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Processo n.º 624/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
No 1.º Juízo do Tribunal do Comércio de Lisboa, A., Limitada, interpôs recurso da decisão proferida pelo ICP – Anacom que a condenou no pagamento de uma coima no montante de € 6.000,00, por violação do dever de prestação de informações.
Realizado o julgamento foi proferida sentença em 19 de fevereiro de 2010 que condenou a arguida pela prática de duas contraordenações, sendo a primeira prevista e punida na alínea sss), do n.º 1, e no n.º 2, do artigo 113.º, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, e a segunda na alínea ttt), do n.º 1 e n.º 2, do mesmo preceito, na redação do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio, na coima única de € 6.000,00.
A arguida recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão proferido em 17 de novembro de 2011, julgou improcedente o recurso
A arguida interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, colocando as seguintes questões:
a) A alínea sss) do artigo 113.º da Lei 5/2004, é inconstitucional, quando conjugada com os n.ºs 1 e 3 do artigo 108.º e n.º 6 do artigo 113.º, na redação dada pelo DL 176/2007, por violação do principio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP e do princípio da legalidade previsto no artigo 29.º, n.º 3 da CRP. Estas inconstitucionalidades foram alegadas em sede de impugnação judicial e em sede de alegações de recurso para o Tribunal da Relação (vide petição de impugnação judicial e alegações de recurso da Recorrente).
b) Ao não aplicar a Lei 51/2011, entrada em vigor a 14 de setembro de 2011, o acórdão do Tribunal da Relação violou o artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, o qual determina que os tribunais devem obediência à lei, sendo certo que o tribunal da Relação de Lisboa, nem sequer justificou a não aplicação da lei nova. Esta inconstitucionalidade não pôde ser alegada no processo até ao momento porquanto está intimamente relacionada com a entrada em vigor de uma Lei ocorrida em momento posterior à apresentação da petição inicial e às alegações de recurso, pelo que só agora pode ser invocada.
c) E porque nem sequer justificou a não aplicação da nova lei, entrada em vigor entretanto e que revogou as normas ao abrigo das quais a arguida, aqui recorrente, foi condenada, o Tribunal da Relação não fundamentou a sua decisão o que quer dizer que violou o artigo 205.º, n.º 1, da CRP.
d) Por fim, uma vez que existe legislação entrada em vigor que revogou as normas ao abrigo das quais a arguida, ora Recorrente, foi condenada, e que são mais favoráveis à Arguida, o Tribunal da Relação violou o artigo 29.º, n.º 4 da CRP, que determina que as lei criminais ou medidas de segurança mais favoráveis ao Arguido são imediatamente aplicáveis, sendo que esta norma é de aplicabilidade direta, conforme resulta do disposto no artigo 18.º, n.º 1. Também esta inconstitucionalidade não pôde ser alegada no processo até ao momento porquanto está intimamente relacionada com a entrada em vigor de uma Lei ocorrida em momento posterior à apresentação da petição inicial e às alegações de recurso, pelo que só agora pode ser invocada.
Apresentou alegações que concluiu do seguinte modo:
1. A norma da alínea ttt) do n.º 1, do artigo 113.º da Lei 5/2004, com a redação dada pelo DL 176/2007, é inconstitucional por sancionar como contraordenação um comportamento sem dignidade para-penal ou contraordenacional, violando por isso o artigo 18.º, n.º 2, da CRP, que estabelece o Principio da Proporcionalidade da sanção penal.
2. Ainda que, apenas por mera hipótese, se opte pela não inconstitucionalidade desta norma, sempre se diga que é inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 113.º da Lei 5/2004, com a redação dada pelo Dec. Lei 176/2007, quando conjugada com a alínea ttt) do n.º 1 do artigo 113.º, do mesmo diploma, por três razões distintas:
a. estabelece una sanção mínima demasiado elevada para o tipo de comportamento sob censura, em violação do n.º 2 do artigo 18.º, da CRP – Principio da Proporcionalidade;
b. estabelece um limite máximo para a coima completamente desproporcionado para o comportamento sob censura. Repare-se que, em última análise, o legislador admite como possível a condenação da Arguida Recorrente em €. 5.000.000,00 (cinco milhões de euros) pelo simples facto de a Arguida/Recorrente não ter entregue à ARN, quando solicitada para o efeito, um documento com informações para efeitos meramente estatísticos, igualmente em violação do Princípio da Proporcionalidade previsto no n.º 2 do artigo 18.º, da CRP
c. Finalmente, na medida em que viola o princípio da legalidade, previsto no artigo 29.º, n.º 3, da CRP, ao estabelecer uma moldura penal demasiado abrangente.
3. A Arguida/Recorrente colocou duas questões muito concretas e bem individualizadas ao Tribunal da Relação: que houve lugar à entrada em vigor de nova legislação (Lei 51/2011 entrou em vigor a 14 de setembro de 2011) aplicável aos factos em discussão nos presentes autos; e que essa nova legislação era mais favorável à Arguida, Recorrente.
4. E em consequência destas duas questões concretamente individualizadas, foram extraídas duas conclusões, isto é, que os factos já haviam prescrito, e que, ainda que assim se não entendesse, a coima deveria ser reduzida face a aplicação da nova legislação.
5. O Tribunal da Relação apercebeu-se das questões que lhe foram colocadas e sabe – nem pode ignorar – que está vinculado ao disposto no artigo 158.º do Cód. Proc. Civil o qual estabelece que as decisões dos tribunais proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas.
6. Este artigo 158.º do Cód Proc. Civil é aplicado aos presentes autos por força das normas remissivas constantes do RGCO e do Cód. Proc. Penal.
7. E é uma decorrência direta dos artigos 203.º, n.º 1 e 205, n.º 1 da CRP, que estabelecem, respetivamente, a obrigatoriedade dos tribunais administrarem a justiça decidindo concretamente todas as decisões que lhes são colocadas e a obrigatoriedade de fundamentar as suas decisões.
8. Ao não se pronunciar sobre as questões que lhe foram concretamente colocadas o Tribunal da Relação de Lisboa deu uma interpretação ao artigo 158.º do Cód. do Processo Civil no sentido de este artigo permitir exceções discricionárias da parte do Tribunal relativamente à possibilidade de não decidir questões que lhe sejam colocadas ou, decidindo-as, não as fundamentar.
9. Esta interpretação do artigo 158.º do Cód. Proc. Civil viola as normas constitucionais dos artigos 203.º, n.º 1 e 205, n.º 1,
10. A Lei 51/2011, de 13 de setembro, entrou em vigor no dia 14 de setembro de 2011, deu nova redação às normas pelas quais a Recorrente foi condenada, normas essas que estabelecem um regime mais favorável à aqui arguida/recorrente,
11. Desde logo porque a moldura contraordenacional aplicável aos factos praticados pela arguida passou a ser de 1.000,00 (mil) a 10.000,00 (dez mil) euros, quando anteriormente essa moldura ia de 5.000,00 (cinco mil) euros a 5.000.000,00 (cinco milhões).
12. Como consequência da aplicação deste novo regime, não só a moldura penal em que Arguida/Recorrente foi condenada lhe é bastante mais favorável, o que implica necessariamente uma condenação em coima bastante inferior, como os factos em causa já estão prescritos, o que implica o arquivamento dos autos.
13. O Tribunal da Relação não se pronunciou sobre nenhuma destas matérias, pois nem sequer apreciou se a nova legislação havia ou não entrado em vigor, nem tampouco, logicamente, se a mesma seria ou não aplicada aos factos em causa.
14. Ao decidir contra a Arguida/Recorrente, o Tribunal da Relação interpretou a norma do artigo 128.º, n.º 1, da Lei 51/2001 no sentido de a mesma não se encontrar em vigor na data da prolação do acórdão, ou, encontrando-se em vigor, no sentido não estabelecer esta Lei um regime contraordenacional mais favorável.
15. Esta interpretação dada pelo Tribunal da Relação – interpretação implícita, mas óbvia – viola o artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa que determina que os Tribunais estão sujeitos à Lei.
16. Deve assim ser declarado inconstitucional o artigo 128.º, n.º 1 da Lei 51/2011 quando interpretado no sentido de esta Lei não ter entrado em vigor na data de 17 de novembro de 2011 (data da prolação do acórdão do Tribunal da Relação).
17. Finalmente, ao negar a aplicação da Lei 51/2011, o Tribunal da Relação violou o artigo 29.º, n.º 4 da CRP, – o qual é de aplicabilidade direta por força do disposto no artigo 18.º também da CRP.
18. Admitindo que o Tribunal da Relação de Lisboa tenha considerado em vigor a Lei 51/2011, de 13 de setembro, então o certo é que, a ser assim, o Tribunal da Relação de Lisboa interpretou o artigo 113.º, n.ºs 1 e 2 como não contendo um regime jurídico mais favorável à anterior redação da lei 5/2004, com a redação dada pelo DL 176/2007. Pelo que esta interpretação dada ao artigo 113.º, n.ºs 1 e 2 é inconstitucional porque viola o artigo 29.º, n.º 4, da CRP.
19. Assim, deve ser declarada inconstitucional a norma da alínea ttt) do artigo 113.º da Lei 5/2004, com a redação dada pelo DL 176/2007, por a mesma violar o n.º 2, do artigo 18.º, da CRP.
20. Mais deve ser declarada inconstitucional a norma do artigo 113.º, al. ttt), na redação dada pelo Dec.-Lei 176/2007, quando conjugada com o n.º 2 desse mesmo artigo 113.º da CRP.
21. Deve ainda o n.º 2 do artigo 113.º da Lei 5/2004, na redação dada pelo DL 176/2007, ser declarado inconstitucional, por violação do principio da proporcionalidade, previsto no artigo 29.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
22. Deve igualmente ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 158.º, n.º 1 do Cód. do Proc. Civil quando interpretado no sentido de permitir exceções discricionárias da parte do Tribunal relativamente à possibilidade de não decidir questões que lhe sejam colocadas ou, decidindo-as, não as fundamentar.
23. Como deve ser declarado inconstitucional o artigo 128.º, n.º 1 da Lei 51/2011 quando interpretado no sentido de esta Lei não ter entrado em vigor na data de 17 de novembro de 2011 (data da prolação do acórdão do Tribunal da Relação)
24. Devem ser declarados inconstitucionais os n.ºs 1 e 2 do artigo 113.º da Lei 5/2004, com a redação dada pela Lei 51/2011, de 13 de setembro, quando interpretados no sentido de não conterem um regime jurídico mais favorável à anterior redação da lei 5/2004, com a redação dada pelo DL 176/2007.
O Ministério Público contra-alegou, pronunciando-se pelo não conhecimento do recurso.
O ICP – Autoridade Nacional de Telecomunicações contra-alegou, pronunciando-se pelo não conhecimento do recurso, relativamente às questões colocadas nas alíneas b) a d), do requerimento de interposição de recurso, e pela improcedência no restante.
Fundamentação
1. Dos requisitos gerais do recurso de constitucionalidade
No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada diretamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adoção de um critério normativo, ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço, com carácter de generalidade, e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto.
Nos recursos interpostos ao abrigo da alínea b), do n.º 1, do artigo 70.º, da LTC – como ocorre no presente processo –, a sua admissibilidade depende ainda da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada «durante o processo», «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer» (n.º 2, do artigo 72.º, da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente.
Consistindo a competência do Tribunal Constitucional, no domínio da fiscalização concreta, na faculdade de revisão, em via de recurso, de decisões judiciais, compreende-se que a questão de constitucionalidade deva, em princípio, ter sido colocada ao tribunal a quo, além de que permitir o acesso a este Tribunal com base numa invocação da inconstitucionalidade unicamente após a prolação da decisão recorrida, abriria o indesejável caminho à sua utilização como expediente dilatório. Daí que só tenha legitimidade para pedir ao Tribunal Constitucional a fiscalização de constitucionalidade de uma norma quem tenha suscitada previamente essa questão ao tribunal recorrido, em termos de o vincular à sua apreciação, face às normas procedimentais que regem o processo em que se enxerta o recurso constitucional.
Por outro lado, considerando o caráter ou função instrumental dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade face ao processo-base, exige-se, para que o recurso tenha efeito útil, que haja ocorrido efetiva aplicação pela decisão recorrida da norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade é sindicada. É necessário, pois, que esse critério normativo tenha constituído ratio decidendi do acórdão recorrido, pois, só assim, um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão.
Refira-se ainda que o objeto do recurso constitucional é definido, em primeiro lugar, pelos termos do requerimento de interposição de recurso. Tem sido entendimento constante do Tribunal Constitucional que, ao definir, no requerimento de interposição de recurso, a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretende sindicar, o recorrente delimita, em termos irremediáveis e definitivos, o objeto do recurso, não lhe sendo consentida qualquer modificação ulterior, com exceção duma redução do pedido, nomeadamente, no âmbito da alegação que produza.
Expostos, sumariamente, os pressupostos essenciais ao conhecimento do recurso de constitucionalidade interposto nos termos do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, cumpre verificar o seu preenchimento, relativamente às questões colocadas pelos Recorrentes neste processo.
2. Do não conhecimento parcial do recurso
No requerimento de interposição do recurso a Recorrente colocou a este Tribunal as seguintes questões de constitucionalidade:
a) A alínea sss) do artigo 113.º da Lei 5/2004, é inconstitucional, quando conjugada com os n.ºs 1 e 3 do artigo 108.º e n.º 6 do artigo 113.º, na redação dada pelo DL 176/2007, por violação do principio da proporcionalidade previsto no artigo 18.º, n.º 2, da CRP e do princípio da legalidade previsto no artigo 29.º, n.º 3 da CRP.
b) Ao não aplicar a Lei 51/2011, entrada em vigor a 14 de setembro de 2011, o acórdão do Tribunal da Relação violou o artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, o qual determina que os tribunais devem obediência à lei, sendo certo que o tribunal da Relação de Lisboa, nem sequer justificou a não aplicação da lei nova.
c) E porque nem sequer justificou a não aplicação da nova lei, entrada em vigor entretanto e que revogou as normas ao abrigo das quais a arguida, aqui recorrente, foi condenada, o Tribunal da Relação não fundamentou a sua decisão o que quer dizer que violou o artigo 205.º, n.º 1, da CRP.
d) Por fim, uma vez que existe legislação entrada em vigor que revogou as normas ao abrigo das quais a arguida, ora Recorrente, foi condenada, e que são mais favoráveis à Arguida, o Tribunal da Relação violou o artigo 29.º, n.º 4 da CRP, que determina que as leis criminais ou medidas de segurança mais favoráveis ao Arguido são imediatamente aplicáveis, sendo que esta norma é de aplicabilidade direta, conforme resulta do disposto do artigo 18.º, n.º 1.
Nas transcritas alíneas b), c) e d) a Recorrente não imputa o vício da inconstitucionalidade a qualquer norma ou critério normativo que o tribunal recorrido tenha utilizado no seu raciocínio fundamentador, mas à própria decisão.
Segundo a Recorrente a decisão recorrida violou princípios e regras constitucionais por ter decidido não aplicar a Lei n.º 51/2011, entrada em vigor a 14 de setembro de 2011, aplicando legislação revogada, e por não ter fundamentado a não aplicação daquela nova lei.
É certo que, posteriormente, já em fase de alegações, a Recorrente veio enunciar pretensas interpretações normativas que implicitamente teriam fundamentado aquelas omissões.
Contudo, como já acima se referiu, não é admissível em fase de alegações uma ampliação do objeto do pedido formulado no requerimento de interposição de recurso, pelo que não pode ser considerada a enunciação das interpretações normativas constante das alegações de recurso.
E, relativamente às questões colocadas nas alíneas b), c) e d) do requerimento de interposição de recurso, como também já acima se referiu, no sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas ou a interpretações normativas, e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas diretamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas. Constitui jurisprudência uniforme do Tribunal Constitucional que o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada norma ou interpretação normativa, tem de incidir sobre uma regra abstratamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica, não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro ato de julgamento, não existindo no nosso ordenamento jurídico-constitucional a figura do recurso de amparo de queixa constitucional para defesa de direitos fundamentais.
Assim sendo, não é possível a este tribunal conhecer das questões de constitucionalidade colocadas nas alíneas b), c) e d), das conclusões do requerimento de interposição de recurso.
O Ministério Público também se pronunciou pelo não conhecimento do recurso relativamente à questão colocada na alínea a), do mesmo requerimento, alegando que a mesma também não tem um cunho normativo e que não foi suscitada adequadamente perante o tribunal recorrido.
A questão de constitucionalidade colocada na alínea a) do requerimento de interposição de recurso é dirigida ao conteúdo conjugado de vários preceitos legais, pelo que é indiscutível a sua normatividade, e da leitura das alegações dirigidas pela Recorrente ao tribunal aqui recorrido também se verifica que o mesmo vício de inconstitucionalidade foi expressamente suscitado (conclusão 21º), tendo aliás sido conhecida a correspondente questão por esse tribunal.
Contudo, verifica-se que na indicação dos preceitos legais integrantes desta norma efetuada no requerimento de interposição de recurso constam alguns lapsos de escrita que se mostram parcialmente retificados nas alegações de recurso. Assim, a alínea do n.º 1, do artigo 113.º em causa, é a alínea sss), na versão original da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, a qual passou a ser a alínea ttt), na redação do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio, e quando se escreveu n.º 6, do mesmo artigo 113.º, queria-se referir o n.º 2, o qual se manteve com essa numeração na redação do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio.
Por estas razões, neste recurso apenas se conhecerá da constitucionalidade da norma constante da leitura conjugada dos artigos 108.º, n.º 1 e 3, 113.º, n.º 1, sss) (alínea ttt) na redação do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio) e n.º 2, do mesmo artigo 113.º, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, enquanto sanciona como uma contraordenação, punível com uma coima de € 5.000 a € 5.000.000, a violação da obrigação de prestação de informações prevista nos n.º 1 e 3 do artigo 108.º, do mesmo diploma, praticada por pessoa coletiva.
3. Do mérito do recurso
A Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, é uma lei de bases que revogou a anterior Lei n.º 91/97, de 1 de agosto, e visou satisfazer a necessidade de reformulação do quadro jurídico português aplicável às telecomunicações, face à nova matriz legal europeia emanada das Diretivas n.os 2002/21/CE (diretiva-quadro), 2002/19/CE (diretiva acesso) e 2002/20/CE (diretiva serviço universal), do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de março, e da Diretiva n.º 2002/77/CE, da Comissão, de 16 de setembro.
Este diploma previu a existência de uma Autoridade Reguladora Nacional a quem atribuiu competências para desempenhar as funções de regulação, supervisão, fiscalização e sancionamento nesta área do mercado.
Para o eficaz cumprimento destas funções o artigo 108.º, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, impôs que as entidades sujeitas às suas disposições prestassem àquela Autoridade todas as informações, incluindo informações financeiras, relacionadas com a sua atividade, para que aquela pudesse desempenhar todas as competências previstas na lei (n.º 1), devendo os respetivos pedidos de informações obedecer a princípios de adequabilidade ao fim a que se destinam e de proporcionalidade e serem devidamente fundamentados (n.º 3).
O artigo 113.º, n.º 1, sss), do mesmo diploma, determinou que constituía contraordenação a violação da obrigação de prestação de informações, ao abrigo dos n.º 1 e 3 do artigo 108.º, passando o conteúdo desta alínea, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio, à Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, a integrar a alínea ttt).
E no n.º 2, do artigo 113.º, na redação aplicada na decisão recorrida, previu-se a aplicação de uma coima de € 5.000 a € 5.000.000, para esta contraordenação quando praticada por pessoa coletiva.
A invocação de inconstitucionalidade deduzida pela Recorrente baseia-se, num primeiro argumento, na alegação de que a norma em causa viola o princípio da proporcionalidade porque sanciona um comportamento que não é suficientemente censurável para que possa sofrer um juízo antijurídico na dimensão contraordenacional.
No ilícito de mera ordenação social o objeto da valoração jurídica não é constituído apenas pela conduta, como tal, nele assumindo também especial relevância a proibição legal. É o substrato complexo formado pela conduta e pela decisão legislativa de a proibir que suporta a valoração da ilicitude (Figueiredo Dias, em Direito Penal – Parte Geral, pág. 162, da 2.ª ed., da Coimbra Editora). Daí que o conceito de culpa, no âmbito contraordenacional, se distinga da censura ética dirigida à pessoa do agente e à sua atitude interna – característica do direito penal – consubstanciando-se antes numa imputação do facto à responsabilidade social do seu autor pela violação da proibição legalmente estabelecida ou pelo incumprimento do dever imposto por lei.
Quanto à sanção principal, no âmbito contraordenacional – a coima –, esta assume um caráter patrimonial, representando uma mera admonição ou especial advertência, conducente à observância de certas proibições ou imposições legislativas e destinada a garantir a preservação da ordenação social estabelecida.
No presente recurso está em causa o sancionamento do incumprimento de um dever de informação destinado a habilitar uma autoridade reguladora a cumprir as suas funções de supervisão e fiscalização no setor das comunicações.
Não sendo as atividades económicas ligadas ao exercício do direito de iniciativa privada absolutamente livres, estando sujeitas a restrições e condicionamentos que resultam da necessidade de proteção do interesse público em geral e dos interesses de terceiros em particular, compreende-se que o legislador possa exigir dos particulares que queiram desenvolver tais atividades a máxima lealdade para com o Estado, especialmente quando estiverem defronte das autoridades reguladoras competentes, o que implicará que tenham um dever geral de colaborar com essas autoridades, nos termos legalmente impostos (P. de Sousa Mendes, em “O procedimento sancionatório especial por infrações às regras de concorrência”, in “Regulação em Portugal: Novos tempos, novo modelo?”, pág. 717, ed. de 2007, da Almedina”).
Assim, a obrigação de prestar informações e entregar documentos à entidade reguladora surge como uma condição de eficácia da efetiva salvaguarda da necessidade de regulação, supervisão e fiscalização da atividade económica, num domínio em que a colaboração dos agentes económicos se torna fundamental para o exercício de tais funções de excecional relevância pública.
Ora, sendo necessário assegurar o cumprimento efetivo desta obrigação típica de uma Administração conformadora, o sancionamento da sua inobservância como contraordenação revela-se, como alternativa a uma legislação penal, o meio coativo adequado e proporcional a satisfazer tal necessidade.
Num mundo de negócios a sanção patrimonial é a indicada para compelir os vários intervenientes a cumprir as regras públicas reguladoras da atividade económica.
A previsão da contraordenação aqui sob fiscalização tem, pois, plena justificação como meio dissuasor da inobservância do referido dever de colaboração, não violando a ideia de proporcionalidade em sentido amplo, enquanto referência fundamental do controlo da atuação dos poderes públicos num Estado de Direito.
A Recorrente, numa segunda linha de argumentação, alega que a moldura legal da coima é manifestamente excessiva, relativamente às consequências da infração, pelo que viola o princípio da proporcionalidade.
O n.º 2, do artigo 113.º, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, na redação aplicada pela decisão recorrida, prevê a aplicação de uma coima entre € 5.000 e € 5.000.000.
O Tribunal Constitucional tem reconhecido ao legislador ordinário uma livre e ampla margem de decisão quanto à fixação legal dos montantes das coimas a aplicar (ver Acórdãos n.º 304/94, n.º 574/95, n.º 547/00, 67/2011 e 132/2011, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), ainda que ressalvando que tal liberdade de definição de limites cessa em casos de manifesta e flagrante desproporcionalidade.
Se é verdade que a moldura sancionatória em causa se situa em valores muito elevados, há que ter presente que o cumprimento do dever em causa é essencial à supervisão e fiscalização de um setor de extraordinária relevância social, sendo certo que estas coimas se aplicam apenas a pessoas coletivas e que na área das comunicações operam empresas de enorme dimensão económica (o rendimento anual das empresas do setor nos últimos anos têm atingido cerca de 5% do PIB, segundo dados constantes do Anuário do Setor das Comunicações, edição de 2012 da Anacom, que pode ser consultado em www.anacom.pt,).Além disso, há que ter em conta que pode ocorrer a atenuação especial da punição quando se verifiquem circunstâncias que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de sanção, sendo, nesses casos, os limites da coima reduzidos a metade (artigo 18.º, n.º 3, do Regime Geral das Contraordenações).
Apesar das recentes alterações introduzidas na Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, pela Lei n.º 51/2011, de 13 de setembro, terem reduzido substancialmente os limites mínimo e máximo das coimas aplicáveis a esta contraordenação (a previsão passou a ter como limite mínimo € 1.000 e máximo € 1.000.000 – artigo 113.º, n.º 2, mm) e n.º 7), face às ponderações acima efetuadas não é possível afirmar, num critério de evidência, que a anterior moldura legal das coimas prevista para a violação de deveres de informação à Autoridade reguladora do setor e que foi aplicada pela decisão recorrida seja manifestamente excessiva, por se revelar flagrantemente desproporcionada relativamente à infração sancionada.
Finalmente, a Recorrente alega que a moldura legal da coima é demasiado abrangente, violando por isso o princípio da legalidade.
Num Estado de direito democrático a prevenção do crime deve ser levada a cabo com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, estando sujeita a limites que impeçam intervenções arbitrárias ou excessivas, nomeadamente sujeitando-a a uma aplicação rigorosa do princípio da legalidade, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita e certa (nullum crimen, nulla poena sine lege). É neste sentido que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, dispõe que ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
Não se pode afirmar que as exigências deste princípio valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º, a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10). Contudo, sendo o ilícito de mera ordenação social sancionado com uma coima, a qual tem repercussões ablativas no património do infrator, também aqui se devem respeitar os princípios necessariamente vigentes num Estado de direito democrático (artigo 2.º da Constituição), como os da segurança jurídica, da proteção da confiança e da separação de poderes (vide, neste sentido, os Acórdãos n.º 41/2004 e 397/12, acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
O problema que neste caso é colocado é o de uma eventual violação do princípio da legalidade pela excessiva amplitude existente entre a medida mínima e a medida máxima da coima. Em última análise, a excessiva amplitude tornaria imprevisível a sanção e transferiria incontrolavelmente para o aplicador da lei a fixação da sanção que, em rigor, cabe ao legislador, o que ofenderia os princípios constitucionais acima referidos.
A aplicação de uma coima tem sempre que ponderar a dimensão da gravidade do facto, da culpa do agente e da sua situação económica, não podendo a moldura fixada na lei deixar de ter uma amplitude que permita ao aplicador adequá-la às particularidades do caso concreto.
A simples previsão de aplicação de uma coima entre € 5.000 e € 5.000.000 que constava da redação da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, aplicada pela decisão recorrida, foi entretanto substituída, pelas já referidas alterações introduzidas pela Lei n.º 51/2011, de 13 de setembro, por um sistema complexo de previsão de coimas que, classificando o incumprimento do dever de prestar as informações consagrado no artigo 108.º, n.º 1 e 3, como uma contraordenação grave (alínea mm), do n.º 2, do artigo 113.º), no n.º 7, do mesmo artigo 113.º, estabeleceu diversas molduras sancionatórias para as pessoas coletivas, de acordo com a sua dimensão:
b) Se praticadas por microempresa, de € 1000 a € 10 000;
c) Se praticadas por pequena empresa, de € 2000 a € 25 000;
d) Se praticadas por média empresa, de € 4000 a € 50 000;
e) Se praticadas por grande empresa, de € 10 000 a € 1 000 000.
Desta nova sistematização técnica da definição da moldura legal das coimas resulta seguramente uma maior previsibilidade do valor da coima aplicável, assim como uma significativa diminuição da liberdade do julgador na fixação do valor da coima a aplicar no caso concreto.
Esta constatação não significa, porém, que a amplitude da anterior previsão, na qual a decisão recorrida se moveu, ofendesse necessariamente os invocados princípios estruturantes do Estado de Direito democrático, da segurança jurídica, da proteção da confiança e da separação de poderes.
Ora, se a inobservância do dever que é sancionada pela contraordenação aqui em análise justifica, pela decisiva importância do cumprimento desse dever e pelo facto de se encontrarem entre os seus destinatários pessoas coletivas de considerável dimensão económica, a previsão de limites bastante elevados para a respetiva coima, também não é menos verdade que uma grande diversidade da relevância das informações a prestar e da dimensão económica das diferentes empresas a operar no setor das comunicações exige também uma grande maleabilidade da previsão legal, de forma a permitir ao aplicador adequar a coima às circunstâncias do caso.
Apesar de ser possível, como ficou demonstrado, o recurso a uma técnica legislativa que reduzisse a margem de liberdade do aplicador na definição da medida da coima a fixar no caso concreto, pode dizer-se que a enorme distância entre o limite mínimo e o máximo da coima (1000 vezes) não deixa de ser, como foi referido nos Acórdãos nº 574/95 e 41/2004 deste Tribunal (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt), relativamente a uma diferente previsão contraordenacional, “um tributo justificado do princípio da legalidade ao princípio da culpa”.
Os limites estabelecidos na previsão sob fiscalização, ainda assim, não deixam de balizar as opções do aplicador numa medida que, atendendo às especificidades da infração e dos seus agentes, constitui um sacrifício tolerável das exigências de determinabilidade da previsão legal sancionatória.
Por estas razões não é possível afirmar que a norma sob fiscalização viole os princípios da legalidade, da segurança jurídica, da proteção da confiança, da separação de poderes e da proporcionalidade, imanentes a um Estado de Direito democrático, nem qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o recurso deve ser julgado improcedente.
Decisão
Nestes termos decide-se:
a) não julgar inconstitucional a norma constante da leitura conjugada dos artigos 108.º, n.º 1 e 3, 113.º, n.º 1, sss) (alínea ttt) na redação do Decreto-Lei n.º 176/2007, de 8 de maio) e n.º 2, do mesmo artigo 113.º, da Lei n.º 5/2004, de 10 de fevereiro, enquanto sanciona como uma contraordenação, punível com uma coima de € 5.000 a € 5.000.000, a violação da obrigação de prestação de informações prevista nos n.º 1 e 3 do artigo 108.º, do mesmo diploma, praticada por pessoa coletiva.
e, consequentemente,
b) não conhecer das demais questões colocadas pela Recorrente,
c) julgar improcedente o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A., Limitada.
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Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma legal).
Lisboa, 31 de janeiro de 2013. – João Cura Mariano – Fernando Vaz Ventura – Ana Guerra Martins – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro
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