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Processo n.º 642/12
2.ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, com o n.º 642/12, foi interposto o presente recurso, ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (LTC), do acórdão do Tribunal do Tribunal da Relação do Porto de 6 de junho de 2012.
2. Pela decisão sumária n.º 535/12 decidiu-se, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso interposto, com os seguintes fundamentos:
“ (...)
8. O recurso em apreço foi interposto ao abrigo de vias distintas de impugnação de decisões dos tribunais. Como resulta do requerimento de interposição de recurso, o recorrente alicerça o seu impulso nas alíneas g) e b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei 28/82, de 15 de novembro (doravante LTC), e indica a pretensão de ver apreciada a legitimidade constitucional de interpretações, que diz acolhidas no Acórdão recorrido.
Porém, a delimitação das interpretações questionadas é formulada em termos particularmente vagos e remissivos, o que motivou, de resto, o referido convite ao aperfeiçoamento. Como sempre acentuou o Tribunal Constitucional, o recorrente tem o ónus de enunciar, de forma clara e percetível, o exato sentido normativo do preceito, ou da sua interpretação, que considera inconstitucional (cfr., por exemplo, o Acórdão nº 21/2006).
Ainda assim, decorre do requerimento apresentado que o recorrente dirige o impulso recursório a duas vertentes distintas: uma relativa à apreciação da inconstitucionalidade do artigo 123.º do Código de Processo Penal, na interpretação do Acórdão recorrido, por violação dos n.ºs 1 e 10 do artigo 32.º da Constituição; outra, também referenciada a «interpretação do mesmo Acórdão», sem qualquer indicação normativa, alem da violação dos princípios constitucionais do contraditório, in dubio pro reo e da presunção de inocência, seguindo-se alusão à previsão dos n.ºs 1, 2 e 5 do artigo 32.º da Constituição.
9. Face aos termos da resposta ao convite que lhe foi dirigido, verifica-se que o recorrente procura alicerçar o recurso fundado na alínea g) do n.º1 do artigo 70.º da LTC em interpretação do artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Dito isto, a delimitação do sentido interpretativo cuja legitimidade constitucional se pretende questionar continua a denotar alguma imprecisão, para o que contribui a inserção de apreciações valorativas – vg. o advérbio cegamente - na formulação apresentada. Ignorado esse acrescento, ficamos com a colocação de problema que remete para a interpretação da norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal no sentido de «consagrar o prazo de três dias para arguir irregularidades a contar daquele em que as partes tiverem sido notificadas para qualquer termos do processo, sem atender quer à natureza da irregularidade, quer à objetiva (in)exigibilidade dessa arguição».
9.1. De acordo com a alínea g) do nº1 do artigo 70º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais que apliquem norma já anteriormente julgada inconstitucional (ou ilegal) pelo próprio Tribunal Constitucional. A admissibilidade desse tipo de recurso, com tem sido repetidamente sublinhado, pressupõe a verificação de estrita coincidência entre a norma, ou interpretação normativa, julgada inconstitucional no acórdão-fundamento e a norma, ou interpretação normativa dela extraída, questionada pelo recorrente, efetivamente aplicada na decisão recorrida.
Na síntese do Acórdão nº 568/08 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt):
«Efetivamente, para que um recurso possa ser admitido ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, tem de verifica-se uma dupla relação de identidade:
- Em primeiro lugar, exige-se que a norma que o recorrente quer ver apreciada tenha sido efetivamente aplicada pela decisão recorrida, como sua ratio decidendi;
- Em segundo lugar – e aqui reside o pressuposto específico desta abertura de recurso para o Tribunal Constitucional – tem de haver identidade entre a norma efetivamente aplicada na decisão recorrida e a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional. Não basta que possa ser sustentado que as mesmas razões que levaram a julgar inconstitucional determinada norma justificariam que juízo de igual sentido fosse formulado a propósito da norma aplicada na decisão recorrida (cfr., quanto ao âmbito, aos pressupostos e à razão de ser deste recurso, por exemplo, o Acórdão n.º 586/98, publicado no Diário da República, II Série, de 1 de março de 1999)».
9.2. Ora, no caso em apreço, e desde logo, não se verifica o primeiro pressuposto, de índole geral, supra enunciado: a interpretação normativa questionada não foi efetivamente aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida.
Com efeito, o Tribunal da Relação do Porto identificou como uma das questões colocadas pelo recorrente a nulidade da decisão administrativa, por falta de fundamentação. E, em apreciação do vício, concluiu pela sua inverificação, em virtude da obediência às exigências de fundamentação da decisão administrativa sancionatória, através de remissão para segmento doutro aresto da mesma Relação.
Surge, depois, a única menção ao artigo 123.º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos:
«E nem se diga que a recorrente invocou a irregularidade; é que tal invocação ocorreu depois do prazo de três dias previsto no art.º 123.º, n.º 1 do CPP, devendo aquela, a existir, sempre se considerar sanada».
A condicionalidade da asserção judicial, decorrente da locução «a existir», denota que se tratou de argumentação acessória, o que encontra confirmação na expressão final: «sempre se considerar sanada». Nesses termos, não se pode considerar que o Tribunal a quo considerou efetivamente verificada irregularidade na fundamentação da decisão administrativa e que dela não conheceu – e tirou consequências - por a considerar sanada em função da aplicação do prazo de três dias previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal. Entendeu, antes, que, mesmo que fosse essa a configuração do problema – i.e. que estivesse verificada irregularidade –, sempre o vício estaria sanado, o que, na economia da decisão, constitui fundamentação subsidiária. A ratio decidendi encontra-se a montante dessa linha argumentativa adicional e assenta na ausência de vício.
Por consequência, mesmo que o recurso de constitucionalidade lograsse sucesso, a eventual censura dirigida ao apontado sentido ou interpretação normativa do artigo 123.º, n.º 1 do Código de Processo Penal nenhum impacto teria na decisão subsequente do Tribunal a quo, em colisão com a necessária instrumentalidade da pronúncia do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta.
Assim, ausente o pressuposto geral de efetiva aplicação da interpretação normativa questionada, cumpre afastar a admissibilidade dessa vertente do recurso.
9.3. Importa acrescentar que também o pressuposto específico do recurso previsto na alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não se verifica: inexiste identidade entre a questão normativa colocada pela recorrente e o julgamento de inconstitucionalidade constante do acórdão fundamento.
Com efeito, o acórdão n.º 42/2007 julgou inconstitucional, por violação do artigo 32º, nº 1, da Constituição, a norma do artigo 123º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de consagrar o prazo de três dias para arguir irregularidades contados da notificação da acusação em processos de especial complexidade e grande dimensão, sem atender à natureza da irregularidade e à objetiva inexigibilidade da respetiva arguição.
Ora, o processo em apreço não assume natureza criminal, mas contraordenacional, para além de que não lhe corresponde a condição de processo de «especial complexidade», categoria e regime previstos apenas no ordenamento processual penal. Também não deparamos, nos presentes autos, com prazo contado da notificação de acusação.
Assim, e com nitidez, também por esta razão o recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC não pode ser admitido.
10. Cumpre, agora, apreciar as questões que a recorrente veio colocar na resposta ao convite ao aperfeiçoamento, em esclarecimento do recurso de constitucionalidade interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 da LTC.
Acontece que essa resposta peca, a um tempo, por excesso e por defeito.
10.1. Com efeito, o requerimento de interposição de recurso não contém qualquer referência às normas do n.º 1 do artigo 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, como ao n.º 1 do artigo 125.º do Código de Procedimento Administrativo e ao n.º 1 do artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações, preceitos em que assentam as questões colocadas nas alíneas i) e ii) do ponto 2 da resposta ao convite ao aperfeiçoamento, que, assim, excede o convite formulado.
Assim, por não integrarem o objeto do recurso de constitucionalidade, tal como delimitado pelo requerimento de interposição de recurso (cfr. n.º1 do artigo 75.º-A da LTC), não se conhece das questões colocadas sob as alíneas i) e ii) do ponto 2 da resposta ao convite ao aperfeiçoamento.
Fica, então, prejudicada a verificação dos pressupostos do recurso fundado na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, mormente a colocação de questões desprovidas de natureza normativa, visando a decisão, em si mesma considerada, e não a adoção de um critério normativo, com caráter de generalidade e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações.
10.2. Esta consideração releva, porém, para a apreciação da terceira questão colocada (alínea iii). Nela encontramos alusão apenas a princípios constitucionais e à sua aplicação ao caso concreto, o que não corresponde à colocação de questão normativa de constitucionalidade.
Trata-se de procurar a reapreciação da decisão do Tribunal da Relação do Porto, na valoração das especificidades do objeto do processo em apreço, o que não se mostra compreendido no regime de fiscalização concreta da constitucionalidade, circunscrito à apreciação de normas ou de uma sua dada dimensão ou interpretação. Não tem lugar, no âmbito da fiscalização concreta efetuada por este Tribunal Constitucional, a apreciação de quaisquer outros aspetos da decisão recorrida, designadamente questões relativas à subsunção dos factos ao enquadramento legal aplicável ou à apreciação e valoração da prova.
Aliás, a recorrente nem mesmo ensaia a indicação de qualquer critério normativo, extraído interpretativamente de preceito ou preceitos, impugnando diretamente o Acórdão recorrido, enquanto ato de julgamento.
Temos, então, que a recorrente não indica, nesse ponto, interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada, o que conduz à inadmissibilidade do recurso também nessa parte.”
3. Inconformado, o recorrente reclamou da decisão sumária para a conferência, nos termos que seguem:
“(...)
1. Em 14.11.2012, por despacho do Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator deste Tribunal foi proferida decisão sumária de não conhecer do recurso interposto, pela aqui Reclamante, para este Tribunal Constitucional, com os seguintes fundamentos:
i) No que respeita à interpretação do artigo 123º do Código de Processo Penal – artigo 70º, nº 1, alínea g) da LTC (ponto 1. da resposta da aqui Reclamante ao convite ao aperfeiçoamento) – que “a interpretação normativa questionada não foi efetivamente aplicada, como ratio decidendi, na decisão recorrida” porque “... não se pode considerar que o Tribunal a quo considerou efetivamente verificada a irregularidade na fundamentação da decisão administrativa e que dela não conheceu – e tirou consequências – por a considerar sanada…” e que “inexiste identidade entre a questão normativa colocada pela recorrente e o julgamento de inconstitucionalidade constante do acórdão fundamento” porque “o processo em apreço não assume natureza criminal, mas contraordenacional, para além de que não lhe corresponde a condição de processo de «especial complexidade», categoria e regime previstos apenas no ordenamento processual penal”;
ii) No que respeita ao artigo 70º, nº 1 alínea b) da LTC (ponto 2. alíneas i) e ii) da resposta da aqui Reclamante ao convite ao aperfeiçoamento) que “... o requerimento de interposição de recurso não contém qualquer referência às normas do n.º 1 do artigo 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, como ao nº 1 do artigo 125.º do Código de Procedimento Administrativo e ao n.º 1 do artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenaçöes, preceitos em que assentam as questões colocadas nas alíneas i) e ii) do ponto 2 da resposta ao convite ao aperfeiçoamento, que, assim, excede o convite formulado” e que (quanto ao ponto 2. alínea iii) da resposta da aqui Reclamante ao convite ao aperfeiçoamento) “a recorrente não indica, nesse ponto, interpretação normativa cuja inconstitucionalidade pretende ver apreciada...”
2. Salvo o devido respeito, a situação em apreço para além, de erroneamente apreciada, redunda, se assim for entendido, num abuso de direito. Isto porque...
3. Quanto à violação do nº 1 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa pelo artigo 123º do Código de Processo Penal (“CPP”) na interpretação acolhida pelo Acórdão recorrido (ponto 1. da resposta da Reclamante ao convite ao aperfeiçoamento), temos que o entendimento perfilhado na Decisão Sumária conduz à inadmissibilidade de qualquer recurso que tenha como objeto a apreciação da conformidade constitucional de uma norma já anteriormente julgada inconstitucional, quando aplicada/interpretada, num processo idêntico ou análogo,
4. Ou seja, pela interpretação da Decisão Sumária, apenas se estivermos exatamente com o mesmo tipo de processo e questão rigorosamente igual à questão a decidir, ou nas palavras da Decisão Sumária se verificarmos “estrita coincidência entre a norma, ou interpretação normativa” (sublinhado nosso), - o que convenhamos, é extremamente difícil de acontecer, pelos múltiplos pormenores e especificidades que a realidade de cada situação em concreto sempre impõe - é que será legítimo recorrer das decisões dos tribunais, com apelo à alínea g) do n.º 1 do artigo 70º da LTC.
5. Assim, na Decisão Sumária o Exmo. Senhor Juiz Conselheiro Relator para suportar a sua decisão faz a seguinte referência: “Na síntese do Acórdão nº 568/08...”
6. Não obstante, olvida o mesmo Juiz Conselheiro que, no Acórdão que cita para sustentar a sua “Decisão Sumária”, não se faz qualquer referência a “coincidência da interpretação normativa”, mas apenas à “identidade entre a norma efetivamente aplicada na decisão recorrida e a norma anteriormente julgada inconstitucional pelo Tribunal Constitucional”. (sublinhados nossos).
7. O que no caso sub judice não deixou de haver.
Vejamos...
8. O que se requereu foi a inconstitucionalidade da norma do artigo 123º do CPP na interpretação acolhida pelo Acórdão recorrido,
9. A norma apreciada no Acórdão do TC nº 42/2007, 2ª Secção, de 23 de janeiro – Proc. 950/2006 (identificado na resposta da Reclamante ao convite ao aperfeiçoamento – “Acórdão fundamento”) é a norma do artigo 123º do CPP.
10. Pelo que, s.m.o., a Decisão Sumária foi mais além do que o identificado Acórdão que serviu de suporte para a mesma.
11. Ao que acresce que a apreciação da Decisão Sumária quanto à identidade entre a questão normativa colocada e o julgamento de inconstitucionalidade do Acórdão fundamento também não pode proceder porquanto, apesar de ser certo que o processo em apreço não assume natureza criminal mas contraordenacional (diferentemente do Acórdão fundamento), é igualmente certo que a estes processos (contraordenacionais), pelo disposto no nº 1 do artigo 41º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (“RGCOC”), se aplica os preceitos reguladores do processo criminal, bem como a condição de processo de “especial complexidade” não é, ao contrário do invocado na “Decisão Sumária”, categoria e regime previstos apenas no ordenamento processual penal,
12. Ao invés, a condição apenas prevista no ordenamento processual penal é o da “excecional complexidade”, o que são conceitos diferentes.
13. A título meramente exemplificativo de que o conceito de “especial complexidade” se aplica ao processo contraordenacional, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 01.10.2008, referente ao processo nº 0843223, disponível em www.dgsi.pt:
“De acordo com o disposto no artigo 50º da L.Q.C. Ordenações, aprovada pelo D.L. 433/82, de 27 de outubro, com o redação que lhe foi dada pelo D.L. 244/95, de 14 de setembro: «não é permitida a aplicação de uma coima ou de uma sanção acessório sem antes se ter assegurado a possibilidade de, num prazo razoável, se pronunciar sobre a contraordenação que lhe é imputada e sobre a sanção ou sanções em que incorre. Dispondo o artigo 53º do mesmo diploma legal que o arguido da prática de uma contraordenação tem o direito de se fazer acompanhar de advogado escolhido em qualquer fase do processo, sendo certo que tal nomeação só é obrigatória sempre que as circunstâncias do caso revelarem especial complexidade ou a conveniência de o arguido ser assistido, ou seja, em casos de complexidade jurídica ou fáctica, pois a regra é da não obrigatoriedade, como decorre dos artigos 59º, nº 2, 67º, nº 2, e 68º, nº 1, da L.Q.C.O.” (sublinhados nossos).
14. No que respeita às questões das alíneas i) e ii) do ponto 2. da resposta da Reclamante ao convite ao aperfeiçoamento temos que não só não corresponde à verdade que a Reclamante se tenha pronunciado por excesso, porquanto no seu requerimento de interposição de recurso fez expressa referência à violação do princípio constitucional do contraditório, o que é exatamente a questão colocada em crise na alínea i) do ponto 2. da resposta da Reclamante ao convite ao aperfeiçoamento,
15. Sendo certo que o Tribunal Constitucional para além de apreciar a (in)constitucionalidade de normas também aprecia a (in)constitucionalidade de princípios consignados na CRP.
16. O mesmo valendo para a alínea iii) do ponto 2. da resposta da Reclamante ao convite de aperfeiçoamento.
17. A entender-se o contrário, como fez a Decisão Sumária, retira-se ou diminui-se o direito de a aqui Reclamante fazer valer “todas as garantias de defesa”, estabelecidas no artigo 32º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
18. Pelo que, em nome dos princípios da boa-fé e segurança aliados ao da prossecução da justiça na descoberta da verdade material, intrínseco ao ordenamento penal, aplicável ex vi artigo 41º do RGCOC ao caso sub judice, sempre será de se entender que o recurso interposto, pelo ora Reclamante, para este Tribunal deve ser admitido, por apenas desta forma se poder assegurar todas as garantias de defesa da ora Reclamante.
Nestes termos e nos mais de Direito, devem V.s Exas. deferir a presente reclamação e, em consequência, ordenar a admissão do recurso interposto para este Tribunal, apresentado pelo ora reclamante, em 26.06.2012.”
4. Notificado, o Ministério Público tomou posição no sentido da improcedência da reclamação.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
5. A reclamante interpôs recurso para o Tribunal Constitucional ao abrigo das alíneas b) e g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, recaindo, sobre qualquer desses impulsos recursórios, decisão sumaria de não conhecimento. A reclamação incide sobre essas duas vertentes de apreciação mas, em ambas, não assiste razão à reclamante.
6. No que concerne ao recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, entendeu-se na decisão sumária que a interpretação normativa colocada em crise não integrou a ratio decidendi do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto recorrido e, nessa medida, que não se encontra reunido o pressuposto geral exigido por aquele normativo para o conhecimento do recurso de constitucionalidade.
A reclamante não alinha qualquer argumento a esse propósito, dizendo apenas que requereu a inconstitucionalidade da norma do artigo 123.º do Código de Processo Penal “na interpretação acolhida pelo Acórdão recorrido”. Ora, como se explicitou na decisão sumária, aquela norma, mormente na interpretação enunciada no requerimento “aperfeiçoado”, não constituiu fundamento decisório, na medida em que o Tribunal a quo afastou a verificação do apontado vício da decisão administrativa, por falta de fundamentação e, inerentemente, não alicerçou por qualquer forma o sentido decisório que atingiu na equação do prazo de arguição de irregularidades do processo contemplado no artigo 123.º do Código de Processo Penal. Só em segunda linha, no quadro hipotético de aplicação do regime das irregularidades, surge a menção de que, mesmo que existisse o vício, sempre seria de se ter como sanado.
Assim sendo, não questionada a ausência do pressuposto geral de efetiva aplicação da interpretação normativa cuja constitucionalidade se pretendeu por em crise, cumpre desde já assentar na improcedência da reclamação nesta parte.
7. Diga-se, ainda assim, que a reclamante centrou a sua argumentação no segundo fundamento da decisão de não conhecimento do recurso interposto ao abrigo da alínea g) do n.º1 do artigo 70.º da LTC, a saber, a inverificação do pressuposto específico dessa espécie de recurso de constitucionalidade. A reclamante discorda desse entendimento pois, sustenta, basta a identidade do preceito equacionado entre o Acórdão precedente e a decisão recorrida –in casu, o artigo 123.º do Código de Processo Penal - para satisfazer esse pressuposto.
Porém, e como constitui jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional, o objeto de fiscalização em sede de recurso de constitucionalidade não é constituído apenas pelo enunciado num dado preceito ou preceitos. A fiscalização pode apenas incidir sobre uma determinada interpretação (ou dimensão normativa), seja ela extraída de um segmento textual, de um conjunto de elementos textuais ou de dimensões normativas construídas com base na relação entre texto e as circunstâncias do caso. Nessa medida, o mesmo enunciado pode comportar uma multiplicidade de sentidos normativos e fundar outros tantos – distintos – objetos de fiscalização pelo Tribunal Constitucional. Assim, a circunstância de uma qualquer decisão de inconstitucionalidade envolver uma específica dimensão normativa do artigo 123º do Código de Processo Penal não o constitui como precedente jurisprudencial para todo e qualquer questão atinente ou coenvolvida nesse preceito.
No caso em apreço, a configuração que a reclamante ofereceu para o objeto do recurso cinge-se precisamente a uma específica dimensão normativa do artigo 123.º do Código de Processo Penal - indica a pretensão de ver apreciada a legitimidade constitucional de interpretações, que diz acolhidas no Acórdão recorrido - e não a toda a constelação normativa comportada no preceito, pelo que a relação de identidade e de sintonia exigida pelo alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC apenas pode atender a essa específica dimensão normativa, extraída do leque, mais vasto, de interpretações passíveis de formulação a partir do texto do referido artigo.
Importa ainda notar que, ao contrário do que pretende a reclamante, o Acórdão n.º 568/08 afirma precisamente essa necessidade de estrita identidade normativa, não bastando para preencher o pressuposto específico da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a identidade do enunciado. Aliás, no caso em apreço nesse aresto, ponderaram-se decisões que tinham em linha de conta o preceituado no n.º 4 do artigo 175.º do Código da Estrada, mas em dimensões normativas distintas, o que conduziu igualmente ao afastamento dessa tipologia do recurso de constitucionalidade. Como se vê, não é correta a interpretação de que o Acórdão n.º 568/08 dispensa a identidade normativa, entendida funcionalmente, bastando-se com a identidade do preceito na base do critério normativo efetivamente utilizado na decisão recorrida.
Ora, e como a reclamante reconhece no ponto 4 da reclamação, a questão normativa colocada nestes autos não coincide com aquela apreciada no acórdão n.º 42/2007, indicado como precedente para efeitos do preenchimento da alínea g) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, pelo que, para além da apontada inverificação do pressuposto geral de efetiva aplicação da interpretação normativa questionada, falece igualmente, como se entendeu na decisão sumária, o pressuposto específico dessa tipologia do recurso de constitucionalidade.
8. No que respeita ao recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, a reclamante discorda que tenha excedido os termos do requerimento de interposição de recurso na formulação das alíneas i) e ii) do ponto 2 da resposta ao convite ao aperfeiçoamento. Para tanto, afirma que fez referência no requerimento de interposição de recurso ao princípio do contraditório e que também incumbe ao Tribunal Constitucional apreciar “a (in)constitucionalidade de princípios consignados na CRP”.
Desde logo, não se encontra fundamento na consideração de que o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC visa a fiscalização de “princípios consignados na CRP”, pois o seu objeto é restrito à fiscalização normativa. Importa ainda acentuar a sua natureza de recurso de normas e não de recurso incidente sobre as decisões judiciais, em si mesmo consideradas, inexistindo no ordenamento nacional a figura do recurso de amparo ou queixa constitucional.
Mas, e para o que interessa à decisão da reclamação apresentada, afigura-se-nos manifesto que a simples indicação do princípio do contraditório, como parâmetro constitucional violado, não permite considerar colocada questão dirigida a interpretação normativa extraída do n.º 1 do artigo 49.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, como do n.º 1 do artigo 125.º do Código de Procedimento Administrativo e do n.º 1 do artigo 58.º do Regime Geral das Contraordenações, preceitos que não surgem por qualquer forma mencionados no requerimento de interposição de recurso.
Assim, por não integrarem o objeto do recurso de constitucionalidade, tal como delimitado pelo requerimento de interposição de recurso (cfr. n.º 1 do artigo 75.º-A da LTC), cumpre confirmar a decisão sumária de não conhecimento das questões colocadas sob as alíneas i) e ii) do ponto 2 da resposta ao convite ao aperfeiçoamento.
9. Finalmente, quanto à formulação que se encontra na alínea iii) da resposta ao convite ao aperfeiçoamento, que se entendeu na decisão sumária não comportar a colocação de questão normativa suscetível de fundar recurso de constitucionalidade, a reclamante limita-se a remeter para os argumentos invocados quanto às alíneas i) e ii) do mesmo articulado de resposta.
Esses argumentos também não encontram qualquer procedência neste plano. A mera indicação de violação de princípios constitucionais, não afasta a questão colocada à apreciação deste Tribunal Constitucional do perímetro da valoração das especificidades do objeto do processo em apreço, em termos do permitir encontrar o questionamento da conformidade constitucional de critério normativo, com caráter de generalidade e, por isso, suscetível de aplicação a outras situações. Aliás, e como se diz na decisão reclamada, a recorrente nem mesmo ensaia a indicação de qualquer critério normativo, imputando a violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência à “apreciação dos factos dos autos em apreço”.
10. Face ao exposto, porque não se mostram verificadas razões para alterar a decisão sumária, cumpre concluir pelo indeferimento da reclamação e pelo não conhecimento do recurso.
III. Decisão
11.. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a presente reclamação e confirmar a decisão sumária n.º 535/12.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, tendo em atenção os critérios seguidos por este Tribunal e a dimensão do impulso desenvolvido pelo reclamante.
Notifique.
Lisboa, 9 de janeiro de 2013. – Fernando Vaz ventura – Pedro Machete – Joaquim de Sousa Ribeiro.
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