tipo legal de crime e a moldura
penal aplicável.
É este ponto de vista que se surge, de algum modo, expresso por Figueiredo Dias
na seguinte passagem (Para uma dogmática do direito penal secundário, Revista de
Legislação e de Jurisprudência, ano 117º, 1984-1985, nºs 3718-3719, págs.
47-48):
Não parece justificar-se, porém, que desta circunstância se deduza logo a
inconstitucionalidade daquelas normas, uma vez que nada na Constituição obriga à
conexionação, na mesma lei ou no mesmo preceito legal, da conduta proibida com a
pena que lhe corresponde. Dado, por outro lado, que o principio da legalidade,
segundo a nossa Constituição se reflecte, no plano da fonte, na exigência de lei
incriminadora formal –
e proveniente da Assembleia da República: artigo 168°, alínea c) —, podem aqui
levantar-se problemas derivados de os critérios aferidores da lega1idade formal
deverem porventura ser vistos à dupla luz do ordenamento jurídico-penal e do
extra-penal, máxime do administrativo. Parece razoavelmente seguro, em todo o
caso, que a exigência de lei formal haja de radicar na norma penal
sancionatória, mas não também necessariamente no acto de fundamentação
constitutiva da punibilidade quanto a este, bastará que ele seja válido por ter
tido lugar em virtude de uma autorização legal.
Seja como for, quando está em causa, como na norma do artigo 277º, n.º 1, alínea
a), do Código Penal, a integração de um pressuposto da punição por remissão para
regras técnicas, que são – como se viu – regras de carácter profissional, que
poderão assumir uma feição meramente empírica ou provir de simples regulação
privada, não poderão tais regras, pela própria natureza das coisas, ser fixadas
directamente por via de lei.
Por outro lado, o tipo legal encontra-se fixado na lei penal de forma já
suficientemente precisa, visto que a remissão se reporta a regras técnicas de
carácter profissional que necessariamente deverão ser do conhecimento dos
destinatários da norma.
6. Revertendo ao caso concreto, cabe averiguar se, à luz de todos os elementos
até agora coligidos, é possível considerar verificada a inconstitucionalidade da
norma do artigo 277º, n.º 1, alínea a), in fine, do Código Penal ou da
interpretação normativa concretamente aplicada na decisão instrutória, como vem
requerido.
Todas as considerações expendidas conduzem-nos a concluir que uma norma penal em
branco só é susceptível de violar o princípio da legalidade (no sentido de
exigência de lei formal expressa que contemple o tipo legal de crime) e, como
seu corolário, o princípio da tipicidade (no sentido da exigência de uma
descrição clara e precisa do facto punível), quando a remissão feita para a
norma complementar põe em causa a certeza e determinabilidade da conduta tida
como ilícita, impedindo que os destinatários possam apreender os elementos
essenciais do tipo de crime. A este propósito, afirmou-se que a legitimidade
constitucional das normas penais em branco pode aferir-se, tal como se ponderou
no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 427/95, em função do carácter
meramente técnico e não inovador das normas de integração.
No caso da norma do artigo 277º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, estando em
causa um crime de infracção de regras de construção, quando praticado no âmbito
da actividade profissional, a remissão é feita relativamente a um dos elementos
de punibilidade, consubstanciado na violação de regras legais, regulamentares ou
técnicas que devam ser observadas no planeamento, direcção ou execução de
construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação. Sendo que o inciso
que é posto em causa, por ter sido aquele que foi objecto de aplicação concreta,
é o que se refere a regras técnicas que devam ser observadas.
Vimos, todavia, que regras técnicas, nesse contexto, são as regras de carácter
profissional geralmente conhecidas e normalmente utilizadas nos trabalhos de
construção civil, quer se trate de regras de conhecimento técnico ou práticas de
prudência comum, quer se trate de regras ou procedimentos que sejam impostos
pelo contrato, pelo caderno de encargos, pelo plano de execução da obra ou de
prevenção de riscos ou outro instrumento de acção que tenha sido legitimamente
autorizado. É, de resto, esse o sentido útil da alteração legislativa
introduzida pela revisão do Código Penal resultante do Decreto-Lei nº 48/95, de
15 de Março, que substituiu a expressão «regras técnicas que no caso, segundo as
normas geralmente respeitadas ou reconhecidas, devem ser observadas», que
constava do antigo artigo 163º, pela actual locução «regras (…) técnicas que
devam ser observadas».
E, sendo assim, a concretização da norma penal em branco é feita através da
remissão para regras que o agente não poderá deixar de conhecer, por respeitarem
ao âmbito da sua própria actividade profissional.
Nesse condicionalismo, a norma em si não viola os princípios da legalidade e da
tipicidade já que define em termos suficientemente claros o tipo legal de
ilícito, e, ao remeter para o plano extra-legal a identificação das regras que
são passíveis de serem violadas, não põe em risco a determinabilidade da conduta
proibida.
7. Resta averiguar se poderá ser formulado idêntico juízo de conformidade
constitucional, no que se refere à interpretação normativa concretamente
aplicada pelo juiz a quo, que – recorde-se – pronunciou os arguidos pelo crime
previsto e punido pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, por
considerar que omitiram regras técnicas básicas relativas à execução da obra.
Refira-se que, na decisão instrutória, o juiz de instrução criminal associou a
referida omissão de regras técnicas básicas à prática indiciária, pelos
arguidos, dos seguintes factos: descalçamento da base do escombro, que ficou sem
apoio seguro; desconsideração da altura da coluna de água sobre o escombro,
contra o método aprovado, não informando do facto a equipa de segurança, nem a
equipa que tinha aprovado o projecto; abstenção de bombagem da água que se ia
acumulando na Chaminé de Equilíbrio Superior (CES).
Os recorrentes consideram que, por esta via, a decisão recorrida aplicou a norma
do artigo 277º, n.º 1, alínea a), in fine, do Código Penal, com um sentido
interpretativo segundo o qual a remissão aí operada «é susceptível de abranger
métodos ou procedimentos ad hoc, concebidos e destinados à execução de trabalhos
concretos e singulares».
É, pois, a constitucionalidade desta interpretação normativa que está agora em
análise.
Importa, antes de mais, reter que, caso o processo deva seguir para o
julgamento, o seu objecto não se circunscreve necessariamente aos factos
constantes da pronúncia ou à qualificação jurídica que deles foi feita pelo juiz
de instrução, e nada obsta, como se depreende do disposto no artigo 339º, n.º 4,
do Código de Processo Penal (na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de
Agosto), que o tribunal, na apreciação do mérito, tome em linha de conta outros
factos alegados pelos intervenientes processuais ou que resultem da discussão da
causa, para efeito de determinar, designadamente, se se verificam os elementos
constitutivos do tipo de crime ou quaisquer outros pressupostos de que a lei
faça depender a punibilidade do agente (artigo 368º, n.º 2, alíneas a) e e), do
CPP), ou para fixar a espécie e da medida da sanção a aplicar (artigo 369º do
CPP).
Estando, no entanto, em causa, no presente recurso, a constitucionalidade de uma
interpretação normativa formulada no despacho de pronúncia, haverá que atender
aos factos que serviram de base à prolação desse despacho, únicos que podem
agora ser valorados.
Sendo inquestionável que a decisão instrutória assentou na factualidade há pouco
descrita, é também certo que o juiz de instrução considerou outros aspectos
factuais para concluir pela falada omissão de regras técnicas básicas.
O despacho alude ao facto de um dos arguídos, na qualidade de director dos
trabalhos, ter concebido e submetido à aprovação da Equipa de Projecto, uma
metodologia de execução para a remoção do escombro, a qual consta do documento
de fls. 486, que, na parte que mais interessa considerar, é do seguinte teor:
1 — Bombagem da água existente no poço Essa bombagem será feita até que o nível
da água fique aproximadamente 5 m do escombro.
Serão instaladas duas bombas em série nas unhas de bombagem para que tenhamos um
volume de bombagem na ordem dos 30/40m3/hora.
2 — execução de um furo ao longo do escombro
Após bombagem será feito um furo com uma máquina colocada na boca da chaminé, na
qual serão acrescentadas varas que nos permitam vencer os aproximadamente 330
metros até ao escombro, iniciando a furação do mesmo.
O furo terá a finalidade de atravessar o escombro, permitindo fazer a drenagem
às infiltraç6es e apoiar, caso seja necessário, o desmonte do material se este
não for caindo por gravidade.
Acresce que o método, assim descrito, foi aprovado pela Equipa de Projecto.
O despacho de pronúncia reconhece, por outro lado, a existência de fortes
índicios de incumprimento do projecto durante a execução dos trabalhos, de
desonegação de informações ao responsável pela segurança, e de alteração do
projecto que fora aprovado, e, por tudo isso, confirmou o libelo acusatório.
Os recorrentes, nas suas alegações, alegam que se tratava de um trabalho de
natureza singular, inserido numa obra de grande complexidade técnica, não
previsto no caderno de encargos, e para cuja execução não existiam quaisquer
procedimentos ou regras de execução e de segurança predefinidos. E admitem que a
metodologia de execução da remoção do escombro foi definida pelo arguido
director da obra, e submetida à apreciação da dona da obra e por esta aprovada.
Discutem, no entanto, que a alegada inobservância da metodologia de execução dos
trabalhos possa fundamentar a conclusão de que houve, por parte dos arguidos,
infracção de regras técnicas. E é nessa linha de argumentação que subscrevem o
entendimento de que é inconstitucional a norma do artigo 277°, n.° 1, alínea a),
in fine, do Código Penal, quando interpretada no sentido de que no âmbito da
remissão legal para as regras técnicas se compreende, igualmente, a
inobservância de métodos ou procedimentos ad hoc, concebidos e destinados à
execução de trabalhos concretos e singulares.
Ora, toda a explanação dos anteriores n.ºs 5 e 6 nos permitiram concluir que o
conceito de regras técnicas abrange, quer as normas geralmente respeitadas ou
reconhecidas no sector da actividade da construção, quer outras regras ou
procedimentos que sejam impostos pelos documentos contratuais, pelos planos de
execução da obra ou pelos planos de segurança no trabalho. E como também se
demonstrou, não pode sequer invocar-se a indeterminabilidade das regras técnicas
para que remete o artigo 277º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, porque
justamente essas são as regras de uso comum no exercício da actividade
profissional ou a que o agente se vinculou (e, como tal, não podia desconhecer)
em relação à concepção ou execução de uma determinada obra concreta.
No caso dos autos, os ditos procedimentos ad hoc foram aqueles que um dos
arguidos idealizou como adequados à boa realização dos trabalhos e que vieram a
ser aprovados pelo dono da obra.
Na ausência de normas ou métodos que estivessem especialmente regulamentados ou
que fossem usualmente aplicáveis, dada a singularidade da obra, esse conjunto de
procedimentos constituíam o plano de execução dos trabalhos, que, uma vez
aprovado, devia ter sido levado a efeito.
Por tudo o que se deixou exposto, a remissão feita pela norma penal para
procedimentos desse tipo não é inconstitucional.
III – Decisão
Termos em que acordam negar provimento ao recurso.
Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 25 Uc.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2008
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Vítor Gomes
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
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