|
Processo n.º 608/04 2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres Acordam, em conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional, 1. Relatório 1. A. e B. foram condenados, por acórdão do Tribunal do Círculo Judicial de Santiago do Cacém, de 25 de Fevereiro de 2002, pela prática, como cúmplices, de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, previsto e punidos pelos artigos 36.º, n.ºs 1, alíneas a) e c), 2, 5, alínea a), e 8, alíneas a) e b), e 21.º, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, e 27.º e 202.º, alínea b), do Código Penal, nas penas de, respectivamente, 1 ano e 2 meses de prisão e 1 ano de prisão, ambas suspensas na sua execução pelo período de um ano. Desta condenação interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão de 12 de Novembro de 2002, negou provimento a esse recurso. Deste acórdão interpuseram recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mas o recurso não foi admitido por despacho de 18 de Dezembro de 2002 do Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Évora, com fundamento na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal (CPP). Os recorrentes reclamaram deste despacho para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que, porém, indeferiu a reclamação. Interpuseram então os recorrentes recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), pretendendo ver apreciada a constitucionalidade quer da interpretação e aplicação do artigo 27.º do Código Penal feita pelo tribunal de 1.ª instância e pelo Tribunal da Relação de Évora, em violação do princípio constitucional in dubio pro reo, quer da interpretação dada ao artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP pelo Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Évora e pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Pela Decisão Sumária n.º 134/2003, a Relatora no Tribunal Constitucional decidiu não tomar conhecimento da questão relativa ao artigo 27.º do Código Penal e não julgar inconstitucional o artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP, assim confirmando o despacho recorrido do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Aquela decisão de não conhecimento fundou-se nas seguintes considerações: “6. Uma das questões de constitucionalidade que os recorrentes pretendem ver apreciada no presente recurso de constitucionalidade reporta-se a uma dada interpretação do artigo 27.° do Código Penal, nos termos da qual seria admissível a cumplicidade negligente. O recurso de constitucionalidade foi interposto do despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que decidiu a reclamação do despacho de não admissão do recurso interposto para aquele Supremo Tribunal, confirmando a não admissão do recurso. Esse despacho fez mera aplicação do artigo 400.° do Código de Processo Penal, considerando irrecorrível o acórdão do Tribunal da Relação, não se tendo pronunciado sobre o fundo da questão (e, portanto, sobre a aplicação do artigo 27.° do Código Penal). O prazo de interposição do recurso de constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora iniciar-se-á após a decisão final da reclamação do despacho de não admissão do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 75.°, n.° 2, da Lei do Tribunal Constitucional). Assim, a decisão recorrida nos presentes autos (despacho do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça) não fez aplicação da norma impugnada, pelo que não se apreciará o objecto do presente recurso reportado ao artigo 27.° do Código Penal.” A referida Decisão Sumária foi notificada aos recorrentes por carta registada expedida em 11 de Junho de 2003. Por telecópia expedida em 4 de Julho de 2003 para o Tribunal da Relação de Évora, os recorrentes interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade da interpretação dada ao artigo 27.º do Código Penal, por contrária ao princípio constitucional in dubio pro reo. Com data de 14 de Novembro de 2003, consta de fls. 610 do processo principal (fls. 45 destes autos), o seguinte despacho da Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Évora: “Baixem os autos à 1.ª instância.” Com data de 4 de Maio de 2004, consta de fls. 651 do processo principal (fls. 46 destes autos) o seguinte despacho da Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Évora: “Verifica-se dos autos que o recurso interposto para o Tribunal Constitucional foi admitido por douto despacho datado de 31 de Março de 2003 (fls. 593 destes autos) pelo Supremo Tribunal de Justiça, tendo sido o ilustre mandatário dos recorrentes notificado, conforme consta de fls. 594 e 594 verso dos autos, desse despacho. A fls. 597 e seguintes dos autos consta a decisão proferida pelo Tribunal Constitucional, datada de 9 de Junho de 2003, a qual se mostra notificada nomeadamente aos recorrentes (a fls. 604 e já transitada). Pelo exposto, renovo o meu anterior despacho de fls. 610 («Baixem os autos à 1.ª instância»).” Este despacho de 4 de Maio de 2004 (de fls. 651 do processo principal) foi notificado aos recorrentes por carta registada expedida em 7 de Maio de 2004, não constando dos autos que o despacho de 14 de Novembro de 2003 (de fls. 610 do processo principal) lhes houvesse sido notificado. Em 14 de Maio de 2004 deu entrada na secretaria do Tribunal da Relação de Évora reclamação para o Tribunal Constitucional contra não admissão do recurso, com a seguinte fundamentação: “1) Os arguidos foram condenados, pela prática, como cúmplices, de um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 36.°, n.ºs 1, alíneas a) e c), 2, 5, alínea a), e 8, alíneas a) e b), e 21.º, alíneas a) e b), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, e 27.° e 202.º, alínea b), do Código Penal. 2) Do acórdão proferido em primeira instância recorreram os arguidos A. e B. para o Tribunal da Relação de Évora, invocando, além do mais, que a interpretação e aplicação dada ao artigo 27.° do Código Penal, que serviu para condenar os arguidos, foi contrária ao princípio constitucional in dubio pro reo. 3) O Tribunal da Relação de Évora veio, no ponto 2.4.1.1 do douto acórdão, decidir que não houve violação do mencionado principio in dubio pro reo. 4) Inconformados com a decisão do Tribunal da Relação de Évora, vieram os arguidos A. e B. a recorrer para o Venerando Supremo Tribunal de Justiça. 5) O Ex.mo Juiz Desembargador Relator não admitiu o recurso interposto, com fundamento na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.° do Código de Processo Penal. 6) Inconformados com tal decisão, reclamaram os arguidos para o Venerando Juiz Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, invocando, além do mais, que a interpretação e aplicação, no caso concreto, dada à alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal foi contrária ao artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa. 7) A reclamação deduzida veio a ser indeferida. 8) Os arguidos recorreram para o Tribunal Constitucional. 9) O Tribunal Constitucional confirmou o despacho recorrido. 10) Pretenderam, então, os arguidos recorrer ao Tribunal Constitucional para apreciação da aplicação do artigo 27.° do Código Penal dada pelo Tribunal da Relação de Évora. 11) O que já tinham feito no requerimento de interposição de recurso, fazendo, também, à cautela e com os mesmos argumentos no novo requerimento. 12) Fizeram-no dando expressão ao 3.° parágrafo do ponto 7.° da decisão do Tribunal Constitucional, que refere:«O prazo de interposição do recurso de constitucionalidade do acórdão do Tribunal da Relação de Évora iniciar-se-á após a decisão final da reclamação do despacho de não admissão do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça (artigo 75.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional)». Ora, 13) Os arguidos foram notificados da decisão do Tribunal Constitucional por carta registada datada do dia 11 de Junho de 2003. 14) A notificação presume-se feita no terceiro dia útil posterior ao do envio (artigo 113.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). 15) Assim, e no caso em apreço, a notificação presume-se feita no dia 16 de Junho de 2003. 16) Da decisão sumária proferida pelo Tribunal Constitucional dispunham os arguidos do prazo de dez dias para, nos termos do artigo 669.º do Código de Processo Civil, por remissão do artigo 69.º da LTC, pedir o esclarecimento ou reforma da decisão. 17) Ou seja, os arguidos dispunham de prazo até dia 26 de Junho de 2003, para requerer o esclarecimento ou reforma da decisão, nos termos do já citado artigo 669.° do Código de Processo Civil. 18) A este prazo acresceria, ainda, o prazo previsto no artigo 145.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, que lhe possibilitaria praticar o acto, com multa, nos três dias úteis subsequentes. 19) Só após o decurso dos supra referidos prazos, transitou em julgado a decisão do Tribunal Constitucional. 20) Ou seja, o trânsito em julgado da decisão final da reclamação do despacho de não admissão do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça verificou-se no dia 2 de Julho de 2003. Ora, 21) Após essa data (2 de Julho de 2003), os arguidos dispunham de oito dias para interpor recurso para o Tribunal Constitucional (artigo 75.º da LTC). 22) Os arguidos enviaram, via fax, ao Tribunal da Relação de Évora o requerimento de interposição de recurso no dia 4 de Julho de 2003, tendo remetido na mesma data o requerimento via postal.(Doc. n.º 1). 23) O requerimento veio a ser recebido pelo Tribunal da Relação em 7 de Julho de 2003.(Doc. n.º 2). Portanto, 24) O requerimento de interposição de recurso dos arguidos para o Tribunal Constitucional, para apreciação do artigo 27.° do Código Penal, na interpretação e aplicação que lhe foi dada pelo Tribunal da Relação de Évora, foi tempestivamente interposto. No entanto, 25) Por motivos que os arguidos desconhecem, o referido requerimento não mereceu do Tribunal da Relação de Évora qualquer despacho. 26) Só em momento posterior, com a notificação da conta de custas, tiveram os arguidos conhecimento que o processo havia baixado à 1.ª instância, sem que o Tribunal da Relação se tivesse pronunciado sobre o requerimento de recurso tempestivamente interposto. 27) O recurso para o Tribunal Constitucional para apreciação da aplicação do artigo 27.° do Código Penal dada pelo Tribunal da Relação de Évora foi tempestivamente apresentado, é admissível e por isso deve ser admitido e recebido.” No Tribunal Constitucional, o representante do Ministério Público emitiu o seguinte parecer: “Do requerimento de fls. 101 a 119 resulta que os reclamantes suscitaram perante o Tribunal da Relação de Évora uma questão de constitucionalidade, de forma tempestiva, e, pelo menos, com um mínimo de adequação, que não justificaria o teor do despacho de fls. 46 [despacho de fls. 651 do processo principal], ordenando a baixa do processo à 1.ª instância. Afigura-se-nos, assim, que a presente reclamação merece deferimento.” Tudo visto, cumpre apreciar e decidir. 2. Fundamentação 2.1. Embora não se pronunciando de forma directa e explícita sobre o requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, o despacho da Desembargadora Relatora do Tribunal da Relação de Évora, de 4 de Maio de 2004, tem o inequívoco sentido de não admissão desse recurso, por razões ligadas à sua tempestividade. Nesta perspectiva, tal despacho não pode ser mantido. Na verdade, decorre do artigo 75.º, n.º 2, da LTC (“Interposto recurso ordinário, mesmo que para uniformização de jurisprudência, que não seja admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o Tribunal Constitucional conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite [o] recurso”) que, tendo sido interposto recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação de Évora, o prazo de interposição de recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional só se conta a partir do trânsito em julgado da decisão que não admitiu, com fundamento em inadmissibilidade da decisão, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. E este trânsito só ocorreu com o trânsito em julgado da Decisão Sumária do Tribunal Constitucional que negou provimento ao recurso de constitucionalidade interposto da decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que indeferiu a reclamação contra a não admissão do recurso interposto para esse Supremo Tribunal. Tendo aquela Decisão Sumária sido notificada por carta registada expedida em 11 de Junho de 2003, considerando-se a notificação efectivada no subsequente dia 16 (14 e 15 foram Sábado e Domingo), o seu trânsito em julgado ocorreu em 26 de Junho de 2003 (ou em 1 de Julho de 2003, se se considerar relevante, para este efeito, a faculdade da prática do acto, com multa, nos três primeiros dias úteis seguintes ao termo do prazo), pelo que o prazo de 10 dias para interposição de recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Évora começou a contar no dia 27 de Junho (ou 2 de Julho) de 2003, e terminava em 7 (ou em 14, uma vez que 12 e 13 foram Sábado e Domingo) de 2003. Assim, o requerimento de interposição de recurso enviado por telecópia em 4 de Julho de 2004 e registado na secretaria no subsequente dia 7 é manifestamente tempestivo. Não pode, assim, subsistir a decisão de não admissão do recurso com fundamento em intempestividade na sua interposição. 2.2. Acontece, porém, que nas reclamações de decisão de não admissão de recurso de constitucionalidade, os poderes de cognição do Tribunal Constitucional não estão limitados à apreciação da correcção do fundamento da decisão reclamada, devendo estender a sua investigação a outras causas de inadmissibilidade do recurso, atenta a regra do n.º 4 do artigo 77.º da LTC, segundo a qual a decisão (do Tribunal Constitucional) que revogue o despacho de indeferimento faz caso julgado quanto à admissibilidade do recurso. No sistema português de fiscalização de constitucionalidade, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional cinge-se ao controlo da inconstitucionalidade normativa, ou seja, das questões de desconformidade constitucional imputada a normas jurídicas (ou a interpretações normativas, hipótese em que o recorrente deve indicar, com clareza e precisão, qual o sentido da interpretação que reputa inconstitucional), e já não das questões de inconstitucionalidade imputadas directamente a decisões judiciais, em si mesmas consideradas (como acontece com o recurso de amparo espanhol ou a queixa constitucional alemã). A distinção entre os casos em que a inconstitucionalidade é imputada a interpretação normativa daqueles em que é imputada directamente a decisão judicial radica em que na primeira hipótese é discernível na decisão recorrida a adopção de um critério normativo (ao qual depois se subsume o caso concreto em apreço), com carácter de generalidade, e, por isso, susceptível de aplicação a outras situações, enquanto na segunda hipótese está em causa a aplicação dos critérios normativos tidos por relevantes às particularidades do caso concreto. Por outro lado, tratando-se de recurso interposto ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC – como ocorre no presente caso –, a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos de a questão de inconstitucionalidade haver sido suscitada “durante o processo”, “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC), e de a decisão recorrida ter feito aplicação, como sua ratio decidendi, das dimensões normativas arguidas de inconstitucionais pelo recorrente. Quando os recorrentes questionam a conformidade constitucional de uma determinada interpretação normativa, devem explicitar o sentido atribuído às normas em causa que consideram inconstitucional e que pretendem ver apreciado no âmbito do recurso de constitucionalidade. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão n.º 367/94 (Diário da República, II Série, n.º 207, de 7 de Setembro de 1994, pág. 9341; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 28.º vol., pág. 147): “Ao questionar-se a compatibilidade de uma dada interpretação de certo preceito legal com a Constituição, há-de indicar-se um sentido que seja possível referir ao teor verbal do preceito em causa. Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há-de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão em termos de tanto os destinatários desta como, em geral, os operadores do direito ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, deste modo, afrontar a Constituição”. Por estas razões, não constitui modo adequado de identificação da interpretação normativa que se reputa inconstitucional o uso de expressões como “na interpretação feita pela decisão recorrida”, ou similares, pois tal implicaria que o Tribunal Constitucional se iria substituir aos recorrentes na identificação do objecto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade (cf. Acórdão n.º 60/2004, em www.tribunalconstitucional.pt). 2.3. Interessa, assim, apurar se os reclamantes suscitaram perante o Tribunal da Relação de Évora qualquer questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao artigo 27.º do Código Penal, em termos processualmente adequados a constituir esse Tribunal na obrigação de dela conhecer, e se o acórdão recorrido fez aplicação, como ratio decidendi, da dimensão normativa arguida de inconstitucional. Na motivação do recurso interposto para o Tribunal da Relação de Évora, os reclamantes, a propósito da interpretação e aplicação do artigo 27.º do Código Penal, expenderam o seguinte: “III) A incorrecta interpretação do artigo 27.º do Código Penal: Dispõe o artigo 27.° do Código Penal que: «É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxilio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso». O nosso ordenamento jurídico apenas prevê a cumplicidade sob a forma dolosa. Ora, no caso em apreço, o Tribunal a quo efectuou uma errada interpretação do artigo 27.° do Código Penal. O Tribunal a quo deu como provado (cf. pontos n.ºs 65 e 67 da alínea c) do douto acórdão) que os recorrentes desconheciam os mecanismos de atribuição de subsídios. O Tribunal a quo deu como provado que os recorrentes não tiraram qualquer beneficio da atribuição do subsídio ao arguido C. (cf. alínea d) do douto acórdão). Assim sendo, os recorrentes limitaram-se a assinar, cada um deles, duas facturas. Pergunta-se: a assinatura de duas facturas, desconhecendo-se os mecanismos de atribuição de subsídios, revela, sem margem para dúvidas, que os recorrentes pretenderam deliberadamente auxiliar o arguido C. a obter o subsídio? De todo se pode retirar tal conclusão. Da análise cuidada da matéria de facto dada como provada não se pode concluir, antes pelo contrário, que os recorrentes agiram de forma dolosa. É o próprio Tribunal a quo que o «confessa», quando considera provado que os recorrentes não tinham conhecimento dos mecanismos de atribuição de subsídios. A vingar a tese do Tribunal a quo qualquer comerciante que vendesse facas poderia vir a ser considerado cúmplice num crime de homicídio, se esse crime viesse a ser cometido com uma faca (porventura de cozinha), que tivesse vendido. Existe um elemento essencial na cumplicidade, que é o elemento subjectivo dolo, que no caso sub judice não se verificou. Os recorrentes desconheciam que a factura que assinaram se destinava à obtenção de um qualquer subsídio, tanto mais que desconheciam os mecanismos de atribuição dos mesmos, conforme se verifica nos pontos n.ºs 65 e 67 do ponto c) do douto acórdão. O elemento subjectivo do cúmplice tem de abarcar o auxílio doloso e a prática do facto principal por parte do autor, com as seguintes consequências: – exclusão da possibilidade de uma cumplicidade negligente; – que o cúmplice pressuponha no e para o autor a prática de um facto típico e ilícito. Outro exemplo: «Suponhamos que uma pessoa pede uma arma emprestada a outra, porque quer matar uma terceira. Mas essa outra que lhe empresta a arma, empresta-lha sem saber para que é que a arma vai servir; não há aqui cumplicidade dolosa na medida em que o cúmplice (ou suposto cúmplice) não sabe que essa arma se destina a cometer um crime de homicídio». Defende a Prof. Teresa Beleza que poderia ser exigível que este suposto cúmplice pudesse prever que aquela arma seria usada para um fim criminoso, e então ele teria agido com negligência. Sucede que não está prevista na lei a cumplicidade por negligência, a qual só é punível quando especialmente prevista. Não houve, no caso sub judice, qualquer configuração culposa por parte dos recorrentes. Os recorrentes desconheciam o fim que iria ser dado às facturas que assinaram, tanto mais que desconheciam que elas poderiam servir para a obtenção de qualquer subsídio (cf. pontos n.ºs 65 e 67 do douto acórdão). «A cumplicidade terá necessariamente que revestir a forma dolosa, por imposição expressa da lei» (Código Penal Português Anotado e Comentado, de M. Maia Gonçalves). Não houve qualquer actuação dolosa por parte dos recorrentes. Quanto muito, pode admitir-se que o comportamento dos recorrentes foi negligente, ao assinarem facturas que sabiam não corresponder a efectivas transacções. Porém, tal eventual negligência não é, face ao nosso ordenamento penal, punível. Conclui-se que não estão reunidos os requisitos para aplicação do artigo 27.° do Código Penal. IV) A violação do princípio in dubio pro reo O Tribunal a quo, na sua decisão, fez tábua rasa do princípio elementar de Direito Penal e constitucionalmente consagrado: «in dubio pro reo». Com efeito, «A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-juridico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. I, Verbo, 1993, pág. 41). «O principio geral da prova é o principio in dubio pro reo, segundo o qual perante a existência de factos incertos e perante uma dúvida irremovível e razoável, deverá o tribunal, na decisão acerca da apreciação e valoração das provas e determinação dos factos provados [sic]. Ora, tendo o Tribunal considerado, como o fez, que os recorrentes desconheciam os mecanismos de atribuição de subsídios, nunca, em caso algum, poderia, sem dúvida razoável, condenar os recorrentes como o fez. Os factos dados como provados, nomeadamente os dos pontos n.ºs 65 e 67 da alínea c) e a alínea d), lançam, pelo menos, fortes dúvidas se o comportamento dos recorrentes foi doloso. Quanto muito, pode admitir-se que o comportamento dos recorrentes foi negligente, ao assinarem facturas que sabiam não corresponder a efectivas transacções. Agora, afirmar-se que tal comportamento é, sem margem para dúvidas, doloso, sabendo-se que os recorrentes desconheciam os mecanismos de atribuição de subsídios, e que não obtiveram qualquer beneficio, é no mínimo perigoso para uma justiça que se quer justa. Para pleno cumprimento do princípio do in dubio pro reo deve absolver-se os arguidos porque, ainda que alguns factos tenham sido dado como provados, uma vez concatenados, não fazem sentido, nem correspondem ao que na realidade, de acordo com a experiência comum, se pode considerar como normal naquelas condições. V) Conclusões: (...) Conclui-se, para efeitos do artigo 412.º do CPP, que 34) O Tribunal a quo aplicou erradamente o artigo 27.° do Código Penal, pois o artigo apenas prevê comportamentos dolosos, o que, face à matéria dada como provada, não foi, claramente, o comportamento dos recorrentes. 35) Verifica-se uma contradição insanável na matéria de facto provada, pois os pontos n.ºs 65 e 67 da alínea c) e a alínea d) são antagónicos e inconciliáveis com o ponto n.º 47 da alínea c) do douto acórdão, que por isso se encontra incorrectamente julgado. 36) Verifica-se uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, pois aquela refere que os recorrentes desconheciam os mecanismos de atribuição de subsídios aos produtores, o que contraria a decisão final. 37) O douto acórdão enferma de um erro notório na apreciação da prova, pois não escapa à observação do homem de formação média e às regras da experiência comum que os recorrentes, face ao seu desconhecimento da forma de obtenção de subsídios, estavam impossibilitados de prestar auxílio, deliberado e consciente, ao arguido C.. 38) O Tribunal a quo violou o disposto no n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, pois, estando perante uma dúvida irremovível e razoável, o Tribunal na decisão acerca da apreciação e valoração das provas não favoreceu os recorrentes. Nestes termos, Deve o presente recurso ser julgado procedente e, de acordo com o artigo 426.° do Código de Processo Penal, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento de forma a que se possa pôr termo às contradições apresentadas.” O acórdão do Tribunal da Relação de Évora, ao tratar das questões suscitadas pela transcritas passagens da motivação do recurso interposto pelos ora reclamantes, consignou o seguinte: “2.4.1.1. – Se na decisão recorrida se fez uma incorrecta interpretação do artigo 27.° do Código Penal e se ela violou o princípio in dubio pro reo. Entendem os recorrentes que o tribunal não podia ter dado como provado que eles agiram de forma dolosa, já que é o próprio tribunal que aceita que agiram sem conhecimento dos mecanismos de atribuição de subsídios, sendo certo, por outro lado, que não tiraram qualquer benefício desta atribuição, tendo-se limitado a assinar, cada um, duas facturas com desconhecimento do fim que lhes iria ser dado. Quando muito (continuam) e, no limite, a sua conduta poderá configurar-se como negligente. Daqui a errada interpretação do artigo 27.º, já que a cumplicidade reveste a forma dolosa e daqui também a violação do princípio in dubio pro reo. Vejamos. Já acima os arguidos haviam posto em causa estes factos, apontando vícios à decisão com base neles e que mereceram a apreciação além igualmente feita. Agora, outra coisa não fazem senão pôr em causa a convicção do tribunal ao dar como provado o facto descrito sob o n.° 47 (a actuação dolosa), tendo em atenção a matéria de facto dada como provada sob os n.ºs 65 e 68 (que desconheciam os mecanismos de atribuição de subsídios) e a matéria de facto dada como não provada sob a alínea d) do acórdão recorrido (que eles tivessem tirado benefício com a atribuição do subsídio ao arguido C.), fazendo sobressair a sua própria convicção. Dizendo de outro modo. É convicção dos recorrentes que face a estes últimos factos, quando muito, deveria ter-se entendido que eles actuaram negligentemente. Acerca da compatibilidade desta matéria de facto já acima nos pronunciámos. Consagra o artigo 127.º do CPP: «Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente». O julgador é, assim, livre de apreciar as provas, embora tal apreciação seja «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório» – Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1986, vol. I, pág. 211. Esta liberdade concedida ao julgador tem em vista o cumprimento de um dever – perseguir a verdade material por tal forma que a apreciação que dos factos faça se possa reconduzir a critérios objectivos e, consequentemente, susceptíveis de motivação e de controlo (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1981, tomo I, pág. 202). Assim, tal liberdade é concedida e deve ser assumida com vista a fazer triunfar a verdade objectiva, que se comunique e imponha aos outros (Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, 1967/68, pág. 50). Significa tudo isto que a exigência de objectividade seja, ela própria, um princípio de direito, ainda que no domínio da convicção probatória, implicando, por outro lado, que tal convicção só seja válida se fundamentada, pois que, de outro modo, não poderá ser objectiva (Figueiredo Dias, idem). O que vem de dizer-se não significa, no entanto, que o juiz não seja livre no que respeita ao acto de julgar, uma vez que a sua convicção é pessoal, só que objectivável e motivável. Por outro lado, sobre a valoração da prova apresentam-se diferentes níveis ao juiz. Num primeiro aspecto sobressai a natureza da própria prova (directa ou indirecta), assim como a credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova. Num outro patamar ressaltam as operações de julgamento a nível cognitivo mediante operações de cotejo entre os meios de prova, bem como, através da formulação de induções e deduções que, partindo da inteligência, hão-de basear-se na correcção do raciocínio, mediante a utilização das regras da lógica, princípios de experiência e conhecimento científicos, tudo se englobando na expressão global regras de experiência (Curso de Processo Penal, Germano Marques da Silva, vol. II, 1993, pág. 111, e ainda Acórdão da Relação de Coimbra, de 13 de Janeiro de 1999, na Colectânea de Jurisprudência, ano XXIV, tomo I, pág. 44, que temos estado a acompanhar de perto). Ponderando o que se deixa dito e ainda o que acima se transcreveu em 2.3.3. deste acórdão acerca dos elementos que serviram de base para a formação da convicção do tribunal, entendemos que a prova foi correctamente apreciada e valorada, sem atropelos às regras da experiência e da lógica, pelo que não vemos que a decisão do tribunal nesta matéria devesse ter sido diferente daquela que se encontra retratada no facto dado como provado sob o n.° 47, nomeadamente a que o recorrente pretende. Quanto à violação do princípio in dubio pro reo, como jurisprudencialmente se consagrou – ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 3 de Fevereiro de 1998, www.dgsi.pt – só pode censurar-se o uso feito (ou não) deste princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a esta, escolheu, não a favorável, mas a tese desfavorável ao arguido. Ora, no caso que nos ocupa, por um lado, do texto da decisão recorrida não resulta que o tribunal tenha dado como provado o facto que agora é posto em causa tendo dúvidas sobre a sua verificação e, por outro, do mesmo texto, conjugado com as regras da experiência comum, não resulta de forma nenhuma (como já acima dissemos) que outra devesse ter sido a decisão (designadamente aquela pela qual os recorrentes agora lutam), designadamente por se dever considerar irrazoável, temerária, inverosímil ou arbitrária a proferida pelo tribunal a quo. Não há, portanto, qualquer violação ao mencionado princípio.” 2.4. Das transcrições feitas resulta inexoravelmente a inadmissibilidade do recurso interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, por diversas razões. Desde logo, os reclamantes não identificam, com um mínimo de precisão e clareza, qual a interpretação normativa do artigo 27.º, n.º 1, do Código Penal, que teria sido adoptada pelo acórdão ora recorrido, susceptível de dissociação das especificidades do caso concreto e de ser assumida como critério normativo aplicável a outros casos. Depois, na motivação do recurso para o Tribunal da Relação de Évora, os reclamantes não suscitam, em rigor, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, antes imputam a violação da Constituição directamente à decisão judicial então recorrida, em si mesma considerada, designadamente por, ao proceder à apreciação e valoração da prova, para efeito de determinação dos factos tidos por provados, ter desrespeitado o princípio in dubio pro reo. Finalmente, mesmo que se entendesse que, embora deficientemente formulada, a questão de inconstitucionalidade que os reclamantes pretenderiam suscitar seria reportada a uma interpretação do artigo 27.º, n.º 1, do Código Penal, que considerasse punível a cumplicidade negligente (hipótese em que o parâmetro constitucional mais adequado seria o princípio da legalidade penal – enquanto veda a extensão da incriminação a situações insusceptíveis de inclusão na previsão da lei penal, que, no caso, apenas admite a punição da cumplicidade dolosa –, e não o princípio in dubio pro reo), é seguro que semelhante interpretação não foi acolhida no acórdão recorrido, pelo que sempre faltaria o requisito de admissibilidade do recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, consistente em a decisão recorrida ter aplicado, como ratio decidendi, a dimensão normativa arguida de inconstitucional. Na verdade, o que nesse acórdão se entendeu foi que não merecia censura o decidido na 1.ª instância que, com base no facto dado por provado sob o n.º 47 – “Ao actuarem pelo modo descrito, pretendiam os arguidos A. e B. auxiliar o arguido C. a obter o mencionado subsídio” –, concluíra pelo carácter doloso da conduta dos reclamantes e pela sua directa subsunção à previsão do artigo 27.º, n.º 1, do Código Penal. Por todas estas razões, o presente recurso surge como inadmissível. 3. Decisão Em face do exposto, acordam em indeferir a presente reclamação, embora por fundamento diverso do subjacente à decisão reclamada. Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta. Lisboa, 2 de Julho de 2004 Mário José de Araújo Torres Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos
|