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Processo n.º 230/12
3.ª Secção
Relator: Conselheira Catarina Sarmento e Castro
Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I - Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Évora, A. veio interpor recurso, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, com as alterações posteriores (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC).
2. No requerimento de interposição do recurso, refere a recorrente, nomeadamente, o seguinte:
“(…) na petição inicial, pôs-se em causa a prova documental e testemunhal, por referência ao Acórdão do Tribunal Constitucional de 22/09/2010 (Acórdão 338/2010 (…)), bem como, em especial, nas próprias Alegações de Recurso, quando se refere, invocando-se quer violação à Lei Constitucional, no procedimento disciplinar e na Sentença, em face da violação dos artigos 128, n.º 1 do artigo 353º, 355º, 356º e n.º 5 do artigo 357º do Código do Trabalho, bem como das disposições constitucionais inseridas no n.º 10 do artigo 32º e artigo 58° da CRP, bem como do CPC, nos artigos 266º, 266ºA, 513° e 519° e artigo 172° do CPT.
(…)
Por outro lado, o (…) Parecer da Procuradoria da República, que se subscreve na íntegra, (…) atenta para o facto que o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 338 de 22/09/2010, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral, do disposto no n.º 1 do artigo 356º do Código do Trabalho (…).
(…) estão em causa, conforme resulta das Alegações de Recurso, que não foram atendidos e daí afetados, os direitos de audiência e defesa, do direito ao trabalho, bem como, da proporcionalidade da infração, à culpa do trabalhador, bem como da interpretação que é feita sob o n.º 1 do artigo 356º do Código do Trabalho, por remissão ao Acórdão do Tribunal Constitucional mencionado, em face da prova apresentada, bem como, do n.º 1 do artigo 351º do Código do Trabalho, em face das diligências probatórias e da decisão tomada.
(…)
As questões constitucionais situam-se pois no âmbito do n.º 10 do artigo 32º (garantia de defesa), artigo 53º (direito à segurança no emprego) da CRP, bem como, ora em face do D. Acórdão e da D. Sentença, do artigo 18º da CRP, perante o princípio da proporcionalidade por extravasar os limites previstos no artigo 668º do CPC.
(…)
A ausência na nota de culpa da descrição circunstanciada dos factos, é motivo de violação da Lei Constitucional, perante as meras imputações abstratas e genéricas afetando o n.º 10 do artigo 32 da CRP e artigo 20° por defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e mormente dos direitos de audiência e defesa em face inclusive do disposto no artigo 353° do Código do Trabalho.
(…) o procedimento disciplinar em concreto (que não se relaciona com a fase jurisdicional) não é identificável com os comandos derivados do Acórdão deste Tribunal Constitucional, de que resulta força obrigatória geral, em face da inconstitucionalidade do artigo 356º do Código do Trabalho.”
3. No Tribunal Constitucional, foi proferida Decisão sumária de não conhecimento do recurso.
Na fundamentação de tal decisão, refere-se, nomeadamente, o seguinte:
“(…) O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, serem pressupostos gerais, de todos os recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa - como alvo de apreciação; a natureza jurisdicional da decisão impugnada e o caráter instrumental do recurso.
Por outro lado, são pressupostos específicos do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC) e a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa (CRP); artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
(…) Vejamos, assim, se tais pressupostos se encontram presentes, relativamente ao recurso em apreciação.
Comecemos por analisar a natureza do objeto do recurso.
O recurso de constitucionalidade apenas pode incidir sobre a constitucionalidade de normas ou interpretações normativas e não de decisões, nomeadamente jurisdicionais, não compreendendo o nosso ordenamento jurídico a figura do recurso constitucional de amparo ou queixa constitucional.
Assim, recai sobre o recorrente o ónus de enunciar a concreta norma ou interpretação normativa, cuja sindicância pretende, de forma clara e inequívoca, identificando certeiramente o preceito ou conjugação de preceitos, em que tal critério normativo assenta, de forma a que seja reconhecível no mesmo um mínimo de correspondência à literalidade dos preceitos em causa. “Mais ainda: esse sentido (essa dimensão normativa) do preceito há de ser enunciado de forma que, no caso de vir a ser julgado inconstitucional, o Tribunal o possa apresentar na sua decisão, em termos de, tanto os destinatários desta, como, em geral, os operadores do direito, ficarem a saber, sem margem para dúvidas, qual o sentido com que o preceito em causa não deve ser aplicado, por, desse modo, afrontar a Constituição” (cfr. Acórdão n.º 367/94, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Ora, na presente situação, da mera leitura do requerimento de interposição do recurso resulta que a recorrente pretende, não a apreciação de um verdadeiro critério normativo – que, sintomaticamente, não enuncia - mas a sindicância da decisão jurisdicional, na sua dimensão de apreciação, valoração e subsunção dos concretos factos que foram objeto de discussão e julgamento.
Na verdade, a violação de parâmetros constitucionais é assacada ao “procedimento disciplinar”, à “sentença”, bem como ao “Acórdão”. Toda a argumentação da recorrente, desenvolvida no requerimento de interposição do recurso, se centra em especificidades casuísticas, nomeadamente na alegação de que foram concretamente afetados “os direitos de audiência e defesa”, o “direito ao trabalho” e o “princípio da proporcionalidade”.
Mesmo quando a recorrente alude a uma interpretação de uma concreta disposição infraconstitucional - o artigo 356.º do Código do Trabalho - não especifica tal dimensão interpretativa, continuando a não autonomizar qualquer critério normativo extraível de tal disposição, mas, ao invés, reportando a inconstitucionalidade, relacionada com tal preceito, ao próprio “procedimento disciplinar em concreto”, que a recorrente refere que “não é identificável com os comandos derivados do Acórdão deste Tribunal Constitucional [com o n.º 338/10], de que resulta força obrigatória geral, em face da inconstitucionalidade do artigo 356º do Código do Trabalho.”
Nestes termos, o objeto do presente recurso é inidóneo.
A este propósito, são transponíveis para o presente caso, mutatis mutandis, as considerações aduzidas no Acórdão deste Tribunal Constitucional n.º 633/08 (disponível no site, supra referido), que se transcrevem:
“(…) cumpre acentuar que, sendo o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade constituído por normas jurídicas, que violem preceitos ou princípios constitucionais, não pode sindicar-se, no recurso de constitucionalidade, a decisão judicial em si própria, mesmo quando esta faça aplicação direta de preceitos ou princípios constitucionais, quer no que importa à correção, no plano do direito infraconstitucional, da interpretação normativa a que a mesma chegou, quer no que tange à forma como o critério normativo previamente determinado foi aplicado às circunstâncias específicas do caso concreto (correção do juízo subsuntivo).
Deste modo, é sempre forçoso que, no âmbito dos recursos interpostos para o Tribunal Constitucional, se questione a (in)constitucionalidade de normas, não sendo, assim, admissíveis os recursos que, ao jeito da Verfassungsbeschwerde alemã ou do recurso de amparo espanhol, sindiquem, sub species constitutionis, a concreta aplicação do direito efetuada pelos demais tribunais, em termos de se assacar ao ato judicial de “aplicação” a violação (direta) dos parâmetros jurídico-constitucionais. Ou seja, não cabe a este Tribunal apurar e sindicar a bondade e o mérito do julgamento efetuado in concreto pelo tribunal a quo. A intervenção do Tribunal Constitucional não incide sobre a correção jurídica do concreto julgamento, mas apenas sobre a conformidade constitucional das normas aplicadas pela decisão recorrida (…)
(…) não se vislumbra no requerimento de interposição de recurso qualquer referência suscetível de consubstanciar a menção a um objeto idóneo do recurso de constitucionalidade, definido, como tal, em torno de um critério normativo – por natureza – distanciado do momento de aplicação feita pelo Tribunal a quo (…)”
Face às considerações expendidas, conclui-se pela não admissibilidade do recurso.”
É esta a Decisão sumária que é alvo da presente reclamação.
4. Fundamentando a sua discordância relativamente à decisão reclamada, refere a reclamante que deveria a Relatora ter dado cumprimento ao disposto no n.º 5 do artigo 75.º-A da LTC.
Infirma que pretenda a sindicância da própria decisão jurisdicional, asseverando que do requerimento de interposição de recurso resulta que o objeto respetivo corresponde à apreciação da constitucionalidade da interpretação do n.º 1 do artigo 356.º do Código do Trabalho, alegando que tal interpretação não foi efetuada, no processo, de acordo com a Constituição da República Portuguesa, mormente por violação dos artigos 32.º e n.º 10 do artigo 53.º. Realça ainda que pretende saber se, tendo “tal artigo [sido] declarado inconstitucional, afinal poderia ter sido aplicado e interpretado da forma como foi, como se não houvesse qualquer decisão, com força obrigatória geral de inconstitucionalidade.”
Mais refere que a decisão sumária proferida, por falta de fundamentação com referência a disposições normativas, é ela própria inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa.
Enfatiza que “a interpretação, aplicabilidade ou justificação que resulta na fundamentação dos tribunais em face da recusa da entidade patronal (…) em proceder à audição das testemunhas e à prova indicada à resposta à nota de culpa como dilatória e não pertinente não tem qualquer fundamento legal (…). Não só porque o artigo 356º, nº 1 do CT tinha sido declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, como não havendo essa norma no quadro normativo a Doutrina que dela resulta não poderia, do mesmo modo, servir para justificar a não aceitação da prova.”
Conclui, nestes termos, pugnando pela revogação da decisão sumária proferida e pelo consequente prosseguimento do recurso interposto.
Notificada a recorrida, nada veio dizer.
II - Fundamentos
5. Analisada a reclamação apresentada, conclui-se que a reclamante não aduziu argumentos que infirmem a correção do juízo efetuado, na decisão sumária proferida.
Na verdade, o fundamento da decisão de não conhecimento do objeto do recurso assenta na respetiva inidoneidade, vício insuscetível de correção, pelo que não se mostrava pertinente a prolação de qualquer convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 75.º-A, n.º 6, da LTC.
De facto, o convite ao aperfeiçoamento, previsto no artigo 75.º-A, n.os 5 e 6, da LTC, destina-se a permitir ao recorrente suprir a falta de meros requisitos formais do requerimento de interposição do recurso – a que se alude nos n.os 1 a 4 do mesmo preceito – não podendo ser utilizado para suprir a falta de pressupostos de admissibilidade do recurso – enunciados especificamente no artigo 70.º e no n.º 2 do artigo 72.º da LTC – que, sendo verificada, determina a imediata prolação de decisão sumária, no sentido do não conhecimento do recurso.
Nestes termos, improcede a argumentação da reclamante, no sentido da pertinência de prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento.
Não obstante a reclamante afirmar que pretendia a sindicância da constitucionalidade da interpretação normativa do artigo 356.º, n.º 1, do Código de Trabalho, assumida nas instâncias, continua a omitir a enunciação de qualquer critério normativo extraível de tal preceito, sendo manifesto, pela sua exposição na reclamação, que pretende a apreciação da decisão jurisdicional concreta que julgou improcedente o recurso e que, especificamente quanto à arguição de invalidade do procedimento disciplinar, assente na alegada violação do n.º 1 do artigo 365.º do Código do Trabalho, referiu o seguinte:
“ (…) mal se compreenderia que face, sobretudo, à necessidade de celeridade processual e pacificação social, um procedimento disciplinar se eternizasse, com a realização de diligências cujo efeito útil não se descortina.
A circunstância do trabalhador requerer a realização de diversas diligências, não significa, necessariamente, que a sua não realização acarrete a violação dos direitos de defesa do mesmo trabalhador: mister é que as diligências requeridas se apresentem úteis e necessárias à defesa do trabalhador.
(…)
Como se afirmou na sentença recorrida, a declaração de inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 356.°, do Código do Trabalho, pelo acórdão do Tribunal Constitucional n.º 338/10, de 8-11, não significa nem pode ser interpretado como a obrigatoriedade do empregador proceder à realização de todas as diligências que o trabalhador entenda que devem ser levadas a cabo: o que importa é que sejam realizadas as diligências consideradas necessária e úteis, podendo o empregador não proceder àquelas que assim não sejam consideradas, desde que fundamente tal solução.”
A decisão sumária proferida encontra-se devidamente fundamentada, com referência às disposições legais aplicáveis e à jurisprudência firmada do Tribunal Constitucional a propósito da natureza do objeto do recurso de constitucionalidade.
Assim, apenas resta reafirmar toda a fundamentação constante da decisão reclamada e, em consequência, concluir pelo indeferimento da reclamação apresentada.
III - Decisão
6. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, decide-se indeferir a reclamação apresentada e, em consequência, confirmar a decisão sumária reclamada proferida no dia 2 de agosto de 2012.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de novembro de 2012.- Catarina Sarmento e Castro – Vítor Gomes – Maria Lúcia Amaral.
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