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Processo n.º 660/12
1.ª Secção
Relator: Conselheira Maria de Fátima Mata-Mouros
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. A. e Outros, Reclamantes nos presentes autos em que figuram como Reclamados B. e Outra, inconformados com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu recurso para o Tribunal Constitucional, vieram da mesma reclamar.
É o seguinte o teor do despacho reclamado:
«Os réus e recorrentes A. e outros vieram interpor recurso do acórdão do acórdão de fls. 563 e seguintes, para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto pelo artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional, por alegada inconstitucionalidade na aplicação da norma do artigo 1549.º, do Código Civil, pelo Tribunal da Relação do Porto.
Os autores B. e mulher, na sua resposta, entendem que a alegada inconstitucionalidade não foi suscitada, de forma adequada, perante o tribunal que proferiu a decisão, devendo, em consequência, o presente recurso ser indeferido, por inadmissível.
Dispõe o artigo 70.º, n.º 1, b), da Lei do Tribunal Constitucional, citado pelos réus como base habilitante do seu recurso, que “cabe recurso para o Tribunal Constitucional, das decisões dos tribunais que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo.”
Acontece que, no caso em apreço, este Supremo Tribunal de Justiça decidiu julgar extinta a instância recursiva, com base no princípio geral da alçada, constante do artigo 678.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, cuja inconstitucionalidade não foi arguida pelos réus, que, ao invés, invocaram a inconstitucionalidade da aplicação da norma do artigo 1549.º, do Código Civil, que não foi objeto de conhecimento ou de aplicação, nesta sede de recurso de revista.
Assim sendo, por falta de fundamento legal, não se admite o recurso interposto pelos réus, para o Tribunal Constitucional, atento o preceituado pelos artigos 70.º e 76.º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional».
Os Reclamantes fundamentaram a sua reclamação da seguinte forma:
«O que está em causa, para se obter êxito com a presente ação, é, tão-somente, a interpretação que deve ser dada ao artigo 1549° do Código Civil, mais concretamente, à norma da constituição de servidão por destinação de Pai de Família; Na douta sentença proferida na 1.ª instância, considerou o Tribunal de Castro Daire que não foram alegados, nem, obviamente ficaram provados quaisquer sinais de destinação, ou sinais constitutivos da servidão por destinação de Pai de Família. Por isso mesmo, tal ação improcedeu, tendo os ora reclamantes sido absolvidos do respetivo pedido; E, no Tribunal de 1.ª instância a fls. 426, no final escreveu- se: «A constituição de servidão por destinação de Pai de Família pressupõe o concurso de três requisitos essenciais»: a) Que os dois prédios, ou duas frações do mesmo prédio, tenham pertencido ao mesmo dono; b) Uma relação estável de serventia de um prédio para o outro, ou de uma fração para a outra, correspondente a uma servidão aparente e revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação); c) Separação dos prédios, ou frações, em relação ao domínio (separação jurídica), e inexistência de qualquer declaração, no respetivo documento, contrário à destinação»; Porém, quanto ao requisito b); - «Uma relação estável de serventia, de um prédio para o outro ... correspondente a uma servidão aparente e revelada por sinais visíveis e permanentes (destinação)», nada foi alegado pelos autores, e, portanto, nada foi provado. Porém, como a confinância do prédio dos ora reclamantes com o prédio dos reclamados, pelo lado poente daqueles e lado nascente destes, é um caminho novo e particular, que foi aberto, depois da abertura de uma estrada alcatroada, há cerca de dez (10) anos (confr. decisão da 1.ª instância); Até porque ambos os prédios têm caminho, pelo lado norte (confr. decisão da 1.ª instância); E o prédio dos reclamados confina com a dita estrada, cerca de onze (11) metros (confr. decisão); O Tribunal da Relação do Porto confundiu sinais desse caminho (aberto, posteriormente, à abertura de uma estrada alcatroada), com sinais de destinação, ou, seja, de passagem de um prédio, para outro, com sinais de estabilidade e com intenção de servir tal prédio, pelo sítio, Y, ou Z, (sítio dos eventuais sinais de destinação) Por isso mesmo é que o Meritíssimo Juiz do Tribunal de 1.ª instância, já prevendo que, facilmente, se poderia cair no lapso de confusão de sinais de caminho, no prédio dos reclamantes, com sinais de destinação, nesse mesmo caminho para, ou do prédio dos reclamados (autores); DIZIA-SE, por isso mesmo, é que o Tribunal de 1.ª instância, numa explanação lógica, coerente, juridicamente correta, mui doutamente se mostrou prevenido e pretendeu acautelar um eventual lapso, com os fundamentos constantes a fls. 337 a 343 da douta sentença (confr. decisão da 1.ª instância); ALIÁS, lapso em que o Tribunal da Relação do Porto veio a cair, ao aplicar a norma do artigo 1549.º do Código Civil, sem a alegação, e sem a prova de existência dos factos constitutivos da mesma norma, ou seja, dos elementos constitutivos da eventual servidão por destinação de Pai de Família (os ditos sinais de destinação); Mas o Tribunal da Relação do Porto, na interpretação de tal norma do artigo 1549° do Código Civil, não se ficou por aqui; Na verdade, para além da inexistência dos sinais constitutivos da alegada servidão (sinais de destinação), e, porque tais sinais não existem, o Tribunal da Relação do Porto, ao aplicar tal norma do artigo 1549° do Código Civil, fê-lo com um conteúdo emergente do instituto da compropriedade (por qualquer sítio); Se assim não fosse, o mesmo Tribunal da Relação do Porto, teria de aplicar a norma, concedendo-se passagem pelo sítio X, ou, onde estivessem os sinais de destinação, e não por qualquer lado, como, erradamente, decidiu este Tribunal, pois que tal norma não comporta, nem suporta tal conteúdo decisório Onde estavam os sinais de destinação?!(...); No sítio da entrada para a garagem? No sítio do portal da entrada particular? Ou em que outro sítio?! (...); DAÍ, o acórdão da Relação do Porto ter constituído uma DECISÃO SURPRESA! (...), de conteúdo insólito, anómalo, inédito, em que os ora reclamantes, e, aí, réus e recorridos, foram, efetivamente, confrontados com uma concreta interpretação e aplicação da norma do artigo 1549° do Código Civil, de todo imprevisível e inesperada, e, portanto, ferida de inconstitucionalidade: E a SURPRESA de tal acórdão da Relação do Porto foi tamanha que, até, se pensou que tivesse havido mero, ou manifesto lapso E, por isso mesmo, é que se requereu a REFORMA de tal acórdão, chamando-se à atenção para esse mesmo lapso, em que, facilmente, se poderia cair, e de que o Sr. Juiz de 1.ª instância se preveniu e pretendeu acautelar, na sua douta decisão, tendo-se, até, juntado um croquis, para melhor esclarecimento (confr. croquis); Que, não tendo sido lapso, como considerou o Tribunal da Relação do Porto, tal decisão teve como causa adequada e direta ERRO manifesto, grave, clamoroso, grosseiro, crasso, senão mesmo supino. Tendo-se, até, por tal, pedido a NULIDADE de tal acórdão, e arguida a INCONSTITUCIONALIDADE da mesma; PORÉM, como o Tribunal da Relação do Porto se refugiou no esgotamento do Poder Jurisdicional e o Supremo Tribunal de Justiça, apesar da arguição da inconstitucionalidade de tal norma, perante este Tribunal, se acoitou, ou refugiou, no valor da alçada. É que se interpôs recurso para este Tribunal Constitucional; Que, não tendo sido admitido, deu origem à presente reclamação; Uma vez que o cidadão tem de ter garantias na aplicação da Lei; Não podendo o mesmo cidadão reger-se pela vontade, e (ou) incompetência do julgador que, contra tudo o que é expectável, infringe, frontalmente, neste caso concreto, a Lei Substantiva (artigo 1549,º do Código Civil); e a Lei Formal (adjetiva), ofendendo-se, frontalmente, o princípio dispositivo dos artigos 264° n.°s 1 e 2, e 664°, ambos do Código de Processo Civil; Na verdade, o cidadão tem de contar, pelo menos, com um «mínimo», que esteja contido na Lei; Caso contrário, estamos caídos no RADICALISMO e numa sociedade SEM LEI, com o consequente desprestígio para a JUSTICA».
2. O Exmo. Representante do Ministério Público junto deste Tribunal pronunciou-se no sentido de que a reclamação não merece deferimento.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
3. No Supremo Tribunal de Justiça foi proferido despacho de não admissão do recurso de constitucionalidade com fundamento na não aplicação, no acórdão recorrido, da norma do artigo 1549.º do Código Civil, cuja inconstitucionalidade se suscita.
Inconformados, os recorrentes reclamaram para o Tribunal Constitucional da não admissão do recurso de inconstitucionalidade interposto.
Em sede de reclamações deduzidas ao abrigo do artigo 76.º, n.º 4 da LTC, compete ao Tribunal Constitucional averiguar se se encontravam reunidos os pressupostos necessários à admissão do recurso que foi recusada pelo tribunal a quo.
4. No que ora importa reter, o requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade refere o seguinte:
« (…)Não se conformando com o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto; Nem se conformando com os subsequentes despachos proferidos pelo mesmo Tribunal da Relação do Porto; e deste Supremo Tribunal de Justiça, que não conheceu do recurso interposto, com base do princípio da alçada; - VÊM interpôr recurso para o TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, ao abrigo do disposto na alínea b), n.º 1, do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional, por inconstitucionalidade, na aplicação da norma do artigo 1549° do Código Civil, pelo Tribunal da Relação do Porto, que, com tal violação, ofendeu, frontalmente, o conteúdo objetivo da mesma norma, por aplicação de conteúdo, que tal norma não contém, nem comporta, nem suporta, nos termos dos artigos 202°, 203°, e 204° da Constituição da República Portuguesa, com referência ao artigo 280.° n° 1, alínea b) da mesma Constituição, e ainda nos artigos 70° n.° 1; 72° n°2; e 76° n.ºs 1 e 2 da Lei n.° 28/82, de 15/11; Na verdade, trata-se de uma decisão surpresa, de conteúdo insólito e imprevisível, em que os ora recorrentes foram, efetivamente, confrontados com uma concreta interpretação e aplicação normativa do artigo 1549° do Código Civil, de todo imprevisível e inesperada; Com efeito, tanto por inexistência de fundamento factual, designadamente, falta de alegação e consequente falta de prova, e, portanto, por inexistência de sinais de destinação visíveis e permanentes, que atestassem a passagem de um prédio para o outro; como pelo conteúdo decisório atribuído a tal norma, designada e concretamente, conteúdo decisório emergente do Instituto da Compropriedade, o acórdão da Relação do Porto constitui uma decisão anómala, imprevisível, inesperada, insólita e excecional Aliás, inconstitucionalidade suscitada no pedido de reforma, porquanto, até, se pensou que tivesse havido mero lapso; e suscitada no pedido de nulidade, no mesmo Tribunal da Relação do Porto, que, em conclusão, refere ter-se esgotado o seu poder jurisdicional; E inconstitucionalidade suscitada, também, no Supremo Tribunal de Justiça, que dela não conheceu, por recusa de conhecimento do respetivo recurso, com apoio no princípio geral da alçada, não recebendo, pois, o recurso de Revista interposto pelos réus e ora recorrentes; ASSIM, por estas razões, sumariamente, expostas e por outras, mui doutamente, supridas, requerem seja admitido o presente recurso, para o Tribunal Constitucional».
5. O tribunal recorrido não admitiu a interposição de recurso de inconstitucionalidade por o fundamento do decidido no acórdão recorrido (a extinção da instância recursiva) ter consistido no princípio geral da alçada, constante do artigo 678.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, cuja inconstitucionalidade não é arguida pelos aqui reclamantes.
O reclamante não infirma o fundamento da decisão reclamada, nem a sua intenção de recorrer daquela decisão do Supremo Tribunal de Justiça.
Todavia, o objeto do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 280.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, apenas pode traduzir-se numa questão de (in)constitucionalidade da(s) norma(s) de que a decisão recorrida haja feito efetiva aplicação ou que tenha constituído o fundamento normativo do aí decidido. Na verdade, a resolução da questão de constitucionalidade há de poder, efetivamente, refletir-se na decisão recorrida, implicando a sua reforma, no caso de o recurso obter provimento, o que apenas sucede quando a norma cuja constitucionalidade o Tribunal Constitucional aprecie haja constituído a ratio decidendi da decisão recorrida, ou seja, o fundamento normativo do aí decidido.
Não é, manifestamente, o caso do presente recurso em que a decisão recorrida – o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que não admitiu a revista –, não aplicou a norma cuja inconstitucionalidade vem invocada.
Pelo que cumpre confirmar o despacho que é objeto da presente reclamação.
III. Decisão
6. Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação e, em consequência, confirmar a decisão reclamada.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 6 de novembro de 2012.- Maria de Fátima Mata-Mouros – Maria João Antunes – Maria Lúcia Amaral.
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