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Processo n.º 899/12
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O Ministério Público interpôs ação com vista à destituição dos corpos gerentes da Fundação Dr. A., instituição particular de solidariedade social, contra B., agora recorrente, entre outros, no Tribunal Judicial do Entroncamento. Este tribunal veio a decretar a destituição, nomeadamente, do recorrente, pela prática reiterada de atos de gestão prejudiciais aos interesses da Fundação.
Inconformado, interpôs recurso de apelação da sentença para o Tribunal da Relação de Évora, que a revogou e absolveu os requeridos do pedido.
2. De seguida veio o Ministério Público a interpor recurso de revista do acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça. Este Tribunal concedeu a revista e revogou o acórdão recorrido, repondo a sentença proferida pelo Tribunal Judicial do Entroncamento em acórdão de 24 de maio de 2012.
3. Após pedido de aclaração e arguição de nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, e vendo a sua pretensão negada, veio o recorrente agora interpor recurso para este Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e f) da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, doravante designada por LTC).
4. Por se entender que o requerimento não identificava claramente qual a decisão recorrida e qual a exata interpretação normativa acolhida na decisão recorrida que se pretendia ver apreciada pelo Tribunal Constitucional, foi o recorrente convidado a dar integral cumprimento ao artigo 75.º-A da LTC.
Em resposta ao convite, o recorrente veio apresentar o seguinte requerimento (cfr. fls. 1739 dos autos):
“Identificação do acórdão recorrido: O Acórdão do S.T.J. Proferido em 24-05-2012, que concedeu a revista e revogou o acórdão recorrido proferido pelo Tribunal da Relação de Évora.
Definição do objeto do Recurso: O Acórdão recorrido aplicou uma norma — art. 35º, nº 1 do D.L. 119/83 de 25 fevereiro — que faz parte de um DL que padece ele todo de uma inconstitucionalidade originária, formal e orgânica, cm virtude do governo autor do citado diploma não ter uma autorização legislativa da Assembleia da Repúb1ica, sendo que as matérias versadas no citado diploma (direitos, liberdades e garantias) são da reserva relativa da sua competência legislativa (cfr. art. 168º n º1 a1. b) estando a versão deste artigo hoje plasmada no art. 165º nº 1, al. b) da C.R.P.).
Assim, o Acórdão recorrido do S.T.J., no nosso modesto entendimento, tinha competência para rejeitar ou não aplicar a norma do art. 35º, nº 1 do D.L. 119/83 de 25 fevereiro, por fazer parte de um diploma - D.L. 119/83 de 25 fevereiro — inconstitucional.
Por outro lado,
Se assim não for entendido, e, subsidiariamente, requer-se que seja apreciada a interpretação do acórdão recorrido rc1ativamente ao art. 35° do Estatuto das IPSS, uma vez que o acórdão recorrido entende que os atos de gestão aí referidos não são só os atos de gestão de que resultem prejuízos patrimoniais para a Instituição.
Assim, o Acórdão recorrido, no nosso modesto entendimento, violou o princípio da interpretação conforme a Constituição ao não interpretar a norma do art. 35° no sentido de que os atos de gestão aí referidos são aqueles de que resultam apenas prejuízos patrimoniais para a Instituição.”
5. Notificadas as partes para apresentar alegações, e sendo convidadas a pronunciar-se sobre a possibilidade de não conhecimento do mérito do recurso quanto ao pedido subsidiário por falta de objeto normativo e/ou por falta de suscitação procedimentalmente adequada, veio o recorrente apresentar alegações com as seguintes conclusões:
“1. O Decreto Lei l19/83 de 25 fevereiro é inconstitucional;
2. Inconstitucionalidade essa originária formal e orgânica;
3. Por outro lado, a interpretação da norma do art. 35°, nº 1 do DL 119/83 dada pelo S.T.J. Padece de inconstitucionalidade no sentido da ausência e falta de prova do prejuízo patrimonial, sendo que são apenas os atos de gestão que impliquem prejuízo patrimonial a que se refere o art. 35° .
4. A interpretação adotada pelo acórdão no tocante ao art. 35° do D.L. N° 119/83 ofende os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade bem como os princípios da certeza e segurança jurídica que o Lei fundamental visa garantir.
5. Foi violado o princípio da interpretação conforme a Constituição;
6. Mostram-se violados entre outros, bem como o seu correto entendimento, os arts. 13°, 17°, 168º, n° l, al. b) (anterior versão), 165º nº 1 b) (atual versão) todos da Constituição da República Portuguesa.
Termos em que deve ser revogada a decisão proferida pelo Tribunal a quo substituindo-a por outra que julgue o DL l19/83 de 25 de fevereiro, ou que julgue a interpretação feita ao art. 35° do referido diploma inconstitucional.
Tudo com as legais consequências.
Fazendo uma vez mais, Vs. Ex.as
Sã, Serena e Objetiva Justiça”
6. Por seu lado, o Ministério Público veio apresentar alegações, pronunciando-se no sentido do não conhecimento do recurso. Relativamente à alegação de inconstitucionalidade do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro, na sua globalidade, por falta de suscitação processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade, bem como por falta de identificação adequada da norma em causa. Quanto ao pedido formulado subsidiariamente, por falta de suscitação processualmente adequada e atempada.
7. Notificado para se pronunciar sobre as alegações do Ministério Público no sentido do não conhecimento total do mérito do recurso, veio o recorrente reiterar o entendimento de dever o mesmo ser conhecido em toda a sua extensão.
Cumpre decidir.
II – Fundamentação
8. O presente recurso vem interposto ao abrigo das alíneas b) e f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC (cfr. requerimento, fls. 1723 dos autos)
É, desde logo, de afastar o recurso com base na alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
De facto, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, é admissível recurso para o Tribunal Constitucional das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja ilegalidade haja sido suscitada durante o processo com qualquer dos fundamentos referidos nas alíneas c), d) e e)» do mesmo preceito. Trata-se, portanto, de um recurso com fundamento em ilegalidade de norma por violação de lei de valor reforçado, previsto no artigo 280.º, n.º 2, alínea d), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Ora, não se vislumbra – e não foi invocada – qualquer questão de ilegalidade cognoscível pelo Tribunal Constitucional e suscetível de lhe servir de base. Em parte alguma do requerimento ou do respetivo processo se fundamentou a arguição de «ilegalidade» da referida norma em «violação de lei com valor reforçado» ou em «violação do estatuto da região autónoma ou de lei geral da República».
Não se cumpre, portanto, este requisito legal para a admissão do recurso.
9. O presente recurso também vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, sendo ainda indispensável que a norma cuja inconstitucionalidade se requer tenha constituído o fundamento normativo da decisão recorrida. Para além da exigência de objeto normativo, este tribunal tem entendido serem ainda requisitos de admissibilidade do recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a suscitação prévia da questão da constitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal recorrido (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP, e artigo 72.º, n.º 2, da LTC) e o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC).
O ónus de suscitação atempada e processualmente adequada da questão de constitucionalidade não traduz um simples dever de cooperação do recorrente com o Tribunal, antes uma exigência formal essencial, como tem sido entendido pelo Tribunal Constitucional (cfr., entre muitos outros, Acórdãos n.os 156/00 e 195/06, disponíveis em www.tribconstitucional.pt).
O recurso em análise suscita a seguinte questão de admissibilidade do seu conhecimento relativamente ao pedido “subsidiariamente” formulado pelo recorrente, de apreciação da conformidade constitucional da interpretação dada pelo acórdão recorrido ao “art. 35.º do Estatuto das IPSS”: ausência de suscitação atempada da inconstitucionalidade.
10. Recorda-se que para o conhecimento pelo Tribunal Constitucional de um pedido de fiscalização concreta da constitucionalidade é necessário que em fase anterior à do requerimento de recurso para este Tribunal, no decurso do processo, o recorrente tenha identificado expressamente a questão de inconstitucionalidade, de forma expressa, direta e clara de modo a criar para o Tribunal a quo o dever de pronúncia sobre a matéria em causa. Como tem sido entendimento uniforme do Tribunal Constitucional, a identificação da inconstitucionalidade deve ser feita em termos de o Tribunal «a poder enunciar na decisão, de modo a que os respetivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada em tal sentido» (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, o recorrente não suscitou a questão de inconstitucionalidade material do artigo 35.º do Estatuto das Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro, perante o tribunal recorrido, dando-lhe oportunidade de abordar e solucionar tal problema jurídico.
De facto, o recorrente apenas invocou a inconstitucionalidade do artigo 35.º do Estatuto das IPSS em requerimento de arguição de nulidade e pedido de aclaração do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de que agora recorre (cfr. fls. 1686 a 1698, em especial fls. 1697). Assim, esta invocação apenas ocorreu após a prolação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, num momento processual em que este tribunal já não se podia pronunciar sobre tal matéria e, consequentemente, posterior ao esgotamento do poder jurisdicional deste Tribunal quanto ao litígio em causa.
Na medida em que a aplicação do preceito suscitado, na interpretação que lhe é dada pelo tribunal recorrido e pelo tribunal que decidiu a causa em primeira instância, é uma das questões de fundo do processo, não pode o recorrente alegar surpresa na sua aplicação.
Assim, ao não cumprir este seu ónus, o recorrente não concedeu ao tribunal perante o qual a questão foi colocada a possibilidade de decidir sobre a inconstitucionalidade da norma supostamente em questão. Por força deste fundamento, é legalmente inadmissível conhecer do objeto do presente recurso quanto à questão de constitucionalidade material relativa ao artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro.
11. Subsiste, todavia, a questão da inconstitucionalidade orgânica que o recorrente suscitou em tempo oportuno (cfr., por exemplo, as contra-alegações da revista, fls. 1570-1) e de forma adequada. Na verdade, e diferentemente do entendimento perfilhado pelo Ministério Público, o recorrente identifica devidamente o objeto do pedido de apreciação de inconstitucionalidade formulado, consistindo este no Estatuto das IPSS aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro, globalmente considerado, diploma onde se insere o preceito legal em que se sustentou a razão de decidir da decisão recorrida: o artigo 35.º.
12. Sustenta o requerente que, por o Decreto-Lei n.º 119/83, de 23 de fevereiro, versar matéria de direitos, liberdades e garantias, invadiu o domínio da reserva de competência legislativa da Assembleia da República, o que, nas alegações que apresentou, desenvolve do seguinte modo:
«O Decreto-Lei n.º 119/83 é um diploma da responsabilidade do Governo, emitido no uso da competência legislativa normal, ao abrigo do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 201.º da CRP. Tendo este diploma, todavia, como objeto direitos fundamentais, como a liberdade de associação, deveria o governo ter-se munido da necessária autorização legislativa da Assembleia da República por versar matéria de reserva relativa da competência legislativa desta última – artigo 168.º, n.º 1 b) da Constituição vigente ao tempo da publicação do diploma em análise, hoje, artigo 165.º, n.º 1. Verifica-se, portanto, uma inconstitucionalidade originária formal e orgânica do DL n.º 119/83.»
A argumentação do recorrente encontra suporte doutrinário na posição sustentada por Licínio Lopes, As Instituições Particulares de Solidariedade Social, Almedina, 2009, p. 156. De acordo com este Autor, «tratando-se de um diploma que interfere com a liberdade de associação e com o seu exercício, devia pelo menos ter sido objeto de uma prévia autorização legislativa por parte da Assembleia da República» (Licínio Lopes, As Instituições Particulares de Solidariedade Social, cit., p. 156).
13. Importa, assim, começar por apurar se o diploma em apreço versa sobre matéria que se insere na reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República. É, com efeito, esse o fundamento do pedido do requerente quando sustenta que, por disciplinar a liberdade de associação, o Decreto-Lei n.º 119/83 deveria ter sido objeto de lei da Assembleia da República, estando vedado ao Governo legislar sobre matéria de direitos, liberdades e garantias, a menos que, para tanto, obtenha a devida autorização legislativa (cfr. artigos 165.º, n.º 1, alínea b) e 198.º, n.º 1, alínea b) da CRP; ao tempo, artigos 168.º, n.º 1, alínea b) e 201.º, n.º 1, alínea b)).
Para avaliar a conformidade orgânica do diploma em referência é, pois, decisivo apurar se o seu conteúdo normativo abrange matéria de direitos, liberdades e garantias, o que implica apurar se os preceitos que o integram contêm, efetivamente, e como vem sustentado, aspetos relativos à liberdade de associação, consignada no artigo 46.º da CRP. Em momento posterior, na resposta afirmativa àquela questão, seria preciso determinar se estaria em causa o núcleo essencial daquele direito fundamental – que é o conteúdo abrangido pela reserva de competência legislativa parlamentar fixada pela alínea b) do n.º 1 do artigo 165.º.
Refira-se, neste momento inicial, que a única dimensão do direito de associação de algum modo convocável na apreciação do diploma é a contemplada no n.º 2 do artigo 46.º da CRP - a liberdade da associação, que constitui o direito da própria associação a organizar-se e prosseguir a sua atividade livremente. Na verdade, o que está em causa nos autos é a aplicação de um regime especial a determinada pessoa coletiva. Não, a criação de um ente novo.
Dispõe, com efeito, o n.º 2 do artigo 46.º da CRP: «As associações prosseguem livremente os seus fins sem interferência das autoridades públicas e não podem ser dissolvidas pelo Estado ou suspensas as suas atividades senão nos casos previstos na lei e mediante decisão judicial». Esta garantia constitucional abrange vários segmentos de proteção, desdobrando-se em «dimensões essenciais da liberdade de associação, designadamente a liberdade de auto-organização, o autogoverno e a autogestão, consubstanciadas na autonomia estatutária (não podendo os estatutos das associações estar dependentes de qualquer aprovação ou sanção administrativa e, muito menos, ser impostos pelas autoridades); a liberdade de escolha dos seus órgãos (não podendo a designação dos órgãos diretivos da associação estar dependente de qualquer aprovação ou controlo administrativo, e, muito menos, de imposição administrativa) e a liberdade de gestão (não podendo os seus atos ficar dependentes de aprovação ou referenda administrativa)» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 646; e, na jurisprudência constitucional, v.g. os Acórdãos n.os 18/2006 e 119/2010).
A questão sub judice prende-se, portanto, com a conformidade do Estatuto das IPSS com este preceito constitucional.
14. Começa-se, por isso, por analisar o regime jurídico disciplinador das IPSS – organizações privadas inseridas no setor cooperativo e social.
Como já foi referido, o Estatuto das IPSS foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83. Este diploma - entretanto alterado pelos Decretos-Leis n.º 9/85, de 9 de janeiro, n.º 402/85 de 11 de outubro, n.º 89/85, de 1 de abril e n.º 29/86, 19 de fevereiro - define o regime jurídico das IPSS, modelo de concretização da solidariedade social através de organizações privadas submetidas a fiscalização estadual. Como se salienta no respetivo preâmbulo (n.º 2), o «estatuto contém essencialmente normas respeitantes à constituição, modificação, extinção e organização interna das instituições, bem como a enunciação dos poderes de tutela atribuídos ao Estado». Com efeito, as IPSS são pessoas coletivas de utilidade pública “sem finalidade lucrativa” e que se constituem, “por iniciativa de particulares com o propósito de dar expressão organizada ao dever moral de solidariedade e de justiça entre os indivíduos” (artigo 1.º do Estatuto das IPSS). É neste contexto que deve ser compreendida a especialidade do seu regime jurídico, contendo tanto privilégios como limitações especiais, bem como o direito ao apoio financeiro do Estado e a sujeição à tutela administrativa.
Como estatui o n.º 1 do artigo 2.º do Estatuto, as IPSS revestem necessariamente uma das seguintes formas: associação (associações de solidariedade social, associações de voluntários de ação social e associações de socorros mútuos), fundação (fundações de solidariedade social) ou irmandade da misericórdia, podendo agrupar-se em uniões, federações e confederações (artigo 2.º, n.º 2).
O diploma versa sobre o modelo de organização interna e externa das instituições particulares de solidariedade social. Do conjunto das normas legais que caracterizam o regime jurídico ali previsto, cumpre destacar o princípio da autonomia institucional (artigo 3.º), o princípio do apoio do Estado e das autarquias locais (artigo 4.º), os direitos dos beneficiários (artigo 5.º), as regras sobre criação, organização, gestão e extinção (artigos 9.º a 31.º) e as normas sobre tutela administrativa (artigos 32.º a 39.º).
A questão colocada nos autos implica que se analise o regime de tutela definido no Estatuto das IPSS, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 119/83 e, em especial, o regime previsto no seu artigo 35.º. O diploma em análise ocupa-se do regime de tutela das IPSS na secção III do Capítulo I. De entre as normas ali previstas, conta-se a determinação de sujeição dos orçamentos e contas das IPSS a visto dos serviços competentes (artigo 33.º), podendo estes ordenar a realização de sindicâncias, inquéritos e inspeções às instituições e seus estabelecimentos (artigo 34.º). Entre outras prerrogativas confiadas à tutela estadual, como a consistente na requisição de bens pelo ministro da tutela (artigo 38.º), surge a norma aplicada na decisão recorrida: o artigo 35.º, n.º 1. Este preceito confere a possibilidade de os órgãos de tutela pedirem a destituição dos corpos gerentes no caso de verificação de prática reiterada de atos de gestão prejudiciais aos interesses das instituições.
Às IPSS aplica-se, assim, como resulta das regras referidas, um regime especial de tutela estadual que, neste ponto, se distancia, com efeito, do regime comum decorrente da liberdade de associação. Esse regime resulta, aliás, de uma longa tradição:
«É tradicional no nosso direito que estas pessoas coletivas [de utilidade pública], conquanto privadas, tenham um regime jurídico específico traçado pelo Direito Administrativo.
Sempre se entendeu, na verdade, que sendo instituições que reúnem avultados patrimónios, normalmente por dádiva generosa de particulares, é necessário fiscalizá-las para que não haja dissipação de bens, e para que as pessoas encarregadas de feri-las não administrem os patrimónios no seu interesse pessoal, mas no interesse geral que presidiu à afetação desses bens aos respetivos fins.» (Diogo Freitas dos Amaral, Curso de Direito Administrativo, Almedina, 3ª edição, vol. I, p. 739).
O fundamento para esse regime especial encontra-se no interesse público prosseguido pelas IPSS. É neste contexto que deve ser compreendida a especialidade do seu regime jurídico, contendo tanto privilégios como limitações especiais, bem como o direito ao apoio financeiro do Estado e a sujeição à tutela administrativa
15. A caracterização das formas que podem ser assumidas pelas IPSS é um aspeto central para a questão colocada nos autos.
Esta questão é bastante específica: deve-se considerar que o regime descrito supra diz respeito a direitos, liberdades e garantias – em concreto, à liberdade de organização interna de uma associação –, estando por isso sujeito à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República prevista no artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, ou não.
A resposta é negativa.
Desde logo porque, como foi referido e decorre do artigo 2.º, n.º 2, do Estatuto, as IPSS não têm que ter necessariamente uma base associativa, podendo assumir outras formas. O direito de associação não é, assim, convocável para a presente apreciação. O que é, aliás, demonstrado pelos próprios autos, já que a IPSS em questão tem a forma de fundação.
Tratando-se de uma IPSS, o parâmetro normativo constitucional convocável é outro: o artigo 63.º, n.º 5, da Constituição, que prevê a sujeição das instituições particulares de solidariedade social, e outras de reconhecido interesse público sem caráter lucrativo, ao apoio e à fiscalização estadual. Existe, assim, base constitucional para um tratamento diferenciado destas instituições e um parâmetro próprio para o controlo da constitucionalidade do Estatuto das IPSS neste aspeto.
A forma associativa é apenas uma de diversas formas ou tipos possíveis através dos quais a iniciativa particular pode contribuir, de forma organizada, para a realização de fins que interessam ao Estado-coletividade, constituindo uma IPSS (Licínio Lopes, As Instituições Particulares de Solidariedade Social, cit., pp. 95-96). Como se pode verificar no artigo 2.º do Estatuto das IPSS, estas abrangem outras realidades organizativas para além das formas associativas ou fundacionais – incluindo, também por exemplo, as irmandades da misericórdia, as santas casas da misericórdia (e outras instituições de direito canónico), as cooperativas de solidariedade social e as casas do povo.
Assim, a assunção, por parte dos instituidores de uma IPSS, da forma associativa é apenas uma questão instrumental para a prossecução de determinado fim – é uma das formas entre várias que podem ser assumidas, voluntariamente pelos particulares neste domínio.
16. O Estatuto das IPSS não tem por objeto propriamente a regulação do funcionamento interno de uma qualquer associação ou, sequer, de uma associação que tenha objetivos de solidariedade social – mas de uma IPSS, ou seja, de uma instituição privada que sujeita a um regime jurídico específico administrativo em virtude de colaborar na prossecução de um interesse público.
Em virtude dessa colaboração, as IPSS assumem uma posição particular, gozando de prerrogativas e apoios públicos e estando sujeitas a controlo e fiscalização por parte do Estado – neste caso, «os fins prosseguidos coincidem com funções da Administração e esta favorece, mas também fiscaliza, a coexistência colaborante entre entidades privadas e públicas» (Diogo Freitas dos Amaral, Curso de Direito Administrativo, cit., p. 739). Diga-se, aliás, que está implícita na instituição de uma IPSS – que é voluntária – a aceitação de determinadas regras de organização interna e de fiscalização estadual.
A instituição de uma IPSS pressupõe, necessariamente, a expressão da vontade do(s) fundador(es) ou associados na sua constituição, para fins de interesse público e a aceitação do regime que lhe está subjacente. É algo mais do que a vontade de criação de uma fundação ou associação e implica a instituição de uma entidade distinta destas realidades: uma IPSS. O Estado não pode, portanto, impor a nenhuma associação privada o estatuto de pessoa coletiva de interesse público ou de IPSS e o regime jurídico subjacente. Este deve resultar da expressão da vontade dos instituidores – que é distinta da vontade de criação de uma associação ou uma fundação fora deste âmbito.
Por outro lado, não se pode esquecer a posição das IPSS no nosso ordenamento jurídico-constitucional, nomeadamente a necessidade de reconhecimento da sua utilidade pública, quer através do regime previsto no Decreto-Lei n.º 460/77, de 7 de novembro, alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 391/2007, de 13 de dezembro, quer através da inscrição no registo próprio previsto no artigo 7.º do Estatuto das IPSS (que implica a aquisição automática da natureza de pessoa coletiva de utilidade pública, nos termos do artigo 8.º do Estatuto das IPSS). O Estado tem, necessariamente, uma palavra a dizer relativamente às entidades que devam ser classificadas como IPSS – pela prossecução do interesse público e pelos apoios concedidos, que têm como contrapartida os poderes de fiscalização estatal. O reconhecimento de utilidade pública pertence à Administração e depende da verificação de diversos requisitos legais. Os instituidores podem, voluntariamente, criar uma entidade que pretendem que seja classificada como IPSS, sob uma das formas legalmente permitidas, sujeitando-se ao regime jurídico correspondente – mas não têm um direito fundamental a essa classificação.
17. Assim, temos que concluir que o modelo de organização das IPSS não corresponde à esfera de proteção do direito de associação – pois abrange também realidades que são distintas e distantes da forma associativa e é regulado de forma autónoma, com habilitação constitucional própria.
De facto, a vontade dos instituidores privados em criar uma IPSS traz implícita a aceitação de um regime jurídico específico, onde se incluem os apoios e a fiscalização estadual referidos no artigo 63.º, n.º 5, da CRP –, nomeadamente o decorrente do artigo 35.º do Estatuto das IPSS. Para além disso, a instituição de uma IPSS implica, pela posição que esta ocupa face à administração, o seu reconhecimento pelo Estado, que deverá avaliar o fim prosseguido, não estando na livre disposição dos particulares. Nessa medida, não se encontra um substrato que seja identificável como um direito fundamental, análogo ou não, que se oponha ao exercício de poderes de fiscalização estadual sobre as IPSS constitucionalmente legitimado.
Por conseguinte, não se encontrando a realidade controvertida nos autos abrangida pela esfera de proteção de um direito, liberdade ou garantia, não pode afirmar-se que existiu uma violação da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República decorrente do artigo 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP. Não é possível, assim, concluir-se pela existência de inconstitucionalidade orgânica do artigo 35.º do Estatuto das IPSS.
Resta concluir.
III – Decisão
Termos em que se decide:
a) Não conhecer do recurso interposto com fundamento na alínea f) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
b) Não julgar organicamente inconstitucional o Decreto-Lei n.º 119/83, de 25 de fevereiro.
c) Não conhecer a questão de inconstitucionalidade material do artigo 35.º do Estatuto das IPSS.
E, em consequência, julga-se improcedente o recurso.
Condena-se o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte e cinco).
Lisboa, 22 de outubro de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – José da Cunha Barbosa – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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