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Processo n.º 340/13
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria De Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1.ª secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Coimbra, em que é recorrente A., e são recorridos o Ministério Público e B., foi interposto o presente recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC).
2. Pela Decisão sumária n.º 218/2013, decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto. Tal decisão tem a seguinte fundamentação:
“(…) 5. O presente recurso vem interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos da qual, cabe recurso para o Tribunal Constitucional de decisão que aplique norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo, sendo ainda indispensável que a norma cuja inconstitucionalidade se requer tenha constituído o fundamento normativo da decisão recorrida.
6. Tendo por objeto o acórdão de 6 de março de 2013 do Tribunal da Relação de Coimbra (que negou provimento ao recurso interposto), o recurso ora interposto suscita desde logo questões relativamente ao requisito de admissibilidade consistente na aplicação das normas arguidas como inconstitucionais pelo tribunal recorrido.
7. Com efeito, o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido.
Trata-se de um pressuposto específico do recurso de constitucionalidade cuja exigência resulta da natureza instrumental (e incidental) deste recurso, tal como o mesmo se encontra recortado no nosso sistema constitucional, de controlo difuso da constitucionalidade de normas jurídicas pelos vários tribunais, bem como da natureza da própria função jurisdicional constitucional.
Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade deverá, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
8. No caso dos autos, a recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade dos artigos 143.º e 152.º do Código Penal na dimensão já anteriormente invocada perante o Tribunal recorrido.
9. No recurso interposto para o Tribunal da Relação de Coimbra, a recorrente identificou da seguinte forma as normas cuja inconstitucionalidade pretendia ver apreciada:
“(…)XI - Ademais, interpretando e aplicando a norma ínsita no supradito art.152°. do Código Penal no sentido restritivo em que o fez (rectius, e em suma, considerando penalmente anódino o empurrão sub judice), o Digníssimo Tribunal a quo interpretou e aplicou tal norma desconformemente com o conteúdo constitucional do direito à integridade pessoal, concretamente na sua componente de direito à integridade física e, nesse conspecto, violou o preceituado no art.25°. da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos;
XVII - Ademais, interpretando e aplicando a norma ínsita no supradito art. 143°. do Código Penal no sentido restritivo em que o fez (rectius, e em suma, considerando penalmente anódino o empurrão sub judice), o Digníssimo Tribunal a quo interpretou e aplicou tal norma desconformemente com o conteúdo constitucional do direito à integridade pessoal, concretamente na sua componente de direito à integridade física e, nesse conspecto, violou o preceituado no art.25º. da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidade que desde já se invoca para todos os devidos e legais efeitos;”
10. O acórdão recorrido negou provimento ao recurso, e nessa conformidade, confirmou o despacho de não pronúncia proferido na 1.ª instância. Todavia, não procedeu à interpretação dos preceitos legais em referência nos termos invocados pela recorrente.
Da leitura do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra não é possível concluir-se que o mesmo considerou «penalmente anódino o empurrão» imputado ao arguido. O que o acórdão recorrido afirma, é antes que (cfr. fls.454verso, 455verso e 456 dos autos):
“(…)O que a assistente pretende é que o arguido responda por crime de violência doméstica (sendo certo, que concede, que possa estar-se em presença somente do crime de ofensa à integridade física), pelo empurrão que o arguido assumiu ter dado à assistente, nas referidas circunstâncias.
Porém nem todos os conflitos expressos em palavras ou atos mais ou menos agressivos entre os membros de um casal têm que ter a tutela penal, quer seja por via do crime de violência doméstica, quer por outro tipo de crimes contra as pessoas que com ele podem concorrer, maxime, o de ofensa à integridade física.
Resultou manifestamente provado que o casamento do dissolvido casal, a dada altura, como é referido na decisão recorrida, “atingiu um ponto de rutura inultrapassável, sem retorno, com a consequente degradação da relação inter pessoal do arguido e da assistente, manifestado nas denominadas discussões conjugais, com ofensas verbais próprias deste tipo e natureza de discussões, em face da degradação do relacionamento, seu reflexo no respeito mútuo e exacerbação dos sentimentos de reprovação e até, muitas vezes de intolerância e de repulsa mútuos, o que decorre além do mais das regras da experiência comum (...)”
Por isso, concordamos com a decisão recorrida, quando refere que “…..impõe-se-nos concluir, por ser essa a convicção que, dos autos não resulta suficientemente indiciado que tenha o arguido atuado da forma descrita na acusação, e que, na expressões que dirigiu à assistente e nos factos ocorridos no quarto da filha do casal, na presença dos filhos, tenha o arguido atuado com intenção de maltratar, humilhar, ofender quer a honra ou consideração quer a integridade física da assistente, antes resultando, em face das diligências realizadas em sede de instrução que, publicamente sempre o arguido tratou a assistente de forma educada e respeitosa, extremosa até, valorizando a sua maneira de ser e elogiando-a, realçando as suas qualidades enquanto mãe e mulher.(…)
Dos elementos colhidos nos autos, não se mostra possível concluir, com um mínimo de segurança, que o arguido humilhasse nem que possuísse um ascendente sobre a assistente suscetível de criar uma situação de domínio do arguido sobre a assistente e sua incapacidade de se defender ou qualquer sentimento de inferiorização e de degradação da assistente por banda do arguido.” (…)
O tipo legal do art. 143° n° 1 do Cód. Penal fica, deste modo, preenchido mediante a verificação de qualquer ofensa no corpo ou na saúde, independentemente da dor ou sofrimento causados, ou de uma eventual incapacidade para o trabalho.
Assim, integra o crime do artigo 143° n° 1 do Cód. Penal, a agressão voluntária e consciente que se traduziu nu empurrão à ofendida, ainda que este não tenha sofrido qualquer lesão, dor ou incapacidade para o trabalho (…)
Na verdade, concordamos que, em princípio, encontrando-se o direito à absoluta inviolabilidade da integridade física pessoal tutelado pela constituição nacional, (cfr. art.º 25.º), nada no vigente ordenamento jurídico consente e/ou legitima qualquer interpretação restritiva do respetivo conteúdo, em termos de apenas supostamente abranger a proteção contra um determinado grau, mais ou menos intenso, de ofensas corporais, mas para se concluir pela existência do ilícito, também se têm que verificar os elementos subjetivos do tipo.
Ou seja, o tipo legal do artº 143º do Cód. Penal exige o dolo em qualquer das suas modalidades. O dolo de ofensas à integridade física refere-se às ofensas no corpo ou na saúde do ofendido.(…)
Ora, no caso dos autos resultou que o arguido empurrou a assistente, como forma de manifestar a sua indignação e revolta perante a postura ali assumida pela assistente e repulsa pela mesma.
Assim, concordamos com a decisão recorrida, que concluiu, e bem, que a atuação do arguido ao empurrar a assistente não pretendia ofender ou molestar a integridade física ou o corpo da mesma.
Ou seja, o facto de o arguido ter realizado uma ação natural de repulsão ou afastamento coercivo da assistente, não preenche o elemento subjetivo do crime, pelo que atentas as circunstâncias que rodearam o referido empurrão, o mesmo não só não integra o crime de violência doméstica, como também não constitui o crime de ofensa à integridade física.
Por todo o exposto, concluímos que esta conduta, atentas as circunstâncias em que ocorreu, não consubstancia qualquer violação da integridade física da recorrente, ou de qualquer bem jurídico penalmente protegido, corno bem decidiu a douta decisão recorrida.(…)”
Conforme se evidencia pelas passagens do acórdão recorrido acima transcritas, o Tribunal não aplicou, efetivamente, os preceitos referidos na interpretação reputada de inconstitucional pela recorrente. Na verdade, não foi por considerar o empurrão um ato irrelevante ou «penalmente anódino» (na previsão dos elementos típicos dos crimes de violência doméstica ou de ofensas corporais), que o arguido não foi pronunciado pela prática de qualquer um deles. Os fundamentos da não pronúncia do arguido assentaram antes em razões bem diversas: no que respeita ao crime de violência doméstica, a decisão fundou-se na consideração de que os factos indiciados, globalmente considerados e integrados no ambiente de desarmonia e rutura conjugal vivido à época pelo casal, não preenchiam os elementos objetivos deste crime. Por seu lado, no que respeita ao crime de ofensas corporais, a decisão de não pronúncia resultou da verificação da falta de preenchimento do elemento subjetivo do crime.
11. E, sendo assim, inevitável será concluir que a interpretação invocada pela recorrente não teve, pois, lugar, não se cumprindo este requisito legal para a admissão do recurso. Termos em que, na falta do preenchimento do requisito processual em causa, não é possível conhecer do recurso.”
3. Da decisão sumária vem agora o recorrente reclamar para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, sustentando a reclamação essencialmente nos seguintes fundamentos:
«(…)4. Da leitura do douto acórdão recorrido resulta ter o mesmo interpretado e aplicado as normas ínsitas nos arts. 152.º e 143.º, do Código Penal num sentido marcada e claramente restritivo, sendo que
5. Tal consubstancia, precisamente, a efetiva aplicação das normas cuja inconstitucionalidade foi in casu oportunamente suscitada pela Reclamante nos exatos moldes por esta alegados [já que alegou expressamente terem as mesmas sido interpretadas e aplicadas num sentido marcadamente restritivo (assim, não limitando, portanto, a respetiva invocação de inconstitucionalidade ao “considerar penalmente anódino o empurrão sub judice”), e, consequentemente, desconforme com o conteúdo constitucional do direito à integridade pessoal previsto no art. 25.º da Constituição da República Portuguesa, concretamente na sua componente de direito à integridade física), normas que, ademais, consubstanciaram a ratio decidendi da douta decisão recorrida. Com efeito,
6. E, a título meramente exemplificativo, a conclusão do Digníssimo Tribunal da Relação de Coimbra acerca da (putativa) falta de preenchimento do atinente elemento subjetivo no tocante ao crime de ofensas à integridade física teve precisamente por base a sobredita interpretação restritiva (verbi gratia, ao considerar não ser subsumível no art. 143.º do Código Penal uma “ação natural de repulsão ou afastamento coercivo” por parte do Recorrido consubstanciada num empurrão à ora Reclamante …).
7. Obiter dictum, de tal sorte consubstanciaram as supramencionadas normas a ratio decidendi da douta decisão recorrida que o Digníssimo Tribunal da Relação de Coimbra (que as interpretou e aplicou in casu) proferiu douto despacho de admissão do recurso sub judice…
8. Destarte, considera a Reclamante (…), ter andado mal a Veneranda Relatora ao proferir a douta decisão sumária ora em crise [com base numa análise “formalista” acerca dos requisitos de admissão do recurso que, salvo o devido e máximo respeito, coarta de forma legalmente injustificada a possibilidade de este Digníssimo Tribunal (último bastião da defesa da Lei Fundamental, maxime no tocante à defesa dos mais nucleares e fundamentais direitos relacionados com a dignidade da pessoa humana) apreciar materialmente um recurso referente a matéria tão delicada como a presente…) (…)».
4. Notificados os recorridos da reclamação, apenas o Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência da mesma.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Nos presentes autos foi proferida decisão de não conhecimento do objeto do recurso com fundamento em falta de aplicação, pelo tribunal recorrido, das normas arguidas como inconstitucionais. Entendeu-se, na referida decisão, que não se verificava coincidência entre a interpretação normativa questionada e a efetivamente aplicada na decisão recorrida.
Para contrariar o decidido, a reclamante limita-se a reiterar que o tribunal recorrido interpretou e aplicou os preceitos legais contidos nos artigos 152.º e 143.º do Código Penal nos moldes invocados no presente recurso de constitucionalidade. Tanto assim é que o tribunal recorrido admitiu o presente recurso.
Não tem razão.
6. Refira-se, desde logo, que a decisão de admissão do recurso proferida no tribunal recorrido não vincula este Tribunal (artigo 76.º, n.º 3 da LTC).
7. No que respeita aos restantes fundamentos invocados na presente reclamação, lembre-se que a recorrente pretende ver sindicada a interpretação dada pelo tribunal recorrido aos citados artigos do Código Penal «no sentido restritivo em que o fez (rectius, e em suma, considerando penalmente anódino o empurrão sub judice)».
Cumpre sublinhar que se a recorrente não pretendia restringir a interpretação normativa a sindicar à consideração do empurrão como ato anódino para preencher os tipos incriminadores em referência, cabia-lhe concretizar o sentido normativo cuja conformidade constitucional pretendia ver apreciado, não bastando, para o efeito, aludir ao «sentido marcadamente restritivo» com que foram interpretados e aplicados os preceitos legais em referência. Resta, portanto, apreciar o único sentido normativo identificado no recurso como objeto de apreciação.
8. Ora, independentemente do acerto da decisão de não pronúncia proferida – o que não cabe ao Tribunal Constitucional sindicar - o acórdão recorrido não procedeu à interpretação dos preceitos legais em referência nos termos invocados pela recorrente e por ela reputada de inconstitucional. O tribunal recorrido não fundou a confirmação da não pronúncia do arguido (pelos crimes de ofensas corporais e de violência doméstica) por considerar o empurrão “penalmente anódino” para o preenchimento dos elementos típicos de qualquer dos aludidos crimes, como a recorrente afirma quando suscita a questão de constitucionalidade e define o objeto do recurso. No que respeita ao crime de violência doméstica (artigo 152.º do Código Penal), a decisão de não pronúncia fundou-se na consideração de que os factos indiciados, globalmente considerados e integrados no ambiente de desarmonia e rutura conjugal vivido à época pelo casal, não preenchiam os elementos objetivos deste crime. Por seu lado, no que respeita ao crime de ofensas corporais (artigo 143.º do Código Penal), a decisão de não pronúncia resultou da verificação da falta de preenchimento do elemento subjetivo do crime.
E sendo assim, impõe-se confirmar a decisão reclamada.
III - Decisão
9. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 28 de junho de 2013. – Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.
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