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Processo n.º 727/13
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por sentença proferida no processo comum singular n.º 914/04.9GTABF do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Loulé foi o arguido A. condenado pela prática, como autor material, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à razão diária de € 3,50, num total de € 245,00 e na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados por um período de 3 meses e 20 dias.
Após o trânsito em julgado da referida decisão, o arguido requereu a reabertura da audiência, nos termos do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, para aplicação retroativa da lei penal mais favorável, face ao teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008, publicado no Diário da República, 1.ª Série, n.º 146, de 30-07-2008, quanto à pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados, que lhe foi aplicada na sentença condenatória.
Tal requerimento foi indeferido por despacho de 30-10-2012 e, inconformado, o arguido interpôs recurso do mesmo para o Tribunal da Relação de Évora que, por acórdão de 18 de junho de 2013, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida.
O arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15/11, nos seguintes termos:
«A., Recorrente no processo à margem referenciados vem interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do artigo 70.º da lei do Tribunal Constitucional, do douto Acórdão proferido pela Relação de Évora, para ver apreciada a conformidade:
Da norma do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal – por violação do direito de acesso aos Tribunais consagrado no artigo 20 da Constituição da República Portuguesa, e da Independência dos Tribunais, consagrada no artigo seu artigo 203º.
Com efeito, a interpretação feita quer no douto despacho recorrido, quer no Acórdão agora proferido, da norma do artigo 371-A do Código de Processo Penal, excluindo da previsão nela feita de lei penal mais favorável os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência, faz enfermar tal norma de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao direito, consagrado no artigo 20 da Constituição da República Portuguesa, e da Independência dos Tribunais, consagrada no artigo seu artigo 203º.”.
O arguido apresentou alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«A. A norma do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido - em que o foi quer no douto despacho recorrido, quer no Acórdão agora proferido - de excluir da previsão nela feita de 'lei penal mais favorável' os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência, faz enfermar tal norma de inconstitucionalidade, por violação do direito de acesso ao direito, consagrado no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, e da Independência dos Tribunais, consagrada no artigo seu artigo 203º;
B. A plenitude do acesso ao direito e da obtenção de uma tutela efetiva só tem relevância se esta compreender, para além do direito ao recurso, o direito a lançar mão do mecanismo previsto no artigo 379.º-A do Código de Processo Penal;
C. Nomeadamente, nos casos em que o regime penal mais favorável decorra da aplicação ou interpretação de normas do processo penal com implicações materiais penais e que contendam diretamente com as garantias do processo Criminal previstas na Constituição. Como é o caso;
D. O caráter da norma prevista no artigo 379.º-A do Código de Processo Penal quebra o princípio constitucional do caso julgado;
E. Não pode, in casu, restringir-se o direito ao recurso à abertura da audiência para aplicação de regime penal mais favorável sob pena de isso representar uma vulnerabilidade ostensiva do direito, por corresponder a uma violação do direito a uma tutela jurisdicional efetiva;
F. Não devem ser admitidas interpretações formalistas ou restritivistas desse direito.
G. O caso julgado não deve ser respeitado sempre que a sua impugnação vise um resultado mais favorável ao arguido, por ele constituir uma garantia do arguido e apenas dele (Conde Correia, 2010: 121);
H. A jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 146 de 30 de julho de 2008 pode e deve ser equiparada a lei, a lei penal mais favorável já que não foi dado a conhecer ao arguido, quer na acusação quer na pronúncia, a norma do artigo 69.º do Código Penal o que significa, in casu, - na esteira da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008, publicado no DR, 1.ª Série, n.º 146 de 30 de julho de 2008 - que não poderia ter sido aplicada ao arguido, ora recorrente, a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista;
I. Aliás, qualquer alteração que se verificasse da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia, nomeadamente qualquer alteração que importasse um agravamento (como era e é o caso), teria necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se pudesse defender. Ao arguido recorrente não foi dada a conhecer qualquer alteração;
J. Concorda-se com o entendimento expresso no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2008, de que 'O processo penal é um processo equitativo e justo, não sendo configurável, num Estado de direito, a possibilidade de ao arguido ser aplicada uma pena sem que disso seja prevenido, isto é, sem que lhe seja dado oportuno conhecimento da possibilidade de que nela pode vir a ser condenado. E a pena acessória é, evidentemente, uma verdadeira pena. Efetivamente, conquanto seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal (como a própria denominação indica), não resulta direta e imediatamente da cominação desta, no sentido de que não é seu efeito automático, o que, aliás, constitui imposição constitucional, decorrente do n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, que estabelece, tal qual o faz o n.º 1 do artigo 65.º do Código Penal, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, constituindo uma sanção autónoma. Aliás, a pena acessória de proibição de conduzir, para muitos, é bem mais gravosa que a pena principal (evidentemente, quando esta é não privativa da liberdade) (...)';
K. Deste novo entendimento/interpretação das normas penais, referentes à sanção acessória de proibição de conduzir, aplicação e consequente fixação de jurisprudência, resulta um regime penal mais favorável ao arguido que não pode deixar de se ter em conta;
L. O que implica que a Sentença proferida nos autos seja nula ao abrigo do disposto no artigo 379.º, n.º 1 alínea b) do Código de Processo Penal e à luz do entendimento do Supremo Tribunal de Justiça que fixou jurisprudência e uma nova interpretação conforme as garantias de defesa do arguido, cuja aplicação retroativa pode e deve, ser efetuada em sede de abertura da audiência;
M. Aliás, entende-se que sempre que esteja em causa a aplicação de um regime penal mais favorável ao arguido (ainda que o mesmo decorra da aplicação ou interpretação de leis processuais penais) deve facultar-se ao arguido a possibilidade de recorrer ao mecanismo previsto no artigo 379.º-A do Código de Processo Penal pois, só assim se assegurará o respeito pelos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição da República Portuguesa;
N. Não existe qualquer violação de princípio da separação de poderes estabelecido na Lei fundamental. Não é disso que se trata aqui;
O. A interpretação feita - quer no douto despacho recorrido, quer no Acórdão agora recorrido -, da norma do artigo 371-A do Código de Processo Penal, excluindo da previsão nela feita de 'lei penal mais favorável' os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência, faz enfermar tal norma de inconstitucionalidade, por violação do principio do Estado de Direito democrático e da proporcionalidade que lhe é inerente e, bem assim, do direito fundamental, do tipo direitos, liberdades e garantias, de acesso ao Direito e à tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo, subordinado a princípios e garantias fundamentais, como sejam os princípios do contraditório e da igualdade, consagrados nos artigos 2.º, 3.º, n.º 2, 18.º, 20.º e 202.º da Constituição da República Portuguesa e ainda no artigo 6.º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, ratificada por Portugal através da Lei n.? 65/78, de 13 de outubro.
P. O direito ao processo equitativo, o due process of law, implica que ninguém pode ser privado da vida (nos Estados em que tal é admitido), da liberdade ou da propriedade sem antes ter sido observado um tipo de processo legalmente previsto para esta finalidade, que também seja justo e adequado.
Q. Esclarece-se que o arguido efetuou dois pedidos de reabertura da audiência para aplicação de lei penal mais favorável com fundamentos diferentes…”
O Ministério Público apresentou contra-alegações em que se pronunciou pela improcedência do recurso.
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Fundamentação
Está em causa nos presentes autos a inconstitucionalidade da norma do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de excluir da previsão nela feita de lei penal mais favorável os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência.
Segundo o arguido, ora Recorrente, tal interpretação normativa é inconstitucional por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, e da independência dos Tribunais, consagrada no artigo 203.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
A questão de constitucionalidade objeto dos presentes autos tem subjacente, no plano do direito infraconstitucional, a questão de saber se os acórdãos de fixação de jurisprudência proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça estão abrangidos pelo conceito de “lei penal mais favorável”, para efeitos da reabertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável, prevista no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.
Esta norma, sob a epígrafe, «Abertura da audiência para aplicação retroativa de lei penal mais favorável», dispõe o seguinte: «[s]e, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime».
Sobre a «génese e fundamento do mecanismo de reabertura de audiência», prevista no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, escreveu-se no Acórdão n.º 164/2008 do Tribunal Constitucional (acessível, como os restantes acórdãos que a seguir se referem, em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) o seguinte:
«7. […] Na sequência de um intenso debate doutrinário – não só sobre a constitucionalidade, mas sobretudo – sobre a justificação político-legislativa da ressalva do caso julgado face ao princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, o legislador ordinário optou por abandonar a anterior redação do n.º 4 do artigo 2º do CP, através da Lei n.º 59/2007, que alterou o Código Penal português.
Em traços largos, e tendo em consideração a diferença de redação do n.º 4 do artigo 2º do CP, antes e após a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, parece que o legislador quis deixar bem claro que o princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável ocorre “sempre”, haja ou não condenação com força de caso julgado formado sobre a questão jurídico-penal controvertida.
Posto isto, no que diz respeito às ações penais em que já exista condenação transitada em julgado, o legislador gizou um sistema dual e articulado que pressupõe: i) por um lado, a aplicação automática da “lex mitior”, mediante a cessação instantânea da execução da pena privativa de liberdade, quando, tendo a nova lei penal de conteúdo mais favorável envolvido uma diminuição do limite máximo previsto na moldura abstrata, o agente já tenha cumprido a pena correspondente a esse limite (cfr. artigo 2º, n.º 4, “in fine”, do CP); ii) por outro lado, a necessidade de reabertura da audiência, nos restantes casos, para efeitos de aplicação de lei penal de conteúdo mais favorável quando o arguido ainda não tenha cumprido o novo limite máximo da pena de prisão aplicável ao crime em causa (cfr. artigo 371º-A do CPP).
8. Importa, portanto, aferir do fundamento do princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável e ponderar se aquele deve ceder, obrigatoriamente, face a uma eventual necessidade de salvaguarda do caso julgado penal.
Para melhor compreender o acolhimento constitucional do princípio da aplicação retroativa da “lex mitior” (cfr. n.º 4 do artigo 29º da CRP), recordam-se os ensinamentos de Levy Maria Jordão (“Commentario ao Codigo Penal Portuguez”, Tomo I, 1853, Lisboa, p. 170-1) segundo os quais “Quando o poder social julga que as penas da lei são nimiamente severas, e que a conservação da ordem social não interessa na sua manutenção, e estabelece por isso uma nova penalidade, não poderia permitir que a factos, ainda mesmo anteriores às suas novas leis, fossem aplicadas as penas da antiga legislação, sem uma injustiça flagrante, sem um contradição manifesta. Além disso cominando uma pena mais suave o Legislador renunciou ao direito que tinha de requerer a aplicação da pena mais forte…”.
A atualidade destas palavras empresta maior ênfase à exigência constitucional de aplicação retroativa da “lex mitior”. A ideia de restrição mínima do direito à liberdade pessoal, ínsita no n.º 2 do artigo 18º da Lei Fundamental, já justificaria, por si só, a aplicação obrigatória da lei penal mais favorável. Isto porque, quando o legislador passa a entender que determinado bem jurídico, constitucionalmente protegido, pode ser suficientemente protegido através de outras medidas que não a sanção penal (ou quando abranda a severidade da respetiva punição) não seria justificável a persistência na aplicação da lei antiga. Se admitíssemos a aplicação de lei penal que, à data da respetiva aplicação, já não preenche a sua função de prevenção geral e de prevenção especial, estaríamos a legitimar uma restrição desproporcionada do direito fundamental do condenado à liberdade, na medida em que foi o próprio Estado quem reconheceu a desnecessidade da lei penal antiga (assim, ver, entre outros, Taipa de Carvalho, “Sucessão de Leis Penais”, 2ª edição revista, Coimbra, 1997, pp. 103 e 104).
Sucede que, a acrescer a esta proibição de restrição desproporcionada do direito à liberdade, a Constituição da República Portuguesa tomou uma opção incontestável pela aplicação retroativa da “lex mitior”, sem que sujeitasse essa retroatividade a qualquer restrição explícita ou implícita (cfr. n.º 4 do artigo 29º da CRP). Conforme sustentado por Gomes Canotilho / Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. I, Coimbra, 2007, pág. 496):
“Não estabelecendo a Constituição qualquer exceção, a aplicação retroativa da lei penal mais favorável (despenalização, penalização menor, etc.) há de valer, pelo menos em princípio, mesmo para os «casos julgados», com a consequente reapreciação da questão, devendo notar-se que, quando a Constituição manda respeitar os casos julgados nos casos de declaração de inconstitucionalidade com efeitos «ex tunc», admite uma exceção exatamente para a lei penal (ou equiparada) mais favorável (cfr. art. 282º-3 e respetiva anotação). De facto, não faz sentido que alguém continue a cumprir uma pena por um crime que, entretanto, deixou de o ser ou que passou a ser punido com pena mais leve”.
O princípio do tratamento mais favorável encontra respaldo em diversos textos de Direito Internacional que protegem os direitos fundamentais do indivíduo e que, por força do n.º 1 do artigo 16º da Constituição Portuguesa, constituem fonte de direitos fundamentais reconhecidos pelo próprio Direito Constitucional português. É o caso do artigo 15º, n.º 1, “in fine”, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (a saber: “Se posteriormente a essa infração a lei previr a aplicação de uma pena mais ligeira, o delinquente deve beneficiar da alteração”). Além disso, é de mencionar ainda o artigo 49º, n.º 1, “in fine”, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, o qual diz o seguinte: “Se, posteriormente à infração, a lei previr uma pena mais leve, deve ser essa a pena aplicada”.
[…]»
A decisão recorrida entendeu que a reabertura da audiência para aplicação de lei penal mais favorável, nos termos do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, pressupõe a existência de uma lei penal mais favorável que possa ser aplicável, não podendo ser considerado como tal o Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/2008, de 25-06-2008, publicado no Diário da República – 1.ª Série, n.º 146, de 30/07/2008, com base no qual o recorrente pretendia a reabertura da audiência.
Ainda segundo a decisão recorrida, um acórdão de fixação de jurisprudência não é lei penal mais favorável, uma vez que não é lei, não tem força de lei, não sendo fonte imediata de direito, pelo que, pretender que o mencionado Acórdão de Fixação de Jurisprudência seja equiparado a lei para efeitos da reabertura da audiência prevista no citado artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, significaria uma violação da independência do tribunal de julgamento, que decidiu livremente e de forma exclusivamente vinculada à lei.
O recorrente, por sua vez, nas suas alegações, sustenta que a referida interpretação da norma do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, no sentido de não se incluir na previsão nela feita de “lei penal mais favorável” os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência, enferma de inconstitucionalidade, por violação do disposto no artigo 20.º da Constituição, bem como da independência dos tribunais, consagrada no artigo 203.º também da Constituição.
Ainda segundo o recorrente, a plenitude do acesso ao direito e da obtenção de uma tutela efetiva só tem relevância se esta compreender, para além do direito ao recurso, o direito a lançar mão do mecanismo previsto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal, sustentando que sempre que esteja em causa a aplicação de um regime penal mais favorável ao arguido (ainda que o mesmo decorra da aplicação ou interpretação de leis processuais penais) deve ser-lhe facultada a possibilidade de recorrer a tal mecanismo, uma vez que só assim se assegurará o respeito pelos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição da República Portuguesa.
Cumpre, pois, apreciar.
O artigo 20.º da CRP garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).
A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange nomeadamente: (a) o direito de ação, no sentido do direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional; (b) o direito ao processo, traduzido na abertura de um processo após a apresentação daquela pretensão, com o consequente dever de o órgão jurisdicional sobre ela se pronunciar mediante decisão fundamentada; (c) o direito a uma decisão judicial sem dilações indevidas, no sentido de a decisão haver de ser proferida dentro dos prazos preestabelecidos, ou, no caso de estes não estarem fixados na lei, dentro de um lapso temporal proporcional e adequado à complexidade da causa; (d) o direito a um processo justo baseado nos princípios da prioridade e da sumariedade, no caso daqueles direitos cujo exercício pode ser aniquilado pela falta de medidas de defesa expeditas (veja-se, neste sentido, entre outros, o Acórdão n.º 440/94).
O direito de ação ou direito de agir em juízo terá de efetivar-se através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo materialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais.
A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente através dos seguintes princípios: (1) direito à igualdade de armas ou igualdade de posição no processo, sendo proibidas todas as diferenças de tratamento arbitrárias; (2) proibição da indefesa e direito ao contraditório, traduzido fundamentalmente na possibilidade de cada uma das partes invocar as razões de facto e direito, oferecer provas, controlar a admissibilidade e a produção das provas da outra parte e pronunciar-se sobre o valor e resultado de umas e outras; (3) direito a prazos razoáveis de ação e de recurso, sendo proibidos os prazos de caducidade demasiados exíguos; (4) direito à fundamentação das decisões; (5) direito à decisão em prazo razoável; (6) direito de conhecimento dos dados do processo (dossier); (7) direito à prova; (8) direito a um processo orientado para a justiça material (Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição Revista, Coimbra Editora, 2007, Volume I, págs. 415 e 416).
A exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Contudo, impõe, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva.
Sendo estas as dimensões em que se concretiza este princípio, não se vê de que forma a interpretação normativa em análise o possa ter colocado em causa.
Com efeito, o mecanismo da reabertura da audiência previsto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal visa concretizar o princípio da aplicação retroativa da lei penal mais favorável, mesmo nos casos em que já haja condenação, com trânsito em julgado, sobre a questão jurídico-penal controvertida. Permite-se, assim, a aplicação de uma norma ou quadro normativo que não existia à data em que as diversas instâncias judiciais se pronunciaram sobre a causa, sendo que ao arguido também não era possível pugnar pela sua aplicação de tal regime jurídico que, então, não estava ainda em vigor.
Esta situação já não se verifica, no entanto, quando, após o trânsito em julgado da decisão, tenha sido proferido acórdão de fixação de jurisprudência que tenha por objeto a interpretação de uma norma ou a apreciação de determinada questão jurídica. Nessa hipótese, não há alteração, em sentido mais favorável ao arguido, de uma norma jurídica ou de um quadro normativo, em resultado de uma reponderação por parte do legislador do regime jurídico anteriormente vigente. Isto é, não estamos perante uma intervenção do legislador no sentido de passar a entender que determinado bem jurídico, constitucionalmente protegido, pode ser suficientemente protegido através de outras medidas menos gravosas que as previstas em lei anterior. Em suma, não está em causa a entrada em vigor, após o trânsito em julgado, de normas jurídicas que, a existirem anteriormente, seriam convocáveis para a resolução concreta do caso. Está em questão apenas o facto de ter sido proferida uma decisão jurisprudencial que, perante uma mesma questão de direito que mereceu decisões do Supremo Tribunal de Justiça (ou dos Tribunais da Relação, na hipótese prevista no artigo 437.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) em sentido oposto, procedeu à resolução desse conflito de jurisprudência, mas que «não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais», devendo estes, no entanto, «fundamentar as divergências relativas à jurisprudência ficada naquela decisão» (cfr. art. 445.º, n.º 3 do Código de Processo Penal).
Assim, face à natureza jurídica dos acórdãos de fixação de jurisprudência, que não podem considera-se como leis, nem têm o mesmo tipo de força vinculativa, os fundamentos acima expendidos, e que estão na base da reabertura da audiência para aplicação da lei penal mais favorável, não lhes são aplicáveis. Com efeito, e como é sabido, o atual regime dos acórdãos de fixação de jurisprudência resultou de uma opção legislativa subsequente à decisão do Tribunal Constitucional que, no acórdão n.º 743/1996, decidiu declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, da norma do artigo 2.º do Código Civil, na parte em que atribui aos tribunais competência para fixar doutrina com força obrigatória geral, por violação do disposto no artigo 115.º, n.º 5, da Constituição. Sobre esta questão, no acórdão 810/1993, para o qual remete o referido acórdão 743/1996, escreveu-se o seguinte:
«[…]
O Tribunal Constitucional, sem nunca haver considerado expressamente o tema da validade constitucional do instituto em apreço, e embora com o único fito de avaliar da sua adequação ao conceito de norma, como pressuposto de sujeição a um juízo de constitucionalidade, teve ensejo de definir que 'a fixação de doutrina com força obrigatória geral operada através dos assentos, traduz a existência de uma norma jurídica com eficácia erga omnes, em termos de, quanto a ela, ser possível o acionamento do processo de fiscalização abstrata sucessiva de constitucionalidade' (cfr. Acórdãos nºs 8/87 e 359/91, Diário da República, I série, de, respetivamente, 9 de Fevereiro de 1987 e 15 de outubro de 1991).
Esta mesma caracterização dos assentos como atos normativos foi também assumida, nomeadamente, nos Acórdãos nºs 40/84, 68/86 e 104/86, Diário da República, II série, de, respectivamente, 7 de julho de 1984, 7 de junho e 4 de agosto de 1986, havendo-se escrito no primeiro destes arestos, nomeadamente: 'o caráter normativo dos assentos é, na verdade, irrecusável, face ao disposto no artigo 2º do Código Civil, segundo o qual os tribunais podem fixar `doutrina com força obrigatória geral''. Os assentos interpretativos - espécie de assentos sobre os quais se centrará doravante a nossa atenção - fixam o sentido juridicamente relevante de um preceito preexistente e com ele a partir daí se confundem (...). A norma a que se dirige tal tipo de assento, de norma de interpretação variável evolui, por força da valoração jurídica sobreposta que aquele consequência, a norma de interpretação estável ou, pelo menos, mais estável (o assento, como norma jurídica, também é suscetível de interpretação). A norma visada sofre, por via do assento interpretativo, profunda recomposição: é uma nova norma, deste modo recomposta, que passa a existir no direito positivo. Há pois como que uma fusão entre a norma atingida e a norma do assento que a modula'.
Com efeito, nesta linha de entendimento e à luz de tudo quanto vem de se expor, há de afirmar-se que os assentos se apresentam com caráter prescritivo, constituindo verdadeiras normas jurídicas com o valor de 'quaisquer outras normas do sistema', revestidas de caráter imperativo e força obrigatória geral, isto é, obrigando não apenas os tribunais, mas todas as restantes autoridades, a comunidade jurídica na sua expressão global.
No dizer denso e impressivo de Castanheira Neves, constituem os assentos 'uma prescrição jurídica (imperativo ou critério normativo-jurídico obrigatório) que se constitui no modo de uma norma geral e abstrata, proposta à pré-determinação normativa de uma aplicação futura, susceptível de garantir a segurança e a igualdade jurídicas, e que não só se impõe com a força ou a eficácia de uma vinculação normativa universal como se reconhece legalmente com o caráter de fonte de direito'.
[…]»
E mais adiante, o Tribunal fundamentou o juízo de inconstitucionalidade respeitante à norma do artigo 2.º do Código Civil, essencialmente, nos seguintes argumentos:
«[…]
Já se observou que a génese da colisão constitucional da norma do artigo 2º do Código Civil, radica no facto de os assentos se arrogarem o direito de interpretação ou integração autêntica da lei, com força obrigatória geral, assumindo assim a natureza de atos não legislativos de interpretação ou integração das leis.
A disposição genérica contida naquela norma relativamente à força vinculativa geral dos assentos esteve na origem da eliminação do nº 2 do artigo 769º do Código de Processo Civil de 1961 que, numa linha de continuidade do artigo 768º do Código de Processo Civil de 1939, prescrevia que a doutrina assente pelo acórdão que resolvesse o conflito de jurisprudência seria 'obrigatória para todos os tribunais'.
E deste modo, a disputa que se vinha travando sobre o valor jurídico a atribuir aos assentos a partir daquele preceito (o único que contemplava tal matéria) - para uns, os assentos apenas vinculariam os tribunais hierarquicamente subordinados aquele que os houvesse emitido, enquanto para outros, dispunham de uma vinculação normativa idêntica às das normas gerais do sistema jurídico - veio a ser expressamente resolvida através da consagração do entendimento doutrinal que perfilhava a eficácia geral e incondicionada dos assentos, isto é, a vinculação normativa geral própria das fontes de direito.
Por outro lado, como também já se referiu, o Código de Processo Civil de 1961 suprimiu a possibilidade de modificação dos assentos constante do artigo 769º do Código de 1939, possibilidade essa já contemplada no artigo 66º do Decreto nº 12353 que, por seu turno, recebera inspiração no Decreto nº 4620.
A consagração de um tal sistema, rígido e imutável, para além de anquilosar e impedir a evolução da jurisprudência, necessariamente ditada pelo devir do direito e da sua adequada realização histórico-concreta, contraria manifestamente o sentido mais autêntico da função jurisprudencial.
Ora, tanto a eficácia jurídica universal atribuída à doutrina dos assentos, como o seu caráter de imutabilidade, não só se apresentam como atributos anómalos relativamente à forma inicial da sua instituição em 1939, mas também se configuram como formas de caracterização inadequada de um instituto que visa a unidade do direito e a segurança da ordem jurídica.
E parece poder afirmar-se que, desprovida desta caracterização, isto é, sem força vinculativa geral e sujeita, em princípio, à contradita das partes e à modificação pelo próprio tribunal dela emitente, aquela doutrina perderá a natureza de ato normativo de interpretação e integração autêntica da lei.
Desde que a doutrina estabelecida no assento apenas obrigue os juízes e os tribunais dependentes e hierarquicamente subordinados àquele que o tenha emitido, e não já os tribunais das outras ordens nem a comunidade em geral, deixa de dispor de força obrigatória geral o que representa, no entendimento de Marcello Caetano, a perda automática do valor que é próprio dos atos legislativos (cfr. ob. loc. cit.).
Com efeito, desde que o Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto pelas partes, disponha de competência para proceder à revisibilidade dos assentos - e não cabe a este Tribunal pronunciar-se sobre os pressupostos e a amplitude do esquema processual a seguir em ordem à concretização desse objetivo - a eficácia interna dos assentos, restringindo-se ao plano específico dos tribunais integrados na ordem dos tribunais judiciais de que o Supremo Tribunal de Justiça é o órgão superior da respetiva hierarquia, perderá o carácter normativo para se situar no plano da mera eficácia jurisdicional e revestir a natureza de simples 'jurisprudência qualificada'.
E assim sendo, a norma do artigo 2º do Código Civil, entendida como significando que os tribunais podem fixar, por meio de assentos 'doutrina obrigatória para os tribunais integrados na ordem do tribunal emitente, suscetível de por este vir a ser alterada', deixará de conflituar com a norma do artigo 115º, nº 5 da Constituição.
É que, com tal sentido, o assento não representa já um ato normativo não legislativo capaz de, com eficácia externa, fazer interpretação ou integração autêntica das leis.
Mas, neste quadro de caracterização normativo-processual do instituto, o facto de aos juízes dos tribunais integrados na ordem do tribunal emitente do assento, (até mesmo os deste tribunal enquanto não se operar a sua reversibilidade), ser imposta a aplicação da doutrina nele contida, não representará violação da sua independência decisória?
Tem-se por seguro que não.
Com efeito, não acompanhando embora o entendimento de Marcello Caetano no sentido de que 'existindo uma hierarquia de tribunais, admite-se que a decisão do superior possa ser tornada obrigatória para os que dele dependam, exatamente como as instruções na hierarquia administrativa' (cfr. ob. loc. cit.), e tendo bem presente o princípio da independência dos tribunais consagrado no artigo 206º da Constituição, há de ponderar-se que a definição jurisprudencial contida na decisão do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos propostos, não envolve prejuízo da autonomia da interpretação do direito que se compreende na independência dos tribunais.
Uma tal definição jurisprudencial, provinda do mais alto tribunal da hierarquia dos tribunais judiciais (no presente processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, apenas importa considerar os assentos do Supremo Tribunal de Justiça) sem eficácia externa erga omnes, e suscetível, em princípio, de impugnação processual pelas partes interessadas na causa, há de ter-se como adequado elemento integrativo da própria estrutura jurisdicional de que promana. A subordinação devida pelos tribunais àquela jurisprudência, tem algo de comum com a generalidade das decisões proferidas em via de recurso às quais é devido acatamento mesmo quando delas dissintam os juízes dos tribunais de instância.
Aliás, a própria Constituição, no artigo 281º, nº 3, regendo sobre a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade ou ilegalidade de qualquer norma, julgada inconstitucional ou ilegal pelo Tribunal Constitucional em três casos concretos, não impondo embora uma automática e obrigatória intervenção do Tribunal em tal sentido, instituiu um sistema cuja matriz também radica na unidade do direito e, de algum modo, na uniformidade da jurisprudência.
Este afloramento constitucional do valor da uniformização jurisprudencial há de ser entendido em termos de, numa perspetiva global do funcionamento do sistema judiciário, justificar a subordinação de todos os tribunais judiciais à 'jurisprudência qualificada' do Supremo Tribunal de Justiça sem que, de tal subordinação, resulte comprometida a sua independência decisória.
[…]»
Ou seja, contrariamente ao que se poderia afirmar a propósito dos antigos “assentos”, os tribunais judiciais não estão vinculados à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, devendo contudo fundamentar as divergências em relação a tal jurisprudência. O acórdão de fixação de jurisprudência não tem, assim, força normativa geral, nem é vinculativo para as demais instâncias judiciais, dispondo apenas de uma força argumentativa especial que impõe, aos tribunais que se afastem da jurisprudência fixada, um dever de especial fundamentação.
Por outro lado, nesta situação, porque o quadro normativo se mantém idêntico, o arguido não estava impossibilitado de, no decurso do processo em que foi proferida a decisão condenatória transitada em julgado, invocar em sua defesa a norma ou regime jurídico com base no qual, posteriormente ao trânsito em julgado da referida decisão condenatória, o Supremo Tribunal de Justiça veio a proferir acórdão de fixação de jurisprudência.
Assim, é forçoso concluir que, na ponderação a efetuar entre o respeito pelo caso julgado e a aplicação retroativa de lei penal mais favorável, o afastamento da solução interpretativa defendida pelo arguido não tem por base critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados.
Conclui-se, assim, face à natureza jurídica dos acórdãos de fixação de jurisprudência, que os fundamentos acima expendidos e que estão na base da reabertura da audiência para aplicação da lei penal mais favorável, não lhes são aplicáveis, não se vendo em que termos a sua não equiparação a “lei penal mais favorável” para esse efeito possa colocar em causa as normas e princípios constitucionais invocados pelo arguido, designadamente, o princípio do estado de direito democrático e da proporcionalidade que lhe é inerente, ou o direito à tutela jurisdicional efetiva e do processo equitativo, ou a independência dos tribunais.
Pelo exposto, há que concluir que a interpretação normativa sindicada não viola qualquer norma ou princípio constitucional, devendo ser negado provimento ao recurso interposto.
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Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma do artigo 371.º-A do Código de Processo Penal quando interpretada no sentido de excluir da previsão nela feita de “lei penal mais favorável” os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência;
e, consequentemente,
b) negar provimento ao recurso.
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Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 4 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 5 de dezembro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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