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Processo n.º 488/12
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria José Rangel de Mesquita
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, em que é recorrente A. e recorrido o MINISTÉRIO PÚBLICO, a primeira vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na sua atual versão (LTC), de acórdão proferido, em conferência, pelo Tribunal de Relação de Lisboa.
2. Pela Decisão Sumária n.º 435/2012, de 27 de setembro, decidiu-se não conhecer do objeto do recurso interposto, com a seguinte fundamentação:
«3. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls 219), com fundamento no artigo 76.º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos, cumulativos, de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75.º-A e 76.º, n.º 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não se encontram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC.
4. Do teor do requerimento de interposição de recurso apresentado pela recorrente decorre que do requerimento constam: a indicação da alínea do n.º 1 do artigo 70.º da LTC ao abrigo da qual o recurso é interposto – alínea b) do n.º 1 artigo 70.º (cfr. I, a fls. 217); a indicação da norma cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie – «art. 25.º n.º 1 al. b) e art. 31.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 50/2006 bem como a interpretação com que foi aplicada a decisão recorrida, quanto à possibilidade de aplicação de sanções acessórias consequência automática, desligada de qualquer valoração da sua adequação e proporcionalidade ao caso concreto» (cfr. I, a), a fls. 218); a indicação da norma ou princípio constitucional que se considera violado – artigo 47.º, n.º 1, artigo 30.º, n.º 4 e artigo 32.º, n.º 10, da Constituição (cfr. III, a), a fls. 218); e a indicação da peça processual em que a recorrente alega ter suscitado a questão da inconstitucionalidade – «nos autos em sede de arguição de nulidades e a fls. 84» (cfr. VI [leia-se IV], a), a fls. 218.)
5. Todavia, o n.º 2 do artigo 72.ºda LTC prevê que os recursos previstos na alínea b) do artigo 70.º só podem ser interpostos pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer.»
6. Tal não sucede no caso dos autos.
7. Com efeito, da análise dos autos decorre que a recorrente não suscitou a questão da inconstitucionalidade «de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer», como impõe o n.º 2 do artigo 72.º da LTC, já que não o fez na peça processual que indica (cfr. fls 199 a 202), nem nas demais.
7.1 Decorre do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal que a recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade «da norma infraconstitucional do Art. 25.º N.º 1 Aln. b) e art. 31.º N.º 1 e 2 da Lei n.º 50/2006» (cfr. I. a), a fls. 217).
7.2 Alega também a recorrente que «a questão da constitucionalidade foi suscitada e apreciada nos autos em sede de arguição de nulidades e a fls. 84» (cfr. VI. a), a fls 218).
7.3 Decorre porem da análise dos autos, que a questão da inconstitucionalidade das normas do artigo 25.º, n.º 1, b) e do artigo 31.º, n.ºs 1 e 2 – que a recorrente pretende seja apreciada por este Tribunal – nunca foi suscitada de modo processualmente adequado perante o Tribunal que proferiu a decisão recorrida – o Tribunal da Relação de Lisboa – em termos de este estar obrigado a dela conhecer.
7.4 Em primeiro lugar, não obstante a recorrente sustentar, genericamente, que «a questão de inconstitucionalidade foi suscitada e apreciada nos autos em sede de arguição de nulidades» (cfr. VI. a), a fls 218), certo é – como decorre da leitura do requerimento de arguição de nulidades do Acórdão da Relação de Lisboa proferido em 13 de Março de 2012 (cfr. fls. 199 a 202) – que a recorrente não suscitou nessa peça processual a inconstitucionalidade das normas da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, que pretende seja apreciada por este Tribunal – artigos «25.º, N.º 1, Aln. b)» e 31.º, n.ºs 1 e 2.
7.5 E nem o poderia fazer em relação ao artigo 25.º, n.º 1, alínea b) da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, alterada pela Lei n.º 89/2009, de 31 e Agosto e objecto de rectificação pela Declaração de Rectificação n.º 70/2009 (DR 1.ª série N.º 191, de 1 de Outubro de 2009) que a republicou, já que o n.º 1 daquela disposição legal não integra qualquer alínea.
7.6 E certo é também que a recorrente também não suscitou a inconstitucionalidade das normas da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, que pretende seja apreciada por este Tribunal (artigos «25.º, N.º 1, Aln.b)» e 31.º, n.ºs 1 e 2) a fls. 84 (referente a notificação de Agente da GNR).
7.7 E também não o fez nas demais peças processuais que apresentou (cfr. fls. 63-64, fls. 120 a 125 e 126 a 128).
8. Assim, não tendo a recorrente cumprido o ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o Tribunal que proferiu a decisão ora recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer, não pode conhecer-se do objeto do recurso.».
3. Vem agora a recorrente reclamar da referida Decisão Sumária n.º 435/2012, de 27 de setembro, para a conferência, ao abrigo do n.º 3 do artigo 78.º-A da LTC, requerendo, a final, que a reclamação para a conferência seja admitida e apreciada e, em consequência, seja apreciado o recurso (cfr. fls. 238-239, VII, in fine ), com os seguintes fundamentos (cfr. fls. 237-239):
«(…) I – O reclamante não concorda com a douta decisão da Exma Sr. Juíza Cons. Relatora no que concerne ao incumprimento do mesmo doa Ónus de suscitação da questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o Tribunal que proferiu a decisão ora recorrida, o Tribunal da Relação de Lisboa.
II – Já que, como indicou, o levantamento da questão da inconstitucionalidade foi de facto por si suscitado no recurso por si interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa.
III – E tanto assim foi que a decisão então em crise se pronunciou acerca da inconstitucionalidade, fazendo menção à inexistência de qualquer inconstitucionalidade, referência essa de que se discordou, daí o recurso para este Venerando Tribunal.
IV – É certo que no recurso para este Venerando Tribunal se lança mão de maior esmiuçamento das inconstitucionalidades então invocadas.
V – Mas daí a entender-se que não se cumpriram as formalidades e ónus da suscitação da questão de inconstitucionalidade, vai uma distância longa, com o que se não pode concordar.
VI – Assim sendo, e não podendo a questão de inconstitucionalidade fica por apreciar, entende-se ser de rejeitar a decisão sumária ora em crise.
VII – Por outro lado sempre se dirá ser entendimento da recorrente, salvo melhor e mais douto entendimento de V. Exas., que se encontra a decisão sumária, de per si e em si mesma, eivada de inconstitucionalidade, ao não permitir/recusar, com base em mero reenvio para jurisprudência desse Tribunal, que em conferência e de acordo com o estipulado na lei do Tribunal Constitucional em decorrência do vertido na Constituição da República Portuguesa, seja apreciada e decidido o mérito da questão da constitucionalidade cuja violação concretamente se invocou, pelo que deve o recurso interposto ser recebido e apreciado. (…)»
4. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, notificado da reclamação do recorrente, concluiu, na sua resposta, que «deve indeferir-se a reclamação» (cfr. 9.º), com os fundamentos seguintes (cfr. fls. 242-244):
«(…)1º
A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional do Acórdão da Relação de Lisboa que negou provimento ao recurso interposto da decisão proferida em 1.ª instância que, por sua vez, concedendo parcial provimento ao recurso interposto da decisão administrativa, a condenou, pela prática de diversas contra-ordenações, na coima única de 20 000 € e em duas sanções acessórias.
2º
No requerimento de interposição do recurso, a recorrente identifica a questão da constitucionalidade que pretende ver apreciada, da seguinte forma:
“A inconstitucionalidade da norma infraconstitucional do art. 25.º n.º 1 al. b) e art. 31.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 50/2006 bem como a interpretação com que foi aplicada a decisão recorrida, quanto á possibilidade de aplicação de sanções acessórias consequência automática, desligada de qualquer valoração da sua adequação e proporcionalidade ao caso concreto, o que colide frontalmente com a norma contida no artigo 30.º, n.º 4 da Constituição, que determina que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”
3º
Como a decisão recorrida é o Acórdão da Relação, o momento processual e a forma adequada de suscitar a questão, era na motivação do recurso para aquela Relação.
4º
Vendo tal peça processual, não se vislumbra minimamente a suscitação daquela questão de inconstitucionalidade, apenas sustentando a recorrente a revogação das sanções acessórias.
5.º
Aliás, nessa mesma peça, não é feita, sequer, qualquer referência a princípios ou preceitos constitucionais.
6.º
Mesmo que a recorrente suscitasse adequadamente a questão na arguição de nulidade do acórdão, como afirma, esse já não seria o momento processual para tal, uma vez que a Relação não adoptou, inovatoriamente, qualquer interpretação que desobrigasse a recorrente do cumprimento do ónus da suscitação prévia.
7.º
A própria recorrente não invoca estar perante uma decisão-surpresa.
8.º
Acresce que, como se diz na douta Decisão Sumária, também naquela arguição não foi suscitada a questão da constitucionalidade que a recorrente erigiu como objecto do recurso.
9.º
Pelo exposto, deve indeferir-se a reclamação. (…)».
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. A recorrente reclama para a conferência da Decisão Sumária n.º 435/2012, de 27 de setembro, por discordar do já decidido quanto ao conhecimento do objeto do recurso interposto para este Tribunal.
Discorda a ora reclamante do não conhecimento do objeto do recurso com fundamento na exigência legal de suscitação prévia da questão de inconstitucionalidade, de modo processualmente adequado, junto do tribunal a quo – no caso em apreço o Tribunal da Relação de Lisboa – (cf. fls. 237-238, I e V) por entender que «o levantamento da questão da inconstitucionalidade foi de facto por si suscitado no recurso por si interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa» (cf. fls. 238, II); que «(…) tanto assim foi que a decisão então em crise se pronunciou acerca da inconstitucionalidade, fazendo menção à inexistência de qualquer inconstitucionalidade, referência essa de que se discordou, daí o recurso para este Venerando Tribunal.» (cf. fls. 238, III); e, ainda, que «Assim sendo, e não podendo a questão de inconstitucionalidade ficar por apreciar, entende-se ser de rejeitar a decisão sumária ora em crise» (cfr. fls. 238, VI).
6. Não assiste razão à reclamante.
6.1 A reclamante entende que foi cumprida a formalidade e ónus da suscitação da questão de constitucionalidade, alegando que «o levantamento da questão da inconstitucionalidade foi de facto por si suscitada no Recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa» e, ainda, que «E tanto assim foi que a decisão então em crise se pronunciou acerca da inconstitucionalidade, fazendo menção à inexistência de qualquer inconstitucionalidade, referência essa de que se discordou, daí o recurso para este (…) Tribunal» (cfr. fls. 238, II e III).
6.2 Importa por isso recordar qual o objecto do recurso definido pela recorrente e ora reclamante no seu requerimento de interposição de recurso para este Tribunal.
6.3 No requerimento de interposição de recurso para este Tribunal a recorrente e ora reclamante erigiu como objecto do recurso e, assim, como questão de constitucionalidade que pretende ver apreciada (cfr. fls. 217-218, II, a)):
«A inconstitucionalidade da norma infraconstitucional do art. 25.º n.º 1 al. b) e art. 31.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 50/2006 bem como a interpretação com que foi aplicada a decisão recorrida, quanto à possibilidade de aplicação de sanções acessórias consequência automática, desligada de qualquer valoração da sua adequação e proporcionalidade ao caso concreto, o que colide frontalmente com a norma contida no artigo 30.º, n.º 4 da Constituição, que determina que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”».
6.4 A norma cuja inconstitucionalidade o recorrente pretende ver apreciada por este Tribunal é, nos termos do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, a «norma infraconstitucional do art. 25.º n.º 1 al. b) e art. 31.º, n.º 1 e 2 da Lei n.º 50/2006 bem como a interpretação com que foi aplicada a decisão recorrida».
6.5 A Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, aprova a lei quadro das contra-ordenações ambientais, versando os respectivos artigos 25.º e 31.º sobre, respectivamente, «Ordens da autoridade administrativa» e «Pressupostos da aplicação das sanções acessórias».
6.6 Na sua reclamação da decisão sumária proferida para a conferência alega a ora reclamante – diferentemente do que referira no requerimento de interposição de recurso (cfr. fls. 218, VI a)) – que «o levantamento da questão da inconstitucionalidade foi de facto por si suscitado no recurso por si interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa». E que a estão foi apreciada.
6.7 Ora da leitura das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. fls. 126 a 128) decorre que em nenhum ponto é suscitada a questão de constitucionalidade que a ora reclamante definiu como objecto do recurso para este Tribunal, nem qualquer outra questão de constitucionalidade, pois a recorrente não faz qualquer referência a princípios ou normas constitucionais.
6.8 E dado que a decisão recorrida é o Acórdão da Relação de Lisboa, o momento processual adequado para suscitar a questão de inconstitucionalidade – que se pretende seja apreciada por este Tribunal – seria, em princípio, a motivação do recurso apresentado.
6.9 Mesmo que, por mera hipótese teórica, a recorrente tivesse suscitado a questão de constitucionalidade que pretende seja apreciada por este Tribunal, tal como configurada no requerimento de interposição de recurso para este Tribunal, no requerimento de arguição de nulidade do acórdão (como afirma no ponto III. a) do requerimento de interposição de recurso para este Tribunal), esse não seria o momento processual adequado para o efeito, salvo tratando-se de uma «decisão surpresa» e «absolutamente imprevisível» que consubstanciasse a adopção, de modo inovatório, de qualquer interpretação normativa que desobrigasse a recorrente do cumprimento do ónus da suscitação prévia – o que nem a recorrente alegou na sua reclamação nem sucedeu no caso em apreço, pois o acórdão do Tribunal da Relação nega provimento ao recurso, incluindo na parte relativa à manutenção das sanções acessórias.
7. Por último, entende ainda a ora reclamante, no ponto VII da sua reclamação para a conferência, «que se encontra a decisão sumária, de per si e em si mesma, eivada de inconstitucionalidade, ao não permitir/recusar, com base em mero reenvio para jurisprudência desse Tribunal, que em conferência e de acordo com o estipulado na lei do Tribunal Constitucional em decorrência do vertido na Constituição da República Portuguesa, seja apreciada e decidido o mérito da questão da constitucionalidade cuja violação concretamente se invocou, pelo que deve o recurso interposto ser recebido e apreciado».
O direito que assiste ao recorrente de interpor recurso da decisão do Tribunal “a quo” para este Tribunal deve ser exercido no respeito pelos requisitos e pressupostos legais da sua admissibilidade, que o ora reclamante não observou no que respeita ao ónus de suscitação prévia de modo processualmente adequado. Além disso, o requerente exerceu o direito que lhe assiste de reclamação para a conferência, à qual compete decidir, como ora se faz, a reclamação apresentada.
III – Decisão
8. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas devidas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UC, nos termos do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro.
Lisboa, 6 de Dezembro de 2012. – Maria José Rangel de Mesquita – Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral.
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