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Processo n.º 502/2011
2.ª Secção
Relator: Conselheiro José Cunha Barbosa
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I. Relatório
1. A., melhor identificado nos autos, recorreu para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alíneas b) e f), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC), da decisão instrutória proferida nos autos de processo comum n.º 15/06.5PAESP, do Tribunal Judicial de Espinho, que o pronunciou pela prática dos seguintes crimes:
a) 1 crime de burla relativa a seguros, previsto e punido pelo artigo 219.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4, alínea b) do Código Penal;
b) 54 crimes de burla relativa a seguros, previstos e punidos pelo artigo 219.º, n.º 1, alínea a) e n.º 4, alínea a) do Código Penal;
c) 1 crime de burla relativa a seguros, na forma tentada, previsto e punido pelo artigo 219.º, n.º 1, alínea a), n.º 2 e n.º 4, alínea a), conjugado os artigos 22.º e 23.º, todos do Código Penal;
d) 46 crimes de burla relativa a seguros, previstos e punidos pelo artigo 219.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal;
2 crimes de burla relativa a seguros, na forma tentada, previstos e punidos pelo artigo 219.º, n.º 1, alínea a), n.º 2, conjugado os artigos 22.º e 23.º, todos do Código Penal;
f) 7 crimes de falsificação de documento, previstos e punidos pelo artigo 256.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, na versão anterior à Lei 59/2007, de 4 de setembro e ainda na versão atual;
24 crimes de atentado à segurança rodoviária, previstos e punidos, à data da sua prática, pelo artigo 290.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal e, atualmente, pelo artigo 290.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código Penal, na versão introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de setembro.
Esse recurso, interposto a fls. 5798 a 5800 dos autos, não foi admitido pelo Tribunal a quo, tendo o recorrente reclamado desse despacho.
3. Tal reclamação foi deferida pelo Acórdão n.º 206/2011, deste Tribunal, que julgou preenchidos os pressupostos processuais requeridos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, para o conhecimento da questão de constitucionalidade dos artigos 272.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea c), e 144.º, todos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não constitui nulidade, por insuficiência de Inquérito, o não confronto do arguido, em interrogatório, com factos concretos, que venham a ser inseridos no despacho de acusação contra o mesmo deduzido.
4. Na sequência, veio o recorrente apresentar as suas alegações de recurso, as quais, após convite do relator, foram sintetizadas nas seguintes conclusões:
“(…)
I – O Recorrente arguiu a nulidade do Inquérito, porquanto foi formalmente acusado por 138 factos ilícitos, só tendo sido confrontado em sede de Primeiro Interrogatório Judicial com 23 factos, isto em violação da Lei (art°s 141, nº 4, al. c) e 272, ambos do C.P.P. e art. 32, nº 1, da C.R.P.
II – Ora, sendo o Interrogatório do arguido, Ato Processual Obrigatório (art. 272, nº 1, do C.P.P.), sob pena de nulidade (art. 120, n° 2, al. d), do C.P.P.), impondo-se no mesmo a comunicação dos factos concretos imputados e as circunstâncias inerentes ao mesmo (art°s 141, nº 1, al. c) e 144, ambos do C.P.P.), inequívoco se torna que inexistiu Interrogatório, quanto aos factos com os quais não foi confrontado em sede de Inquérito, o que leva à nulidade.
III – Relativamente a tais factos – os não comunicados –, não foi dada ao Recorrente qualquer possibilidade de defesa, não os conhecia, nem tinha possibilidade de conhecer (atento o Segredo de Justiça); até ser notificado da Acusação.
IV – O Recorrente, foi acusado, sem ter sido confrontado com esses factos em Inquérito, apesar de à data estar privado da liberdade, sujeito à medida de coação da prisão preventiva, o que na nossa modesta opinião, leva à nulidade (art. 120, nº 2, al. d), do C.P.P.).
V – O Recorrente pretende a sindicância da interpretação normativa, extraída da nulidade, decorrente da insuficiência do Inquérito, a circunstância do arguido não ter sido confrontado em sede de Inquérito (Interrogatório), com todos os factos pelos quais foi acusado.
VI – O Acórdão proferido em 1ª Instância, onde o Recorrente foi condenado pelos factos não comunicados tempestivamente, não se pronuncia sobre a específica arguição da nulidade do Recorrente, pronunciando-se sobre questão idêntica, suscitada por outros arguidos.
VII – Face a tudo o alegado e dúvidas não subsistem, de que o Recorrente só foi expressamente confrontado em sede de Interrogatório Judicial durante o Inquérito, com 23 factos concretos, tendo sido acusado por 138 factos concretos, sem ter tido oportunidade de defesa.
VIII – Com o devido respeito, é inconstitucional a interpretação dos art°s 144, nº 4, al. c); 272, nº 1; 120, nº 2, al. d), e 144, todos do C.P.P., quando interpretados no sentido de que não constitui nulidade, por insuficiência do Inquérito, o não confronto do arguido, em Interrogatório, com factos concretos que venham a ser inseridos no Despacho de Acusação contra o mesmo deduzido, por violação das garantias de defesa constitucionalmente consagradas (art. 32, da C.R.P.):
IX – Como resulta abundantemente dos autos, o Recorrente pugnou insistentemente, desde a notificação da Acusação, pela inconstitucionalidade da interpretação acolhida pelo Tribunal “a quo”, nos presentes autos, dos art°s 272, nº 1; 120, nº 2, al. d); 141, nº 4, al. c), e 144, todos do C.P.P., no sentido acolhido, de que é possível alguém ser formalmente acusado (e posteriormente condenado) por factos concretos com os quais não foi confrontado em sede de Inquérito, e portanto, sem ter tido oportunidade e possibilidade de oposição, por não ter conhecimento a que realidade teria de objetar, violando as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar”.
5. Por seu turno, o representante do Ministério Público junto deste Tribunal, contra-alegou, formulando as conclusões que se transcrevem:
“(…)
1) O ora recorrente, A., foi, por acórdão de 24 de fevereiro de 2011, do Tribunal Judicial de Espinho, condenado, pela prática de 74 crimes, numa pena única, em cúmulo jurídico, de 13 anos de prisão (cfr. fls. 6301-6302, 6304, 6316 dos autos);
2) Foi, para além disso, condenado na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor, prevista pelo art. 69º, nº 1, alínea b) do Código Penal, por um período de 3 anos (cfr. fls. 6323 dos autos);
3) No seguimento do Acórdão 206/11, de 12 de abril, proferido por este Tribunal Constitucional, está em discussão, no presente recurso, a inconstitucionalidade dos arts. 272º, nº 1, 120º, nº 2, alínea d), 141º, nº 4, alínea c) e 144º, todos do Código de Processo Penal, no sentido de que «a não confrontação, em sede de interrogatório judicial, do arguido com todos os factos pelos quais esta acaba por ser acusado, mas apenas com parte deles, não põe em causa os seus direitos constitucionalmente consagrados, incluindo as garantias de defesa respetivas» (cfr. fls. 6329 dos autos);
4) Está, pois, em causa, no presente recurso, o facto de saber se o arguido deve ser confrontado, na fase de inquérito, durante o seu primeiro interrogatório judicial, com todos os factos, que lhe deverão ser imputados até ao final do processo criminal que sobre ele recai. E, se não tiver sido, se isso coarta definitivamente os seus direitos de defesa;
5) No entanto, o arguido não precisa, nem os 23 factos com que terá sido inicialmente confrontado, “em sede de Primeiro Interrogatório Judicial” a que foi sujeito, nem, muito menos, os 115 factos com que foi, alegadamente, surpreendido “em sede de inquérito”;
6) Assim, nada permite supor que o seu argumento tenha um mínimo de correspondência com a realidade. Alega, mas não comprova o que alega;
7) Nos termos do art. 141º, nº 1 do CPP, “o arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam”;
8) E o nº 4 da mesma disposição veio acrescentar:
“Seguidamente, o juiz informa o arguido:
Dos direitos referidos no nº 1 do art. 61º, explicando-lhos se isso for necessário;
Dos motivos da detenção;
Dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; e,
Dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
ficando todas as informações, à exceção das previstas na alínea a), a constar do auto de interrogatório”;
9) Da simples leitura deste disposição resulta, que o primeiro interrogatório do arguido detido, pelo juiz de instrução, não pode, naturalmente servir para o confrontar com toda a prova a carrear nos autos até ao final do inquérito, mas sim, apenas, informá-lo “dos motivos da decisão”, “dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo” e “dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo …”;
10) Nada na lei impõe, assim, que todos os factos, pelos quais o arguido venha a ser pronunciado, ou condenado, sejam comunicados ao arguido durante o seu primeiro interrogatório judicial;
11) Do mesmo modo, que nem todas “as circunstâncias de tempo, lugar e modo” lhe deverão ser dadas a conhecer, mas apenas as que forem conhecidas nessa altura;
12) Finalmente, os elementos do processo, que indicam os factos imputados, apenas lhe serão comunicados se “a comunicação não puser em causa a investigação”;
13) Só pode, assim, concluir-se, ao contrário do que pretende o ora recorrente, que o arguido não carece de ser confrontado, em sede de inquérito, logo no primeiro interrogatório judicial, com toda a prova carreada ou a carrear para os autos;
14) O que se pretende é que o arguido seja informado do crime de que é acusado, dos principais indícios existentes da respetiva prática e das razões que legitimam a suspeita de que tenha sido ele o seu autor;
15) Nos termos do art. 262º, nº 1 do Código de Processo Penal, “o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”;
16) Por outras palavras, a prova destina-se a ser recolhida durante todo o inquérito, “em ordem à decisão sobre a acusação”;
17) Ou seja, mesmo após o primeiro interrogatório judicial do suspeito, a recolha da prova prossegue (cfr. igualmente art. 267º do CPP), de forma a poder sustentar a acusação, que se lhe poderá seguir (cfr. arts. 276º, nº 1e 283º do CPP);
18) De qualquer modo, o arguido continua a dispor, durante a fase de inquérito e subsequentes, de todas as suas garantias de defesa, designadamente as previstas nos arts. 60º e segs. do CPP, tais como “intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias” e “recorrer, nos termos da lei, das decisões que lhe forem desfavoráveis” (cfr. respetivamente alíneas g) e i) do art. 61º do CPP);
19) Por outro lado, se requerida a instrução, “que visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento” (cfr. art. 286º, nº 1 do CPP), há sempre lugar a um debate instrutório, oral e contraditório, no qual pode participar o arguido (cfr. arts. 289º, nº 1 e 297º e segs. do CPP);
20) E um tal “debate instrutório visa permitir uma discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória, sobre se, do decurso do inquérito e da instrução, resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento” (cfr. art. 298º do CPP);
21) O arguido intervém neste debate, pode requerer “a produção de provas indiciárias suplementares que se proponha[m] apresentar, durante o debate, sobre questões concretas controversas” (cfr. art. 302º, nº 2 do CPP), pode responder às perguntas que lhe forem formuladas pelo juiz de instrução, formula “as suas conclusões sobre a suficiência ou insuficiência dos indícios recolhidos e sobre questões de direito de que dependa o sentido da decisão instrutória” e intervém, sempre, em último lugar (cfr. nºs 4 e 5 da mesma disposição);
22) Tal aconteceu, também, no caso dos autos, tendo o juiz de instrução proferido extensa decisão instrutória (cfr. fls. 5468-5796 dos autos), com descrição minuciosa dos factos imputados a cada arguido, bem como com indicação da prova que motivou tal decisão. Tais factos e tal prova foram, também, comunicados ao arguido;
23) E este teve, finalmente, toda a fase de julgamento para poder contestar os factos carreados contra si, e a prova recolhida, mesmo aquela que, porventura – quod erat demonstrandum – lhe não tivesse sido comunicada aquando do seu primeiro interrogatório judicial;
24) Sendo certo, por último, que o acórdão de condenação, de 24 de fevereiro de 2011, é, igualmente, um extensíssimo texto (cfr. fls. 5808-6325 dos autos), de 512 págs., com uma descrição minuciosa de todos os factos e do direito aplicável, que levaram, designadamente, à condenação do arguido em 13 anos de prisão efetiva;
25) Assim, o arguido, para além de não comprovar, minimamente, a circunstância, que alega, de poder haver factos, contra si, que lhe não foram comunicados, durante o seu primeiro interrogatório judicial, tenta concluir, daí, que, durante o resto do processo, nunca lhe foi permitido contestá-los;
26) Ora, tal não é verdade, teve, para o efeito, todo o resto do inquérito, toda a fase de instrução e, finalmente, todo a audiência de julgamento para o efeito.
27) Nessa medida, crê-se que o seu recurso não poderá deixar de ser desatendido por este Tribunal Constitucional;
28) Não é, pois, inconstitucional a norma dos arts. 272º, nº 1, 120º, nº 2, alínea d), 141º, nº 4, alínea c) e 144º, todos do Código de Processo Penal, no sentido de que «a não confrontação, em sede de interrogatório judicial, do arguido com todos os factos pelos quais esta acaba por ser acusado, mas apenas com parte deles, não põe em causa os seus direitos constitucionalmente consagrados, incluindo as garantias de defesa respetivas».
(…)”.
6 .Na parte circunstancialmente relevante, a decisão recorrida tem o seguinte teor:
“(…)
DA NULIDADE DO INQUÉRITO:
No seu R.A.I., veio o arguido A. sustentar que o inquérito é parcialmente nulo, atento o disposto nos artigos 120.º, nºs 2, al. d) e 3 e 272.º, n.º 1, do C.P.P., uma vez que o arguido, no decurso dessa fase processual, não foi confrontado com parte dos factos que lhe foram imputados no despacho de acusação.
De igual modo, no seu R.A.I., o arguido B. veio defender que o inquérito é parcialmente nulo, atento o disposto nos artigos 120.º, nºs 2, al. d) e 3 e 272.º, n.º 1, do C.P.P., uma vez que o arguido, no decurso dessa fase processual, não foi confrontado com parte dos factos que lhe foram imputados no despacho de acusação. Por outro lado, foi arguida a referida nulidade, sem que tal pretensão tenha sido objeto de apreciação judicial.
Por seu turno, a fls. 5611 a 5616 veio o Ministério Público pugnar pela não verificação do referido vício processual, uma vez que a nulidade decorrente dos artigos 120º, nºs 2, al. al. d) e 3 e 272.º, n.º 1, do C.P.P., apenas ocorre nos casos em que o arguido não foi interrogado no inquérito, não sendo extensível às hipóteses em que o arguido, no decurso dessa fase processual, não foi confrontado com a totalidade dos factos que mais tarde vierem a ser narrados no despacho de acusação.
Cumpre apreciar.
Antes de mais, importa salientar que não se mostra exato que a pretensão ora aduzida pelo arguido B. não tenha ainda sido objeto de decisão judicial, uma vez que sobre ela incidiu despacho relativamente ao qual o arguido apresentou recurso.
De todo o modo, é consabido que com a aquisição da qualidade de arguido, que se conserva ao longo de todo o processo (artigo 57.º, n.º 2, do C.P.P.), é assegurada ao visado uma posição jurídica que lhe permite uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de autónomos direitos processuais, legalmente definidos, que hão de ser respeitados por todos os intervenientes no processo penal, ou seja, reconhece-se ao arguido a qualidade de verdadeiro sujeito processual, portador de um direito de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da C.R.P.) e que se presume inocente até ao trânsito em julgado da decisão condenatória (artigo 32.º, n.º 2, da C.R.P.).
Tendo em vista a salvaguarda efetiva desse estatuto reconhecido ao arguido, dispõe o n.º 1 do artigo 272.º do C.P.P. que, correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.
Trata-se de um ato cuja prática no decurso do inquérito a lei impõe, em homenagem ao direito de defesa que é reconhecido ao visado pelo processo penal, obstando a que o inquérito possa correr os seus termos inteiramente à sua revelia até à dedução da acusação.
Por constituir um ato de realização obrigatória, “a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do Código de Processo Penal”, de acordo com a jurisprudência fixada pelo A.U.J. n.º 1/2006.
Sustentam os arguidos que esta consequência decorrente da inobservância da imposição contida no artigo 272.º, n.º 1, do C.P.P., é aplicável quando suceda, como ocorreu nos presentes autos, que o arguido, em sede de interrogatório, não seja confrontado com todos os factos que vierem posteriormente a ser narrados no despacho de acusação, sem que tenha sido submetido a interrogatório(s) complementar(es) quanto à demais factualidade com que não fora confrontado.
Acontece, todavia, que não lhes assiste razão.
Com efeito, conforme é sublinhado na fundamentação do supra citado A.U.J. n.º 1/2006, “(...) a lei ao estatuir que é obrigatório interrogar como arguido a pessoa contra quem corre o inquérito, está a pressupor que aquela pessoa ainda não foi constituída como arguido, ou seja, que ainda não há arguido”. Assim, atento o seu teor literal, após a sujeição do visado pelo processo criminal a um primeiro interrogatório cessa a aplicabilidade do disposto no n.º 1 do artigo 272.º do C.P.P.
Deste modo, conclui-se que o preceito em estudo não impõe a realização de interrogatórios complementares, quanto à factualidade compreendida no objeto do inquérito, com a qual o arguido não haja ainda sido previamente confrontado.
Por outro lado, não se encontra no nosso processo penal qualquer outra norma que imponha essa obrigatoriedade.
Trata-se de uma solução que, a nosso ver, não colide com a visão do nosso processo penal como um processo equitativo, quando encarado como um todo.
Na realidade, se o legislador ordinário não impõe uma reciprocidade dialética entre os sujeitos processuais logo na fase de inquérito, conforme é reconhecido pela própria constituição no artigo 32.º, n.º 5, da C.R.P., tal não colide com o equilíbrio entre os sujeitos processuais, quando o processo é ponderado em termos globais, por ser salvaguardado o direito ao contraditório nas fases processuais subsequentes.
Não sendo obrigatória a realização de interrogatórios complementares, pelos motivos supra aduzidos, importa ter presente que no processo penal vigora o princípio da legalidade ou da tipicidade das nulidades (cfr. artigo 118.º, n.º 1, do C.P.P.), isto é, só existem nulidades processuais quando expressamente cominadas na lei.
No caso concreto, sustentam os arguidos que ocorreu a nulidade prevista no artigo 120.º, nºs 2, al. d) e 3, do C.P.P., relativa à insuficiência de inquérito, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios.
No entanto, conforme vimos, não existe a obrigatoriedade de no decurso do inquérito proceder a um interrogatório do arguido quanto a todos os factos que vierem posteriormente a ser carreados para o despacho de acusação.
Ora, a insuficiência do inquérito constitui uma nulidade genérica que só se verifica quando se tiver omitido a prática de um ato que a lei prescreve como obrigatório e desde que para essa omissão a lei não disponha de forma diversa.
Deste modo, por inexistir a obrigatoriedade de praticar os atos em apreço, conclui-se que não ocorre a suscitada nulidade do inquérito, a qual, em conformidade, se julga não verificada.
(…)
Cumpre decidir.
II. Fundamentação
7. De acordo com o relatado, o recurso de constitucionalidade tem por objeto a sindicância, face ao disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, dos artigos 272.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea c), e 144.º, todos do Código de Processo Penal, interpretados no sentido de que não constitui nulidade, por insuficiência de inquérito, o não confronto do arguido, em interrogatório, com todos os factos concretos, que venham a ser inseridos no despacho de acusação contra o mesmo deduzido.
Considerados de per se, os artigos do Código de Processo Penal onde o Recorrente faz radicar o critério normativo sindicando têm a seguinte redação:
“Artigo 272.º
Primeiro interrogatório e comunicações ao arguido
1 – Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime é obrigatório interrogá-la como arguido, salvo se não for possível notificá-la.
(…)”.
“Artigo 120.º
Nulidades dependentes de arguição
(…)
2 – Constituem nulidades dependentes de arguição, além das que forem cominadas noutras disposições legais:
(…)
d) A insuficiência do inquérito ou da instrução, por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios, e a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade.
(…)”.
“Artigo 141.º
Primeiro interrogatório judicial de arguido detido
(…)
4 – Seguidamente, o juiz informa o arguido:
(…)
c) Dos factos que lhe são concretamente imputados, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; e
d) Dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser em causa a investigação, não dificultar a descoberta da verdade nem criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime; ficando todas as informações, à exceção das previstas na alínea a), a constar do auto de interrogatório.
(…)”.
“Artigo 144.º
Outros interrogatórios
1 - Os subsequentes interrogatórios de arguido preso e os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respetivo juiz, obedecendo, em tudo quanto for aplicável, às disposições deste capítulo.
2 - No inquérito, os interrogatórios referidos no número anterior podem ser feitos por órgão de polícia criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização.
3 - Os interrogatórios de arguido preso são sempre feitos com assistência do defensor.
4 - A entidade que proceder ao interrogatório de arguido em liberdade informa-o previamente de que tem o direito de ser assistido por advogado.”
Apreciemos agora o mérito do recurso.
8. Como é consabido, o nosso processo penal assenta numa “estrutura acusatória integrada pelo princípio da investigação” (cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, Polic., Coimbra, 1988-9, pp. 50 e ss.) no âmbito da qual se reclama, com particular densidade, a realização de uma “tarefa de concordância prática das finalidades, irremediavelmente conflituantes, apontadas ao processo penal: a realização da justiça e a descoberta da verdade material, a proteção perante o Estado dos direitos fundamentais das pessoas e o restabelecimento, tão rápido quanto possível, da paz jurídica posta em causa pelo crime e a consequente reafirmação da validade da norma violada” (Maria João Antunes, “O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coação”, in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, pp. 1237 e ss.), daí resultando, como se afirmou no Acórdão n.º 428/2008, que a “necessidade de harmonização das apontadas finalidades [acabe por] justifica[r] soluções diferenciadas consoante as fases por que se desenrola o processo, tendo em conta o diferente peso relativo que lhes deve ser atribuído em cada uma delas” e, bem assim, tendo em consideração os direitos afetados pela intervenção estadual.
No caso sub judicio e como se deu conta, importa apurar se a Constituição exige - ou não - que, no decurso do inquérito, sejam dados a conhecer ao arguido, em sede de interrogatório, todos os factos posteriormente referidos na acusação do Ministério Público.
De acordo com o nosso figurino do processo penal, o inquérito é uma fase processual que compreende a realização de um conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem a decidir sobre a acusação, ou seja, sobre a submissão - ou não submissão - de alguém a julgamento (cf. artigo 267.º, n.º 1, do CPP).
Como tal, este momento do processo, predominantemente orientado pelo inquisitório, encontra a sua disciplina legislativa modelada tendo em conta o cumprimento desse desiderato, e, et pour cause, também a estruturação das garantias de defesa dos arguidos acaba por ser conformada tendo em conta a fase processual circunstancialmente em causa.
Nessa medida, ao perscrutar-se o sentido normativo da prescrição constitucional segundo a qual se afirma que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa”, deve tomar-se em consideração que tais garantias assumem uma geometria variável ao nível dos diversos momentos que integram o processo, tendo em conta a fase em que o processo se encontra e os direitos que aí possam ser atingidos.
Tal realidade é assaz percetível ao nível do princípio do contraditório, considerando a diferente intensidade com que o mesmo é projetado nos diversos estádios do processo.
Atente-se, a propósito, nas seguintes palavras de Jorge de Figueiredo Dias (ob. cit., pp.109-110):
“O princípio do contraditório está expressamente consagrado na Constituição (cf. artigo 32.º, n.º 5) e encontra assento generalizado na atual legislação processual penal portuguesa, se bem que em medida e sob formas diferentes consoante o concreto estádio do processo.
(…)
Relativamente à fase do inquérito, e contra a conceção desta primeira fase do processo como não contraditória, escrita e secreta, o CPP releva também aí o princípio do contraditório, ainda que de forma limitada: nos termos do artigo 61.º, n.º 1, alíneas a), b) e f), o arguido goza do direito se estar presente em todos os atos processuais que diretamente lhe disserem respeito, de ser ouvido pelo juiz de instrução sempre que ele deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete e do direito de intervir no inquérito oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurem necessárias (…).
O processo penal português não é ab initio totalmente contraditório, assim se opondo àquelas conceções que, em nome de uma estrutura processual autenticamente acusatória, defendem a extensão total do contraditório ao inquérito. Esta proposta, que pretende excluir de todo a existência de uma fase inicial em que se investigue a notícia do crime sem participação contraditória do sujeito, se bem que aparentemente protetora, na máxima medida, dos direitos fundamentais dos cidadãos, pode vir a prejudicar, tanto o interesse público na repressão da criminalidade, como o interesse do arguido no seu bom nome e reputação e em que a paz jurídica não seja posta em causa senão em face de uma suspeita com um mínimo razoável de fundamento”.
Aliás, dos próprios termos da lei fundamental, bem explícitos no n.º 5 do seu artigo 32.º, decorre a inexistência de uma imposição constitucional de uma genérica audição contraditória do arguido durante a fase do inquérito, uma vez que apenas os atos instrutórios que a lei determinar ficam subordinados ao princípio do contraditório.
Não é assim, no entanto, nos casos em que exista detenção do arguido, nos quais o contraditório constitui exigência ineliminável perante os artigos 27.º, n.º 4, e 28.º, n.º 1, da norma normarum, onde se estabelece a imperatividade constitucional da comunicação ao detido das causas que determinaram a detenção, de modo a conferir-lhe oportunidade de defesa, sendo que este regime acaba por ser essencialmente motivado perante os direitos fundamentais aí afetados.
Essa mesma justificação encontra-se clarificada nos Acórdãos n.os 416/2003 e 607/2003 (disponíveis, como todos os adiante referidos em www.tribunalconstitucional.pt) que se debruçaram sobre as garantias dos arguidos durante a fase de inquérito em processo penal, ponderando, principaliter, a matéria do interrogatório judicial de arguido detido, tomando em consideração o disposto no artigo 141.º, n.º 4, do CPP.
No primeiro, o Tribunal julgou «inconstitucional, por violação dos artigos 28º, n.º 1, e 32º, n.º 1, da CRP, a norma do n.º 4 do artigo 141º do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que, no decurso do interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” pode consistir na formulação de perguntas gerais e abstratas, sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ocorreram os factos que integram a prática desses crimes, nem comunicação ao arguido dos elementos de prova que sustentam aquelas imputações e na ausência da apreciação em concreto da existência de inconveniente grave naquela concretização e na comunicação dos específicos elementos probatórios em causa».
Idêntico juízo foi formulado no Acórdão n.º 607/2003 quanto à norma «extraída dos arts. 141º, n.º 4, e 194º, n.º 3, do CPP, segundo a qual, no decurso de interrogatório de arguido detido, a “exposição dos factos que lhe são imputados” e dos “motivos da detenção” se basta com a indicação genérica ao arguido do que é acusado (da prática de relações sexuais), do momento temporal dos factos (de 1998 a 2003), da identidade das vítimas como alunos, à data, da B. e outros, mas todos menores de 16 anos, estando o tribunal dispensado, por inutilidade, de proceder a maior pormenorização além da que resulta da indicação feita em tais termos quando o arguido confrontado com ela tome a posição de negar os factos».
Em ambos os arestos estava essencialmente em causa o conteúdo do interrogatório quanto à comunicação ao arguido dos factos subjacentes à detenção e dos elementos indiciadores dos factos imputados ao arguido, tendo o Tribunal sancionado que a exposição dessa factualidade assumisse “um grau de generalidade demasiado extensa, difusa e imprecisa” sem concretização das circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos ocorreram, por tal determinar uma impossibilidade do arguido de exercer o seu direito de defesa e de contraditar os factos constantes do processo e que determinaram a detenção do arguido e, na sequência, a aplicação da medida de coação de prisão preventiva, tendo em conta não apenas o parâmetro constante do n.º 1 do artigo 32.º da norma normarum, mas também a injunção constitucional de que a detenção seja “submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coação adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar- lhe oportunidade de defesa”, como resulta do artigo 28.º, n.º 1, da Constituição.
No caso sub judicio, cumpre salientar que a questão decidenda se distancia, na sua essência, das que foram consideradas nos arestos citados, sendo patente a assimetria normativa entre o objeto do presente recurso de constitucionalidade e os referidos critérios normativos sindicados e sancionados por este Tribunal, porquanto e em bom rigor, o recorrente não contesta a suficiência dos factos que lhe foram comunicados em aplicação do disposto no artigo 141.º, n.º 4, do CPP, para sobre eles poder defender-se perante a detenção e a aplicação da medida de coação, mas sim a possibilidade de, na acusação do Ministério Público, serem incluídos factos concretos com os quais o arguido não foi confrontado durante o inquérito.
9. A lei adjetiva penal inclui o interrogatório no âmbito do inquérito como um momento obrigatório, independentemente da detenção do arguido, permitindo, assim que o arguido, ainda nessa fase, seja confrontado com factos e elementos colhidos no âmbito da investigação relevantes para a decisão de acusação ou de arquivamento do inquérito, para que sobre eles possa pronunciar-se, em conformidade, necessariamente, com o princípio constitucional consagrado no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição.
Existindo detenção do arguido, a exigência constitucional, ao nível das garantias de defesa, é bem mais rigorista, porquanto impõe, desde logo, a apresentação do detido à autoridade judicial competente para que este seja interrogado como arguido, interrogatório esse que visa reduzir ao mínimo possível os riscos de uma privação ilegal de liberdade, exigindo-se, logo nesse momento, a obtenção de um juízo judicial sobre a legalidade/ilegalidade da detenção e a definição da situação processual futura do arguido – artigos 27.º, n.º 4, 28.º, n.º 1 e 32.º, n.º 1 da Constituição.
Nesse contexto específico e como se afirma no Acórdão n.º 607/2003, “o interrogatório está [aqui] predestinado essencialmente para o arguido apresentar, de viva voz ou por escrito, a sua defesa”, reconhecendo a Constituição ao detido esse específico direito relativamente aos factos e razões que determinam a sua detenção.
Trata-se, neste caso, de um interrogatório essencialmente garantístico, conformado de modo a garantir ao arguido detido uma defesa efetiva perante as razões que justificam a detenção, impondo-se, nessa medida, que lhe sejam dados a conhecer os elementos suficientemente indiciadores da responsabilidade penal já existentes no inquérito e, obviamente, os pressupostos da aplicação da medida de coação promovida pelo Ministério Público (cf. Germano Marques da Silva, “Sobre a liberdade no processo penal ou do culto da liberdade como componente essencial da prática democrática”, em Liber discipulorum para Figueiredo Dias, Coimbra, 2003, p. 1372).
Ainda assim, mesmo neste âmbito, não será exigível que ao arguido seja dado um conhecimento total e irrestrito dos factos previamente recolhidos e dos respetivos meios de prova, devendo ponderar-se concretamente se a divulgação dos factos em causa é, ou não, passível de afetar gravemente a investigação e impossibilitar a descoberta da verdade material ou de criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime.
Como se compreenderá, a realização deste “primeiro” interrogatório - ou de outros, submetidos ao mesmo regime (cf. Fábio Loureiro, “O primeiro interrogatório judicial do arguido detido”, em Prova Criminal e Direito de Defesa - Estudos sobre teoria da prova e garantias de defesa em processo penal, Coimbra, 2011, p. 73) - não preclude que outros sejam realizados ainda no âmbito do inquérito, como se prevê no artigo 144.º do CPP, os quais, no entanto, por não terem a mesma funcionalidade constitucional e não se destinarem à defesa de uma privação de liberdade, não gozam do mesmo regime garantístico, não existindo, v.g., obrigatoriedade quanto à sua realização, nem definição de momento em que tal deva ocorrer.
Desde logo, não é constitucionalmente imposto que o arguido seja ouvido sempre que um novo facto ou elemento probatório seja incorporado no inquérito ou que tenha de existir um interrogatório no encerramento do inquérito que, a título de “audiência pré-final” (cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 4.ª edição, Lisboa, 2007, p. 733), dê previamente a conhecer ao arguido todo o conteúdo fáctico da acusação.
Obviamente que, no âmbito de uma estrutura acusatória e numa fase em que o arguido detém alguns direitos de intervenção/participação processual (cf. artigo 61.º, n.º 1 do CPP), quanto mais alargado for o conhecimento que este detiver dos factos e meios de prova já existentes, melhor poderá defender-se, exercer os seus direitos processuais e, inclusivamente, contribuir para a descoberta da verdade material, fazendo uso do direito de intervir no inquérito através quer do oferecimento de provas quer do requerimento de diligências que se lhe afigurem necessárias (cf. artigo 61.º, n.º 1, alínea g) do CPP).
Todavia, se é certo que da Constituição não resulta a exigibilidade do conhecimento preciso de todos os factos que venham a ser inseridos na acusação e em momento anterior à formulação desta, não é menos certo que, no pleno respeito das garantias de defesa constitucionalmente consagradas, tal conhecimento não poderá nunca ficar aquém dos factos essenciais a verter ou vertidos em tal peça processual (acusação), sob pena de violação das enunciadas garantias.
De qualquer modo, refira-se, ainda, que, tendo em conta o desenho do processo penal recortado no nosso sistema jurídico, não pode deixar de considerar-se a acusação como constituindo ainda um momento de instrução (conquanto inserida no seu encerramento) e a sua notificação ao arguido como consubstanciando também a sua audição sobre os factos da mesma, até porque este, no exercício dos seus direitos de defesa e de contraditório, pode sempre lançar mão do pedido de instrução e de audição sobre a factualidade sobre a qual, porventura, não tenha já sido ouvido.
Ter-se-á, assim, como acabou de dizer-se, que o processo penal prevê igualmente a existência de uma fase prévia ao julgamento em que o arguido, perante prévio conhecimento de todos os factos e meios de prova constantes da acusação, pode exercer na plenitude o seu direito de defesa, sem os constrangimentos impostos durante a fase do inquérito, sendo-lhe possibilitado, entre o mais, o pleno contraditório quanto aos factos pelos quais se encontra acusado e a produção de provas indiciárias complementares, e, consequentemente, ver até afastada a fase de julgamento, momento este que não pode deixar de ser considerado gravoso para o arguido, ao que tudo não será estranho, naturalmente, o princípio de presunção de inocência de que o mesmo beneficia, princípio este consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição.
Num tal quadro normativo, não se vê que saiam postergados os direitos de defesa do arguido, quando se não verifique, por parte deste, um conhecimento prévio à formulação da acusação de todos os factos que nela venham a ser inseridos, desde que naquele conhecimento venham a ser incluídos os factos essenciais que daquela venham a constar.
Não existe, em suma, no caso sub judicio, qualquer lesão do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
III. Decisão
10. Nos termos supra expostos, o Tribunal Constitucional decide:
a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 272.º, n.º 1, 120.º, n.º 2, alínea d), 141.º, n.º 4, alínea c) e 144.º, todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que não constitui nulidade, por insuficiência de inquérito, o não confronto do arguido, em interrogatório, com todos os factos concretos que venham a ser inseridos na acusação contra ele deduzida;
b) E, consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 20 (vinte)UCs., sem prejuízo da existência de apoio judiciário.
Lisboa, 8 de fevereiro de 2012.- J. Cunha Barbosa – João Cura Mariano – Catarina Sarmento e Castro – Joaquim de Sousa Ribeiro – Rui Manuel Moura Ramos.
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