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Processo nº 1188/2007
3ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam, em Conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I
Relatório
1. O Magistrado do Ministério Público junto do 1.º Juízo do Tribunal de Pequena
Instância Criminal do Porto vem reclamar para este Tribunal Constitucional, ao
abrigo das disposições conjugadas dos artigos 77.º e 78.º-A, n.ºs 3 e 4, ambos
da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (Lei do Tribunal Constitucional), do
despacho do Juiz daquele 1.º Juízo, de 9 de Novembro de 2007, que não lhe
admitiu o recurso, interposto para este Tribunal ao abrigo da alínea a) do n.º 1
do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, do despacho do mesmo Juiz, de
29 de Outubro de 2007, com fundamento em que “salvo melhor opinião, o despacho
recorrido não recusa, expressa ou implicitamente, a aplicação ao caso concreto
do conteúdo ou do regime jurídico de qualquer norma jurídica e, muito menos, com
fundamento na sua inconstitucionalidade, sendo certo que apenas esta recusa, com
este específico fundamento, abriria a via de recurso para o Tribunal
Constitucional”.
Na reclamação ora em apreço expende o recorrente:
Ousando discordar do teor desta afirmação, quer-nos parecer que tendo o
Ministério Público – na sequência do despacho da Mma. Juiz a quo que ordenou a
conclusão dos autos ao Ministério Público «uma vez que no tribunal de turno foi
apenas requerido o adiamento do início da audiência, nos termos do artigo.
387.º, n.º 2, alínea a), do CPP, não tendo sido deduzida acusação» – reservado
para o início da audiência de julgamento o uso da faculdade concedida pelo
artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a posterior decisão judicial
que recaiu sobre essa posição do Ministério Público não só nega a aplicação
concreta da disposição legal por este invocada (melhor, a faculdade que se
protestou exercer em devido tempo ao abrigo dessa disposição legal), como
fundamenta essa não aplicação no facto de que «realizar a audiência de
julgamento, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta do auto
de notícia violaria o princípio constitucional da estrutura acusatória do
processo criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido, que
desconheceria, face à mera leitura daquele auto, a totalidade dos factos
necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação jurídica e a
prova».
Não sendo de exigir fórmulas sacramentais para dizer as coisas, quer-nos parecer
que outra coisa não fez a Mma. Juiz que não tenha sido recusar a aplicação
concreta da norma em que o Ministério Público se baseou para reservar o
exercício da faculdade invocada, fundamentando mesmo essa recusa no facto de que
a aplicação de tal norma não só seria inconstitucional por violar o princípio
constitucional da estrutura acusatória do processo criminal como poria em causa
as garantias de defesa do arguido.
Parece-nos claro que quer pela leitura integral do despacho judicial recorrido,
quer pelos antecedentes que ao mesmo conduziram, será forçoso concluir que, em
rigor, o que a Mma. Juiz a quo fez foi declarar que recusava, por
inconstitucional, a aplicação daquela norma quando literalmente interpretada no
sentido de permitir a realização de julgamento em processo sumário nos casos em
que o Ministério Público não tenha deduzido acusação e se reserve para o início
da audiência de julgamento em processo sumário o poder de substituir a acusação
pela leitura do auto de notícia elaborado pelo órgão de polícia criminal,
revelando-se este auto de notícia insuficiente na medida em que se mostre omisso
quanto aos factos susceptíveis de integrarem o elemento subjectivo do crime em
causa, quanto às disposições legais aplicáveis e quanto às provas que
fundamentam a acusação.
O arguido A., a quem foi nomeado defensor, respondeu à reclamação sustentando, a
final, que “por não estar em causa a recusa de aplicação de qualquer norma com
fundamento na sua inconstitucionalidade, deve a presente reclamação ser
considerada inadmissível, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 280.º da
Constituição da República Portuguesa e da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da
Lei de organização, funcionamento e processo do Tribunal Constitucional.”
Sobre a reclamação pronunciou-se o Magistrado Ministério Público em exercício de
funções neste Tribunal Constitucional, emitindo o seguinte parecer:
Importa notar liminarmente que – sendo o recurso, interposto pelo Ministério
Público e rejeitado no Tribunal a quo, – exclusivamente fundado na alínea a) do
n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, apenas poderá reportar-se à recusa de
aplicação da norma identificada no respectivo requerimento de interposição – e
não a quaisquer outros preceitos legais, eventualmente
aplicados no despacho reclamado, já que tal implicaria a ampliação do respectivo
objecto de modo a incluir estes últimos, bem como a invocação, como base
recursória, da alínea b) daquele artigo 70.º, n.º 1, o que se afigura inviável
face à regra de que a delimitação do objecto do recurso decorre
irremediavelmente (no que se refere ao seu máximo âmbito) do teor daquele
requerimento.
A sorte da presente reclamação dependerá, deste modo, da determinação da
existência de uma «verdadeira» recusa de aplicação normativa, reportada ao
artigo 389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal fundada em violação dos
princípios constitucionais da estrutura acusatória do processo penal e das
garantias de defesa.
Qual a interpretação normativa feita pelo juiz a quo de tal preceito legal?
A nosso ver, considerou-se ser inviável a substituição da apresentação de
acusação pelo Ministério Público em processo sumário pela simples leitura do
auto de notícia, no início da audiência, sem qualquer «aditamento», num caso em
que o referido auto omitiria elementos essenciais a qualquer acusação, nos
planos fáctico (estruturantes do elemento subjectivo do crime imputado ao
arguido), da qualificação jurídica (especificação das disposições legais
aplicáveis) e probatório (indicação das provas que fundamentam tal imputação ao
arguido).
É feita, no despacho reclamado, a seguinte leitura da norma constante do artigo
389.º, n.º 2, do Código de Processo Penal:
Em processo sumário, pode o Ministério Público substituir a apresentação da
acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à
detenção, salvo se de tal auto não constarem todos os elementos – fácticos, de
qualificação jurídica e probatório – que obrigatoriamente – por força das
disposições gerais – devem constar de qualquer acusação.
Ou seja: não se considerou inviável, de modo genérico, a actuação processual ali
consentida ao Ministério Público, procedendo-se antes a uma leitura conjugada de
tal preceito legal com as disposições que regulam os requisitos da acusação, só
consentindo a «substituição» da acusação pela leitura do auto quando este
satisfaça minimamente tais requisitos gerais.
Procedeu, deste modo, o despacho recorrido a uma leitura conjugada da norma que
integra o objecto do presente recurso (a do artigo 389.º, n.º 2, do Código de
Processo Penal) com outras disposições que regem sobre os requisitos da acusação
(artigos 283.º, n.º 3, e 311.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal) para
concluir que a possibilidade de mera leitura do auto de notícia, no início da
audiência, pressupõe a suficiência deste, na óptica das exigências formuladas
por aqueles preceitos legais.
Sendo duvidosa a definição da precisa «linha de fronteira» entre a verdadeira
«recusa de aplicação» normativa, enquadrável na alínea a) do n.º 1 do artigo
70.º da Lei do Tribunal Constitucional, e a mera interpretação de preceitos
legais «em conformidade com a Constituição» (cf., v. g., os Acórdãos n.ºs
170/85, 425/89, 137/89, 636/94 e 1020/96), afigura-se que – no caso dos autos –
o juízo de inaplicabilidade de certa interpretação que – a ser feito – violaria
determinados princípios constitucionais se não fundou «única ou primacialmente»
(para utilizar a expressão de Rui Medeiros, A Decisão de Inconstitucionalidade,
pp. 331 e seguintes) no princípio da interpretação conforme à Lei Fundamental,
mais não desempenhando «o apelo à Constituição (princípio do acusatório e das
garantias de defesa) em sede hermenêutica, uma função de apoio ou de confirmação
de um sentido da norma já sugerido pelos restantes elementos de interpretação»
(cf. ainda o Acórdão n.º 285/2002).
Assim, por se afigurar que o Tribunal a quo, no despacho recorrido, se limitou a
proceder a uma leitura conjugada de diversos regimes processuais penais,
referentes aos requisitos da acusação, articulando-os com a possibilidade de
mera «leitura» pelo Ministério Público do auto de notícia no início da audiência
em processo sumário, não será a circunstância de se considerar que a
imperatividade de tal aplicação conjugada dos regimes legais decorre dos
princípios constitucionais do acusatório e das garantias de defesa que traduz a
ocorrência de uma verdadeira «recusa de aplicação normativa», enquadrável no
tipo recursório previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82.
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II
Fundamentos
2. Sobre reclamação idêntica à ora em análise recaiu o Acórdão
n.º 8/2008, de 10 de Janeiro de 2008 (disponível no sítio da Internet
www.tribunalconstitucional.pt), pelo qual o Tribunal Constitucional decidiu
manter despacho com a mesma argumentação do ora pretendido recorrer. Pode ler-se
nesse aresto:
2. Face ao teor do requerimento de interposição de recurso, o respectivo objecto
era integrado por alegada decisão de recusa de aplicação da norma do artigo
389.º, n.º 2, do CPP, com fundamento em inconstitucionalidade.
Tem este Tribunal entendido que a recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade, para abrir via ao recurso previsto na alínea a) do n.º 1
do artigo 70.º da LTC, tanto pode consistir numa recusa explícita, como numa
recusa implícita, e que são equiparáveis a recusas determinadas decisões de
aplicação da norma interpretada em conformidade com a Constituição, “sempre que
se esteja perante uma clara rejeição de certa interpretação, mormente da
interpretação literal ou «natural», com fundamento na sua inconstitucionalidade”
(José Manuel M. Cardoso da Costa, A Jurisdição Constitucional em Portugal, 3.ª
edição revista e actualizada, Coimbra, 2007, p. 73, nota 93). Necessário é
sempre, porém, que o juízo de inconstitucionalidade (ou de desconformidade
constitucional) constitua uma verdadeira ratio decidendi, e não um mero obiter
dictum, da decisão recorrida.
No presente caso, resulta da leitura da decisão recorrida que o elemento
primordial e determinante do entendimento da inadmissibilidade, no caso, de o
Ministério Público “substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto
de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção”, prevista no n.º 2 do
artigo 389.º do CPP, resultou da leitura conjugada desse preceito com as
disposições dos artigos 283.º, n.º 3, alíneas b) a d), e 311.º, n.ºs 2, alínea
a), e 3, alíneas b), c) e d), do mesmo Código, que, respectivamente, determinam
que a acusação do Ministério Público, sob pena de nulidade, deve conter a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis e a prova, e
que o presidente do tribunal, se o processo tiver sido remetido para julgamento,
sem ter havido instrução, deve rejeitar a acusação se a considerar
manifestamente infundada, sendo tida como tal a acusação que não contenha a
narração dos factos, a indicação das disposições legais aplicáveis ou das provas
que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime.
Isto é: foi com base na interpretação do direito ordinário que a decisão
recorrida entendeu só ser admissível a substituição da acusação pela leitura do
auto de notícia quando este auto contenha todos os elementos legalmente
exigíveis para a validade de qualquer acusação.
A posterior referência a que violaria a estrutura acusatória do processo
criminal e poria em causa as garantias de defesa do arguido a realização da
audiência, em processo sumário, tendo por acusação apenas o que consta de um
auto de notícia, que não possibilitava ao arguido a conhecimento da totalidade
dos factos necessários ao preenchimento do tipo legal, a sua qualificação
jurídica e a prova, constituiu um mero argumento de conforto da justeza do
entendimento a que anteriormente se chegou quanto à interpretação tida por
correcta, ao nível da interpretação do direito ordinário aplicável, da
possibilidade de substituição da acusação pelo Ministério Público pela leitura
do auto de notícia.
Só existiria recusa de aplicação de norma com fundamento em
inconstitucionalidade se o tribunal tivesse interpretado o artigo 389.º, n.º 2,
do CPP no sentido de permitir essa substituição mesmo quando o auto de notícia
não contivesse os elementos exigidos para a validade da acusação, e, depois,
sustentasse que, assim interpretada, tal norma violaria princípios
constitucionais. Mas não foi esse, como se evidenciou, o caminho seguido pela
decisão recorrida.
Não encerrando esta, sequer implicitamente, uma recusa de aplicação de norma com
fundamento em inconstitucionalidade, o presente recurso surge como inadmissível,
sendo de todo irrelevante, para o efeito, a menção a eventual violação de caso
julgado.
Se é assim, sendo que nenhuma razão se vislumbra para divergir desta análise ou
acrescentar algo, conclui-se que também no presente caso não está preenchido o
pressuposto da citada alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal
Constitucional.
III
Decisão
Nestes termos, acordam em indeferir a presente reclamação. Sem custas.
Lisboa, 31 de Janeiro de 2008
Maria Lúcia Amaral
Carlos Fernandes Cadilha
Gil Galvão
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