|
Proc. nº 366/94
Cons. Messias Bento
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório:
1. A. interpôs, no Tribunal Administrativo do Círculo de
Lisboa, recurso da deliberação da COMISSÃO NACIONAL DE OBJECÇÃO DE CONSCIÊNCIA
(de 2 de Fevereiro de 1994), que indeferiu liminarmente a declaração de objecção
de consciência que ele ali apresentou, tendo-se o indeferimento baseado no facto
de ele não ter apresentado a 'declaração expressa de disponibilidade para o
cumprimento do serviço cívico', exigida pela alínea d) do nº 3 do artigo 18º da
Lei nº 7/92, de 12 de Maio.
O recorrente invocou, na oportunidade, a
inconstitucionalidade da norma que se contém na mencionada alínea d) do nº 3 do
artigo 18º da Lei nº 7/92.
Por sentença de 27 de Junho de 1994, o juiz julgou
inconstitucional a norma questionada pelo recorrente, e, recusando-lhe
aplicação, anulou a deliberação impugnada.
2. É desta sentença (de 27 de Junho de 1994) que vem o
presente recurso, interposto pelo Magistrado do Ministério Público ao abrigo da
alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional.
Neste Tribunal, o Procurador-Geral Adjunto concluiu
assim as suas alegações:
1º A norma da alínea d) do nº 3 do artigo 18º da Lei nº 7/92, de 12 de Maio (Lei
sobre Objecção de Consciência), não enferma de inconstitucionalidade,
designadamente por violação dos artigos 18º, nº 2, 41º, nº 6, e 276º, nº 4 da
Constituição.
2º Deve, em consequência, conceder-se provimento ao recurso e determinar-se a
reforma da decisão recorrida, na parte impugnada.
3. Corridos os vistos, cumpre decidir se a norma que se
contém na alínea d) do nº 3 do artigo 18º da Lei nº 7/92, de 12 de Maio, é (ou
não) inconstitucional.
II. Fundamentos:
4. A Lei nº 7/92, de 12 de Maio, de que faz parte o
artigo 18º, nº 3, alínea d), aqui sub iudicio, regula a objecção de consciência
ao serviço militar, que começou por ser regulamentada pela Lei nº 6/85, de 4 de
Maio (alterada pela Lei nº 101/88, de 25 de Agosto).
Esta Lei nº 7/92 foi, depois, regulamentada pelo
Decreto-Lei nº 171/92, de 8 de Setembro.
A referida Lei nº 7/92 é, no fim de contas, o Decreto nº
335-V da Assembleia da República, expurgado das normas que este Tribunal teve
por inconstitucionais no seu Acórdão nº 363/91 (Diário da República, I série-A,
de 3 de Setembro de 1991), proferido em processo de fiscalização preventiva.
O direito à objecção de consciência perante o serviço
militar 'comporta a isenção do serviço militar, quer em tempo de paz, quer em
tempo de guerra, e implica, necessariamente, para os respectivos titulares, o
dever de prestar um serviço cívico adequado à sua situação' (cf. artigo 1º, nº
2, da Lei nº 7/92).
Em tempo de paz, estão, no entanto, dispensados de
prestar este serviço cívico 'os cidadãos que tenham obtido o estatuto de
objector de consciência após o cumprimento do serviço militar obrigatório' (cf.
artigo 1º, nº 3).
Consideram-se objectores de consciência 'os cidadãos
convictos de que, por motivos de ordem religiosa, moral, humanística ou
filosófica, lhes não é legítimo usar de meios violentos de qualquer natureza
contra o seu semelhante, ainda que para fins de defesa nacional colectiva ou
pessoal' (cf. artigo 2º).
O serviço cívico, que os objectores de consciência ficam
obrigados a prestar em substituição do serviço militar, tem de ser
'exclusivamente de natureza civil', não pode estar 'vinculado ou subordinado a
instituições militares ou militarizadas', há-de constituir 'uma participação
útil em tarefas necessárias à colectividade' e possibilitar 'uma adequada
aplicação das habilitações e interesses vocacionais dos objectores' (cf. artigo
4º, nº 1).
O referido serviço cívico tem 'duração e penosidade
equivalentes à do serviço militar obrigatório' (cf. artigo 5º, nº 1).
Havendo consentimento expresso do objector de
consciência nesse sentido, o serviço cívico pode ser prestado em território
estrangeiro, privilegiando-se 'a cooperação com os territórios sob administração
portuguesa, os países africanos de língua oficial portuguesa e a mobilidade
dentro da Comunidade Europeia' (cf. artigo 6º).
O estatuto de objector de consciência adquire-se por
decisão administrativa (da Comissão Nacional de Objecção de Consciência),
proferida 'a partir da declaração do interessado' (cf. artigo 10º com referência
ao artigo 19º).
O cidadão, maior ou emancipado, interessado em obter o
estatuto de objector de consciência, deve apresentar a respectiva declaração na
Comissão Nacional de Objecção de Consciência, num posto consular ou nos serviços
competentes das regiões autónomas (cf. artigo 18º, nº 1, conjugado com o artigo
20º, nº 2).
É, justamente, com a declaração de objecção de
consciência que se inicia o processo de aquisição do estatuto de objector de
consciência (cf. artigo 18º,nº 1).
Recebida a declaração de objecção de consciência, a
Comissão Nacional aprecia a sua regularidade formal; e, quando notar
incompletude ou irregularidade de instrução, notifica o declarante para, sob
pena de a declaração ser liminarmente indeferida, suprir as deficiências notadas
(cf. artigo 21º, nºs 1 e 2).
Da deliberação da Comissão Nacional de Objecção de
Consciência cabe recurso para o competente tribunal administrativo de círculo
(cf. artigo 27º, nº 1).
Os requisitos da declaração de objecção de consciência e
os documentos com que a mesma deve ser instruída constam do artigo 18º, nºs 3 e
4, que se transcrevem:
Artigo 18º (Princípios gerais)
1. e 2. [...]
3 - A declaração de objecção de consciência deve conter:
a) A identificação completa do declarante, com indicação do número e data de
emissão do bilhete de identidade, estado civil, residência, habilitações
literárias e profissionais, bem como a freguesia e o distrito de recrutamento e
mobilização a que se encontra adstrito;
b) A formulação das razões de ordem religiosa, moral, humanística ou filosófica
que fundamentam a objecção e a referência a comportamentos do declarante
demonstrativos da sua coerência com aquelas razões;
c) A indicação da situação militar do declarante;
d) A declaração expressa da disponibilidade do declarante para cumprir o serviço
cívico alternativo;
e) A declaração expressa da não existência de qualquer das inabilidades
previstas na presente lei;
f) A assinatura do declarante reconhecida notarialmente.
4 - A declaração de objecção de consciência deve ser instruída com os seguintes
elementos:
a) Declarações de três cidadãos no pleno gozo dos seus direitos civis e
políticos, com assinatura reconhecida notarialmente, confirmativas dos
comportamentos referidos na alínea b) do número anterior;
b) Certidão de nascimento do declarante;
c) Certidão de registo criminal do declarante;
d) Outros documentos que o declarante considere relevantes.
5. [...]
A declaração de objecção de consciência deve, pois,
conter 'a declaração expressa da disponibilidade do declarante para cumprir o
serviço cívico alternativo' - dispõe a alínea d) do nº 3 do artigo 18º, acabado
de transcrever e aqui sub iudicio.
Esta exigência legal será, então, inconstitucional, como
se decidiu na sentença sob recurso?
5. O direito à objecção de consciência é um direito
fundamental, que a nossa Constituição consagra, quando dispõe:
Artigo 41º (Liberdade de consciência, de religião e de culto)
1. a 5. [...]
6. É garantido o direito à objecção de consciência, nos termos da lei.
É um direito que se apresenta como corolário da
liberdade de consciência, sendo que esta se analisa no direito que cada um tem
de agir conformemente ao juízo da sua própria consciência, imune, portanto, a
qualquer coacção do Estado ou da sociedade - imunidade esta que arranca do facto
de o juízo de consciência pertencer ao âmbito de intimidade da pessoa.
A objecção de consciência traduz-se, assim, na
resistência que a consciência individual opõe a uma lei geral, em virtude de as
próprias convicções pessoais impedirem o sujeito de a cumprir.
O direito à objecção de consciência abrange outros
domínios para além do das obrigações decorrentes do serviço militar obrigatório,
competindo à lei delimitar o seu âmbito e concretizar o modo do seu exercício.
O legislador há-de, no entanto, limitar as restrições
que lhe impuser ao necessário para a salvaguarda de outros direitos ou
interesses constitucionalmente protegidos e, em qualquer caso, não pode diminuir
a extensão e o alcance do conteúdo essencial do respectivo preceito
constitucional (cf. artigo 18º, nºs 2 e 3, da Constituição).
A objecção de consciência ao serviço militar foi pela
primeira vez reconhecida nos Estados Unidos da América (Estado da Pensilvânea)
onde os quakers foram dispensados, em 1661, de cumprir o serviço militar
obrigatório.
O fundamento invocado para se opor à prestação de
serviço militar é o facto de a guerra, a violência ou o emprego da força serem
intrinsecamente maus.
O serviço militar obrigatório, porém, em si mesmo, não é
injusto.
O Estado tem, na verdade, a obrigação de assegurar a
defesa nacional, com vista a 'garantir, no respeito da ordem constitucional, das
instituições democráticas e das convenções internacionais, a independência
nacional, a integridade do território e a liberdade e a segurança das populações
contra qualquer agressão ou ameaça exteriores' (cf. artigo 273º, nºs 1 e 2, da
Constituição). E, por isso, o serviço militar obrigatório, que é um modo que o
Estado tem de garantir a defesa nacional, surge como uma forma da justiça geral,
ou seja, do dever que, em justiça, cada cidadão tem para com o conjunto da
sociedade.
Entende-se, assim, que a Constituição - depois de, no
artigo 276º, nº 1, preceituar que 'a defesa da Pátria é direito e dever
fundamental de todos os portugueses' - acrescente, no nº 2 do mesmo preceito,
que o 'serviço militar é obrigatório, nos termos e pelo período que a lei
prescrever'.
Simplesmente, a prestação de serviço militar obrigatório
não é a única forma possível de cumprir aquele dever de justiça que cada cidadão
tem para com toda a comunidade. Tal dever também se cumpre, quando o serviço
militar é voluntário, que, assim, se apresenta como solução tão justa como a do
serviço militar obrigatório. E mais: igualmente justa é a solução segundo a qual
se dispensam do cumprimento do serviço militar aqueles que, com sinceridade de
consciência, se opõem a prestá-lo, por o considerarem uma forma de violência. O
que a justiça e a ideia de igualdade neste último caso exigem é que o serviço
militar seja substituído por outro equivalente, de natureza civil, que, sendo
pacífico, vise o bem da própria comunidade ou o dos cidadãos de outros países,
nomeadamente daqueles que estão necessitados de ajuda internacional.
Não anda longe deste pensamento quem como SOVERAL
MARTINS (Estatuto do Objector de Consciência, Coimbra, 1987, página 11), faz
apelo 'à ideia de que uma sociedade democrática não pode admitir que certos dos
seus membros se marginalizem furtando-se de todo em todo ao cumprimento de
deveres de interesse geral como é o da defesa da pátria'.
Da substituição do serviço militar por outras prestações
à comunidade trata o artigo 276º, nº 4, da Constituição, ao prescrever que 'os
objectores de consciência prestarão serviço cívico de duração e penosidade
equivalentes à do serviço militar armado'.
Esta exigência de que a duração e a penosidade do
serviço cívico sejam equivalentes à do serviço militar armado visa impedir que a
objecção de consciência se converta numa forma de evitar o cumprimento do
serviço militar.
É que, se tal sucedesse, criar-se-ia para o objector uma
situação de privilégio injustificado, violando-se a igualdade, pois que todos os
cidadãos estão obrigados, por um dever de justiça, como já se disse, a
contribuir para os serviços ou bens de que todos beneficiam, como é o caso da
defesa nacional (princípio da igualdade de sacrifícios públicos).
O serviço militar obrigatório e o serviço cívico de
substituição apresentam-se, assim, como modos distintos, mas igualmente justos,
e ambos constitucionalmente admissíveis, de cumprir o dever de justiça a que
cada um está obrigado para com a comunidade a que pertence.
A Constituição não consagra, pois, um direito à objecção
de consciência sem mais - um direito a recusar, por razões de consciência, não
apenas a prestação do serviço militar armado, como também a de qualquer serviço
cívico de substituição. Ao invés: à dispensa de prestar serviço militar armado
faz a Lei Fundamental corresponder a obrigação de cumprir um serviço cívico
equivalente em duração e penosidade. E isso - repete-se -, por razões de
justiça e de igualdade.
Este Tribunal, no seu Acórdão nº 65/91 (Diário da
República, II série, de 4 de Julho de 1991) - depois de ponderar que, na
objecção de consciência ao serviço militar, o Estado, 'em derradeira instância,
atribui relevância jurídica, justifica, motivações de ordem pessoal como
excepção ao exercício por parte do Estado do ius ad bellum e do ius in bello' -
escreveu, a este propósito:
[...] a Constituição, ao estabelecer contrapontisticamente no seu artigo 41º, nº
6, o serviço cívico (artigo 276º, nº 4), recusa a 'objecção total' que
inclusivamente a este se opõe.
Significativa a este propósito é a intervenção
parlamentar de B., que o Diário da Assembleia da República, 1ª série, nº 16, de
30 de Outubro de 1987, regista. Disse ela, entre o mais:
Mas o exercício desse direito [refere-se ao direito de liberdade de consciência]
requer uma ponderação de bens constitucionalmente tutelados, segundo um
princípio de concordância prática e vinculada à ordem de valores da
Constituição.
Assim é que, quanto à regulação da objecção de consciência ao serviço militar,
se colocam duas questões fundamentais:
No plano das relações entre o objector e a comunidade, a da ponderação entre a
autonomia individual e o dever fundamental de solidariedade.
No plano das relações entre os cidadãos sujeitos ao recrutamento militar, a
conjugação do valor da autonomia com o princípio da igualdade.
E acrescentou:
Assente nessa ponderação, a Constituição estabeleceu o princípio da
'equivalência de encargos' entre o serviço militar e o serviço cívico
alternativo.
6. Sendo constitucionalmente admissível exigir do
cidadão, que pretende que lhe seja reconhecido o estatuto de objector de
consciência, que, em sua substituição, preste um serviço cívico de natureza
civil; e prevendo a lei que o respectivo processo seja desencadeado com uma
declaração sua nesse sentido; razoável é que se lhe exija que, ao formular tal
pretensão, faça a declaração expressa de que está disponível para cumprir aquele
serviço cívico.
Há, com efeito, sérias razões para que seja assim: a
Constituição, ao consagrar o 'princípio da equivalência de encargos entre o
serviço militar e o serviço cívico', pretende - no dizer de J.J. GOMES CANOTILHO
e VITAL MOREIRA (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 1993,
página 966) - 'evitar a 'banalização' do direito à objecção de consciência,
limitar a excepção ao princípio da inconvertibilidade do serviço militar e
respeitar o princípio da igualdade quanto aos sacrifícios públicos impostos aos
cidadãos'.
A declaração de objecção de consciência deve ser feita
apenas por quem, com sinceridade de consciência, repudie o serviço militar
armado. O estatuto de objector de consciência deve ser reconhecido tão-somente
àqueles que, como contrapartida do pedido de dispensa de cumprir serviço militar
armado, se disponham, sinceramente, a prestar o serviço cívico alternativo, que
é - repete-se - outro modo de cumprir o dever de defesa da Pátria que, nos
termos do artigo 276º da Constituição, impende sobre todos os cidadãos.
A exigência feita pela alínea d) do nº 3 do artigo 18º
da Lei nº 7/92 é, pois, perfeitamente compatível com o direito à objecção de
consciência, nada tendo de excessivo, nem de irrazoável: ela destina-se, com
efeito, a garantir que o estatuto de objector de consciência seja reconhecido
apenas àqueles que, repudiando, sinceramente, a prestação de serviço militar
armado, no entanto, reconhecem ser a defesa da Pátria um dever, que, por isso,
querem cumprir, embora tão-só por meios pacíficos. Dizendo de outro modo: a
exigência dessa declaração, pretende obstar a que o estatuto de objector de
consciência seja reconhecido a quem é objector total, pois, tal sucedendo,
violar-se-iam as exigências de justiça feitas pelo princípio da igualdade de
sacrifícios públicos.
A norma da alínea d) do nº 3 do artigo 18º da Lei nº
7/92, de 12 de Maio, não viola, assim, qualquer norma ou princípio
constitucional. Designadamente, não viola os artigos 18º, nº 2, 41º, nº 6, e
276º, nº 4, da Constituição.
Este Tribunal já concluiu, em Plenário, que aquela
alínea d) do nº 3 do artigo 18º da Lei nº 7/92, de 12 de Maio, não é
inconstitucional. Fê-lo no Acórdão nº 681/95, ainda por publicar.
III. Decisão:
Pelos fundamentos expostos, concede-se provimento ao recurso; e, em
consequência, revoga-se a sentença recorrida, para ser reformada em conformidade
com o aqui decidido quanto à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 6 de Dezembro de 1995
Messias Bento
Bravo Serra
Fernando Alves Correia
José de Sousa e Brito (vencido nos termos da
declaração de voto junta)
Luís Nunes de Almeida (vencido, nos termos da declaração de
voto junta)
Guilherme da Fonseca (vencido, pelos fundamentos constantes
da declaração de voto do Ex.mº Cons. J. Sousa Brito
que acompanho)
José Manuel Cardoso da Costa
|