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Processo n.º 667/12
2.ª Secção
Relator: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação do Porto, em que é recorrente o Ministério Público e recorrido o Partido Comunista Português, o primeiro vem interpor recurso, para si obrigatório, em cumprimento do artigo 280º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 70º, n.º 1, alínea a), e 72º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão proferido, em conferência, pela 4ª secção do Tribunal da Relação do Porto, em 27 de junho de 2012 (fls. 222 a 228-verso), que desaplicou a norma extraída do artigo D-3/57º do Código Regulamentar do Município do Porto – que agora corresponde ao artigo D-3/51º, de acordo com a redação que lhe foi conferida pela “Alteração n.º 01/2010”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 15 de março de 2010, e publicada no «Diário da República», IIª Série, n.º 75, de 19 de abril de 2010 –, com fundamento em inconstitucionalidade material, por violação da liberdade de expressão e de informação (artigo 37º da CRP) e do princípio da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias (artigo 18º, n.º 2, da CRP).
2. Notificado para o efeito, o recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«1.ª) O Ministério Público interpôs recurso, obrigatório, “nos termos do disposto nos artºs 72º nº 3 e 70º nº 1 a) da Lei 28/82 de 15/11”, para este Tribunal Constitucional do acórdão proferido nos autos de processo n.º 15/12.6TPPRT.P1 (Recurso Penal), do Tribunal da Relação do Porto, 4.ª secção, em que é recorrente o Partido Comunista Português e recorrida a Câmara Municipal do Porto, por constituir decisão positiva de inconstitucionalidade (fls. 222 a 229 e 232).
2.ª) A norma jurídica cuja aplicação ao feito submetido a julgamento foi recusada consta do artigo D-3/51.º (Locais de afixação), n.º 1, 1.1, conjugado com o artigo D-3/50.º (Princípios gerais), n.º 2, als. a) e b), do Código Regulamentar do Município do Porto, na versão publicada no Diário da República, 2.ª série, n.º 75, de 19 de abril de 2010.
3.ª) Tal previsão normativa, salvo no âmbito das duas ressalvas que prevê, consagra uma proibição absoluta de afixação de propaganda política, sem carácter eleitoral ou pré-eleitoral, nas áreas representadas a amarelo e vermelho, a que alude o artigo D-3/50.º, n.º 2, als. a) e b), do Código Regulamentar do Município do Porto.
4.ª) Nessa exata medida, a previsão normativa que é objeto do presente recurso de inconstitucionalidade extravasa do âmbito do acto legislativo que se propõe regular, a Lei n.º 97/88, de 17 de agosto (Afixação e inscrição de mensagens de publicidade e propaganda), alterada pelo artigo 3.º da Lei n.º 23/2000, de 23 de agosto, pois a mesma, como é jurisprudência assente, não consagra tal proibição.
5.ª) Por conseguinte, esta previsão regulamentar dispõe, inovatoriamente, sobre o conteúdo do direito fundamental de “Liberdade de expressão e informação”, previsto no artigo 37.º, n.º 1, da Constituição, com a natureza de “direito liberdade e garantia”.
6.ª) Assim, usurpa competências legislativas que apenas podem ser exercidas por lei ou decreto-lei autorizado, em violação de regras de competência legislativa, materializando assim inconstitucionalidade orgânica (CRP, arts. 165.º, n.º 1, al. a), e 277.º, n.º 1).»
3. Devidamente notificado para o efeito, o recorrido veio apresentar contra-alegações, limitando-se a aderir à fundamentação preconizada pelo Ministério Público (fls. 252).
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. A norma cuja fiscalização de constitucionalidade se requereu consta do artigo D-3/57º do Código Regulamentar do Município do Porto, aprovado pela Assembleia Municipal do Porto, em 08 de janeiro de 2008, e publicado no «Diário da República», IIª Série, n.º 56, de 19 de março de 2008, pp. 12183-12290, que estipulava o seguinte:
«Artigo D -3/57.º
Locais de afixação
1 – A afixação de propaganda política é garantida nos locais para o efeito disponibilizados pela Câmara Municipal e devidamente identificados por via de edital, não sendo permitida nas áreas lapizadas a amarelo e vermelho no mapa anexo, parte integrante do presente Código e com os fundamentos dele constantes.
2 – A afixação de propaganda eleitoral não é permitida nas áreas lapizadas a vermelho no mapa anexo, parte integrante do presente Código com os fundamentos deles constantes, com excepção dos cartazes referentes aos candidatos às Juntas de Freguesia localizadas naquelas áreas.
3 – Para além do disposto nos números anteriores, a afixação de propaganda não será permitida sempre que:
a) Provoque obstrução de perspectivas panorâmicas ou afecte a estética ou o ambiente dos lugares ou paisagem;
b) Prejudique a beleza ou o enquadramento de monumentos nacionais, de edifícios de interesse público ou outros susceptíveis de ser classificados pelas entidades públicas;
c) Cause prejuízos a terceiros;
d) Afecte a segurança das pessoas ou das coisas, nomeadamente na circulação rodoviária ou ferroviária;
e) Apresente disposições, formatos ou cores que possam confundir–se com os de sinalização de tráfego;
f) Prejudique a circulação dos peões, designadamente dos deficientes.
Porém, após a sua entrada em vigor – que ocorreu 30 dias após a sua publicação, ou seja, em 18 de abril de 2008 –, foram aprovadas as seguintes oito alterações ao referido Código Regulamentar:
i) “Alteração n.º 01/2008”, aprovada pela Câmara Municipal do Porto, em 27 de maio de 2008, e publicada no «Diário da República», IIª Série, n.º 118, de 20 de junho de 2010;
ii) “Alteração n.º 02/2008”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 22 de dezembro de 2008, e publicada no «Diário da República», IIª Série, n.º 32, de 16 de fevereiro de 2009;
iii) “Alteração n.º 01/2010”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 15 de março de 2010, e publicada no «Diário da República», IIª Série, n.º 75, de 19 de abril de 2010;
iv) “Alteração n.º 02/2010”, constante do Regulamento n.º 180/2011, aprovado pela Assembleia Municipal do Porto, em 20 de dezembro de 2010, e publicado no «Diário da República», IIª Série, de 11 de março de 2011;
v) “Alteração n.º 01/2012”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 27 de fevereiro de 2012, e publicado no «Boletim da Câmara Municipal do Porto», n.º 3961, de 16 de março de 2012;
vi) “Alteração n.º 02/2012”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 23 de julho de 2012, e publicado no «Diário da República», IIª Série, n.º 189, de 28 de setembro de 2012;
vii) “Alteração n.º 03/2012”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 19 de dezembro de 2012, e publicado no «Boletim da Câmara Municipal do Porto», n.º 3998, de 04 de dezembro de 2012;
viii) “Alteração n.º 01/2013”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 04 de março de 2013, e publicado no «Boletim da Câmara Municipal do Porto», n.º 4013, de 19 de março de 2013.
Para efeitos da questão a dirimir nos presentes autos, apenas se afigura relevante a nova redação conferida, pela “Alteração n.º 01/2010”, ao ex-artigo D-3/57º, que foi substituído pelo artigo D-3/51º e que passou a determinar o seguinte:
«Artigo D -3/51.º
Locais de afixação
1 – Salvo nos locais para o efeito disponibilizados pelo Município e devidamente identificados por via de edital:
1.1 – A afixação de propaganda política sem carácter eleitoral ou pré-eleitoral não é permitida nas áreas lapizadas a amarelo e vermelho, salvo quando tenha por objecto imóveis ou factos circunscritos a estas áreas, caso em que se aplicam as regras gerais de afixação previstas nos artigos seguintes;
1.2 – A afixação de propaganda eleitoral ou pré-eleitoral não é permitida nas áreas lapizadas a vermelho, com excepção dos cartazes referentes aos candidatos às Juntas de Freguesia localizadas naquelas áreas.
2 – Para efeitos do disposto no presente Título considera-se pré-campanha eleitoral o período de 6 meses anterior ao início oficial da campanha eleitoral.
3 – Para além do disposto nos números anteriores, a afixação de propaganda não é permitida sempre que:
a) Provoque obstrução de perspectivas panorâmicas ou afecte a estética ou o ambiente dos lugares ou paisagem;
b) Prejudique a beleza ou o enquadramento de monumentos nacionais, de edifícios de interesse público ou outros susceptíveis de ser classificados pelas entidades públicas;
c) Cause prejuízos a terceiros;
d) Afecte a segurança das pessoas ou das coisas, nomeadamente na circulação rodoviária ou ferroviária;
e) Apresente disposições, formatos ou cores que possam confundir-se com os de sinalização de tráfego;
f) Prejudique a circulação dos peões, designadamente dos deficientes.»
Conforme resulta evidente da decisão recorrida, todos os factos imputados ao então arguido remontam ao mês de outubro de 2010. Daqui resulta que a redação então vigente do Código Regulamentar do Município do Porto era aquela que correspondia à que foi introduzida pela “Alteração n.º 01/2010”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 15 de março de 2010, e publicada no «Diário da República», IIª Série, n.º 75, de 19 de abril de 2010. Aliás, ao longo de toda a decisão recorrida, são feitas referências àquela nova redação, designadamente aos novos artigos D-3/50º (fls. 227) e D-3/51º (fls. 227-verso). Apenas na parte relativa ao dispositivo se menciona o artigo D-3/57º, já então revogado, à data dos factos que preencheram os elementos típicos do ilícito contraordenacional.
Assim sendo, dúvidas não restam que a decisão recorrida apenas se refere ao artigo D-3/57º por evidente lapso de escrita, sendo notório que pretendia reportar-se ao atual artigo D-3/51º do Código Regulamentar do Município do Porto, já vigente à data dos factos em apreciação. Para além disso, reportando-se a um caso de propaganda política que não ocorreu quer em período eleitoral, quer em período (assim qualificado como) pré-eleitoral, torna-se igualmente evidente que a decisão recorrida apenas aplicou a parte do enunciado normativo que se circunscreve a tal situação, ou seja, o n.º 1.1. do artigo D-3/51º do Código Regulamentar do Município do Porto.
Face a tal manifesta evidência, passar-se-á, então, a conhecer-se da decidida inconstitucionalidade da norma extraída do n.º 1.1. do artigo D-3/51º daquele Código, na redação que lhe foi conferida pela “Alteração n.º 1/2010”.
5. O livre exercício de um “direito de propaganda política” – seja por partidos, por associações políticas ou por grupos de cidadãos mais ou menos organizados – não se encontra, de modo algum, circunscrito aos períodos de campanha eleitoral. Apesar de a alínea a) do n.º 3 do artigo 113º consagrar a “liberdade de propaganda” – sem qualquer restrição constitucionalmente expressa –, durante os períodos de “campanha eleitoral”, certo é que tal não prejudica o livre exercício do “direito de propaganda política” fora desses períodos. Desde logo, porque o n.º 2 do artigo 10º da CRP transforma os partidos políticos em porta-vozes privilegiados dos cidadãos, na medida em que “concorrem para a organização e para a expressão da vontade popular”. Além disso, a Constituição garante aos cidadãos uma amplíssima “liberdade de associação” (artigo 46º da CRP) e, em especial, de uma “liberdade de constituição e de participação em partidos políticos” (artigo 51º da CRP). Essa dimensão institucional implica, evidentemente, a possibilidade de manifestação externa dos programas políticos dos partidos, através do pleno exercício da sua “liberdade de expressão e de informação” (artigo 37º da CRP).
Dúvidas não restam, portanto, que a “liberdade de propaganda política”, mesmo quando ocorra em período não qualificado como eleitoral (ou sequer pré-eleitoral), constitui uma decorrência de vários direitos fundamentais, expressamente qualificados como direitos, liberdades e garantias. Tanto basta para que a sua restrição não só fique sujeita a uma “reserva de lei” (cfr. artigo 18º, n.ºs 2 e 3, da CRP), como permaneça abrangida pela reserva de competência legislativa da Assembleia da República [cfr. artigo 165º, n.º 1, alínea b), da CRP].
Daqui decorre que nenhum “ato de natureza regulamentar” pode regular, de modo inovatório ou contrário ao disposto em “ato legislativo” – seja ele uma lei ou um decreto-lei autorizado – qualquer aspeto relacionado com o exercício da “liberdade de propaganda política”, devendo sempre identificar o ato legislativo que visam regulamentar (cfr. artigo 112º, n.º 7, da CRP). Ora, os termos do exercício dessa mesma “liberdade de propaganda política” encontra-se regida pelo disposto na Lei n.º 97/88, de 17 de agosto, tal como alterada pelo artigo 3º da Lei n.º 23/2000, de 23 de agosto.
Porém, face à decisão de desaplicação de uma norma regulamentar, pelo tribunal recorrido, importa começar por verificar se aquela norma – ou seja, o artigo D-3/51º, n.º 1.1., do Código Regulamentar do Município do Porto – se contém no sentido normativo extraído dos n.ºs 1 e 2 do artigo 3º da Lei n.º 97/88 ou se, pelo contrário, se reveste de natureza inovatória; caso em que ficará por demais demonstrada a verificação de uma inconstitucionalidade orgânica, por violação da reserva de lei parlamentar [cfr. artigo 165º, n.º 1, alínea b), da CRP].
Sucede que o n.º 1 do artigo 3º do referido diploma legal limita-se a determinar que:
«Artigo 3º
Mensagens de propaganda
1 – A inscrição ou afixação de mensagens de propaganda é garantida, na área de cada município, nos espaços e lugares públicos necessariamente disponibilizados para o efeito pelas câmaras municipais.»
Daqui decorre que a lei não estabelece qualquer proibição de afixação de propaganda política fora das áreas disponibilizadas pelos municípios, antes exigindo que estes garantam a existência de locais destinados ao exercício dessa “liberdade de propaganda político”. Aliás, o Tribunal Constitucional já apreciou, por diversas vezes, o problema da afixação pública de mensagens de propaganda política (a mero título de exemplo, ver os Acórdãos n.º 636/95, n.º 258/2006 e n.º 312/2008, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Bem ilustrativa desta jurisprudência consolidada é a conclusão extraída pelo supra referido Acórdão n.º 258/2006, a propósito do artigo 3º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 97/88:
«(…) não existe uma proibição absoluta de afixar ou inscrever mensagens de propaganda, dentro dos aglomerados urbanos e em espaços e lugares públicos, fora dos locais necessariamente disponibilizados para o efeito pelas câmaras municipais.»
Ora, o modo como o n.º 1.1. do artigo D-3/51º do Código Regulamentar do Município do Porto foi redigido implica uma verdadeira “proibição absoluta” de afixação da propaganda política fora das áreas expressamente assinaladas ou disponibilizadas pelo Município para esse efeito e devidamente identificadas por via de edital. Por conseguinte, a restrição imposta por aquela norma regulamentar apresenta-se como mais intensa do que o comando normativo que aquela visava desenvolver, ou seja, o resultante dos n.ºs 1 e 2 do artigo 3º da Lei n.º 97/88.
Tanto basta para que se conclua pela inconstitucionalidade orgânica da norma extraída do n.º 1.1. do artigo D-3/51º do Código Regulamentar do Município do Porto, por violação da reserva de lei parlamentar decorrente da alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP. Face à verificação dessa inconstitucionalidade orgânica, não se justifica proceder ao conhecimento da eventual inconstitucionalidade material da mesma norma, que fica, por conseguinte, prejudicado.
III – Decisão
Pelos fundamentos expostos, decide-se:
i) Julgar inconstitucional a norma extraída do n.º 1.1. do artigo D-3/51º do Código Regulamentar do Município do Porto, aprovado pela Assembleia Municipal do Porto, em 08 de janeiro de 2008, e de acordo com a redação que lhe foi conferida pela “Alteração n.º 01/2010”, aprovada pela Assembleia Municipal do Porto, em 15 de março de 2010, e publicada no «Diário da República», IIª Série, n.º 75, de 19 de abril de 2010, por violação da reserva de lei parlamentar decorrente da alínea b) do n.º 1 do artigo 165º da CRP;
ii) Não conceder provimento ao recurso interposto.
E, em consequência:
iii) Confirmar a decisão recorrida, quanto à questão de inconstitucionalidade apreciada.
Sem custas, por não serem legalmente devidas.
Lisboa, 26 de Setembro de 2013. – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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