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Processo n.º 756/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos de fiscalização concreta da constitucionalidade, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 637/11:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrida B. S.A., a primeira vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional, do acórdão proferido, em conferência, pela 6ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 12 de julho de 2011 (fls. 804 a 817), para que seja apreciada a constitucionalidade das seguintes interpretações normativas:
“a) Das normas do CPC constantes dos artigos 671. °, n.º 1 e 497° e 498°, (estes por força do primeiro) invocadas no Acórdão recorrido, na medida em que, por falta de identidade dos sujeitos passivos sustentada numa alegada natureza de “ato de direito público” e inclusive “judicial” da venda executiva fiscal face ao que o adquirente/arrematante não é sucessor da posição jurídica do executado transmitente, permitem uma interpretação no sentido de não considerar verificado na presente ação, (nº 2322/07) instaurada contra a Ré arrematante, o caso julgado formado pela sentença transitada de 11/01/1996, prolatada no Proc sumário nº 467/95 do 4° JCC, que condenou a executada a reconhecer a Autora única e legítima dona e possuidora dos prédios identificados nos autos, pelo facto de esta os ter adquirido por usucapião pelo menos 20 anos antes e isto, tanto mais, quando, como in casu, a arrematação fiscal é realizada contra lege (devia ter sido imperativamente sustada pelo Fisco, cfr facto provado n° 14) e é a própria Ré arrematante a reconhecer que aquela sentença transitada lhe era oponível, uma vez que tentou revê-la extraordinariamente por oposição de terceiro, ao intentar contra a Autora recorrente uma ação de simulação processual (Proc. n°39/2001 da 2ª VM de Coimbra, cfr factos provados n°s 12 e 13) que foi julgada extinta por caducidade, por sentença igualmente transitada em julgado, donde a interpretação, adotada no Ac recorrido para julgar inverificado o caso julgado, se traduzir, juridicamente e na prática, não só numa anómala revisão extraordinária da sentença transitada (de 11/01/1996) como numa privação ilegal do direito de propriedade sem o pagamento de justa indemnização.
b) Da norma do n.º 3 do art.° 271º do CPC, quando, não obstante se mostrar verificado o circunstancialismo deste regime normativo transmissão realizada na pendência de ação de reivindicação usucapiente, julgada procedente por sentença transitada, cujo registo é anterior ao registo do arrematante adquirente, “ainda que este não intervenha no processo” — é interpretada no sentido de não se verificar a chamada ampliação a terceiros dos efeitos do caso julgado, em virtude de se qualificar uma venda executiva fiscal, ainda por cima realizada contra lege, como não sendo “...uma transmissão inter vivos por parte da anterior proprietária dos bens;”, ou seja como não sendo uma transmissão (muito embora forçada) da posição jurídica que a executada detinha sobre os prédios, dela dependendo, quer quanto à sua existência, quer quanto à sua extensão, já que não ocorreu ( e mesmo que ocorresse cfr. interpretado no Acórdão recorrido) no âmbito de um “ato de direito publico” ou seja em processo jurisdicional, a que é inerente o controlo e a direção de um Juiz, tendo em vista, não só o interesse do credor exequente que toma a iniciativa do impulso processual, mas também a realização da função estadual de administração da justiça.
c) Da norma do Art. 824°, nº 2 do CC, conjugada com as dos arts. 6°, nºs 1 e 3 e 7° do CRgP e 350º do CC, invocados no Ac recorrido, quando interpretada no sentido de, numa venda em execução, os bens serem transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, sem considerar a exceção (contemplada no último segmento do daquele art. 824°/2 CC) daqueles direitos “que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo”, como é designadamente o caso da usucapião, para concluir que o registo de aquisição do direito de propriedade usucapiente (que inaugura até um novo trato sucessivo e é prévio do registo de aquisição por arrematação) não pode, mesmo assim, prevalecer, por ser ineficaz “relativamente à arrematante atendendo a que tal inscrição se mostrava posterior ao registo da penhora dos imóveis, objeto da venda judicial realizada”, sendo que esta penhora (até de bens alheios) não é suscetível de transferir, seja para o Tribunal, seja para o credor/exequente, a titularidade do direito de propriedade e da subsequente aquisição por arrematação fiscal ter registo posterior (ao da ação que reconheceu o direito de propriedade usucapiente), além de ter sido realizada contra lege.
d) Da norma dos Art.s 6° nos 1 e 3 e 7° do CRgP, quando a prioridade e a presunção registral neles definida é interpretada sem a consideração da exceção à regra do Art 5° do CRgP, prevista na alínea a) do seu nº 2, ou seja “Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, exceto “a aquisição, fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do nº 1 do artigo 2 “ ou seja atribuindo, como na decisão recorrida, eficácia constitutiva anormal ao registo predial, ao fazer prevalecer um registo de penhora face a um aquisição por usucapião de direito de propriedade constituída (por retroação do direito real ao início da posse) antes da penhora e registada, inaugurando até um novo trato sucessivo, antes do registo da aquisição da venda executiva fiscal.” (fls. 826 a 829)
Cumpre apreciar.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 832) com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Importa começar por notar que o Tribunal Constitucional apenas está investido de poderes para fiscalizar a constitucionalidade de normas jurídicas (artigo 277º, n.º 1, da CRP) que tenham sido efetivamente aplicadas pelo tribunal recorrido (artigo 79º-C da LTC), cabendo ao recorrente identificar a(s) norma(s) jurídicas que padece(m), em seu entendimento, de tal inconstitucionalidade (artigo 75º-A, n.º 1, da LTC.
Sucede que o modo como a recorrente formulou o objeto do presente recurso denuncia que as questões colocadas nos §§ a) e c) não se revestem de natureza verdadeiramente normativa, antes pretendendo colocar em causa o conteúdo das decisões jurisdicionais que lhe foram adversas. Com efeito, a recorrente limita-se a discordar das próprias decisões tomadas pelos tribunais sucessivamente recorridos, quanto às normas infraconstitucionais subsumíveis ao caso concreto, mas não questiona, verdadeiramente, a própria constitucionalidade de normas jurídicas aplicadas face à Lei Fundamental.
Só esta razão já justificaria a prolação de decisão de não conhecimento quanto a estas questões.
Acresce ainda ser evidente que a decisão ora recorrida não aplicou, de modo efetivo, nenhuma das interpretações normativas que constam do objeto do presente recurso. Senão, veja-se o seguinte extrato da decisão recorrida:
“Porém, e atendendo ao que vem de expor-se, no sentido de que na situação objeto dos autos se não consubstancia a violação de autoridade do caso julgado alegada pela recorrente, carece, por tal motivo, de qualquer conteúdo útil, por prejudicada, a invocada inconstitucionalidade do decidido em igual sentido pela Relação.” (fls. 816)
Além disso, quanto às questões identificadas nas alíneas c) e d) do requerimento de interposição de recurso, a própria recorrente admite não ter suscitado a sua inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, alegando que estaria dispensada de o fazer, em função da natureza surpreendente da respetiva aplicação.
De facto, o Tribunal Constitucional tem vindo a autorizar a dispensa de prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade quando aquela se apresentar como surpreendente ou insólita Porém, a verdade é que, conforme jurisprudência consolidada no Tribunal Constitucional (cfr., a mero título de exemplo, os Acórdãos n.º 479/89, n.º 489/94, n.º 394/2005, n.º 120/2002, 415/2010, todos disponíveis in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), a natureza surpreendente fica dependente de uma atuação diligente e preventiva do recorrente, que deve antecipar as várias interpretações normativas potencialmente aplicável.
Vejamos o que se disse, por exemplo, no Acórdão n.º 415/10:
“A natureza imprevisível, surpreendente ou insólita da norma ou interpretação normativa efetivamente aplicada depende, todavia, do preenchimento de um grau reforçado de diligência do recorrente. Este grau de diligência implica uma antecipação das diversas soluções jurídicas potencialmente aplicáveis ao litígio controvertido, devendo precaver-se contra a adoção de soluções que, ainda que minoritárias, possam ser configuradas como objetivamente admissíveis face à letra da lei. Só no caso de não ter sido possível antecipar a aplicação de norma ou interpretação normativa contrária à Constituição – sendo esta possibilidade sempre aferida de modo objetivo – é que será admissível a dispensa de suscitação prévia da inconstitucionalidade (neste sentido, cfr., entre outros, Acórdãos n.ºs 489/94 e 479/89).”
Nos presentes autos, foi a própria recorrente quem invocou os artigos 6º, n.ºs 1, e 3, e 7º do Código de Registo Predial (cfr. fls. 736 a 740 e §§ 59 a 64 das conclusões, a fls. 760 a 762), em interpretação favorável à sua posição, tendo mesmo admitido que o Tribunal da Relação havia decidido em sentido contrário:
“Na verdade e também ao contrário do decidido na decisão recorrida o registo da aquisição derivada na R. nunca pode prevalecer sobre o registo da ação da Autora, onde foi reconhecida a sua aquisição originária.” (fls. 761)
Sendo assim, tendo tido oportunidade de refletir sobre a existência de interpretações distintas relativamente àquelas normas jurídicas, poderia e deveria a recorrente ter antecipado todas as possibilidades interpretativas que, racional e objetivamente, poderiam vir a ser adotadas pelo Supremo Tribunal de Justiça. Não o tendo feito, não pode agora a recorrente ser dispensada do referido ónus de prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade, que sobre si impende, por força do artigo 72º, n.º 2, da LTC.
Como tal, nenhuma das questões de constitucionalidade que constituem objeto do presente recurso deve ser objeto de conhecimento por parte deste Tribunal.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, decide-se não conhecer do objeto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.”
2. A recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da LTC, nos termos que ora se resumem:
“1. Salvo o devido respeito, só por lapso se pode afirmar, como na Decisão reclamada, que a Recorrente se limita “a discordar das próprias decisões tomadas pelos tribunais sucessivamente recorridos, quanto às normas infraconstitucionais subsumíveis ao caso concreto, mas não questiona, verdadeiramente, a própria constitucionalidade de normas jurídicas aplicadas face à Lei Fundamental “
2. Com efeito, e desde logo, convém notar que no ponto 2º do Requerimento de interposição, que precede as alíneas transcritas na Decisão ora reclamada, se declara: “2.º Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade por violação dos Artigos 2º, 62º, nº 1 do art. 111º e 266º da Constituição da República Portuguesa:
Das normas do CPC constantes dos artigos 671.º, n.º 1 e 497º e 498º, (estes por força do primeiro) invocadas no Acordão recorrido, ....
Da norma do n.º 3 do art.º 271.º do CPC ....
Da norma do Art. 824º, nº 2 do CC, conjugada com as dos arts. 6º, nºs 1 e 3 e 7º do CRgP e 350º do CC, invocados no Ac recorrido ...
Da norma dos Art.s 6º nºs 1 e 3 e 7º do CRgP.....”
3. Sendo que no ponto 3º do Requerimento ainda se esclarece que:
“3.º As referidas normas, quando interpretadas nos sentidos apontados, ofendem o princípio constitucional da estabilidade e da segurança jurídica, consagrado inter alia no art. 2º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da intangibilidade do caso julgado formado por sentença transitada em julgado, corolário do Estado de Direito Democrático, para além de violarem também o art. 62º da CRP, na medida em que, ao ignorarem e obliterarem (em confronto com uma venda executiva fiscal de bens alheios e realizada ilegalmente) um direito de propriedade fundado na usucapião há muito reconhecido por sentença transitada em julgado, constituem formas de revisão extraordinária da res judicata e até de expropriação que são proibidas constitucionalmente, alem de que, ao equipararem a natureza da venda executiva fiscal à dita natureza da venda judicial ou seja ao considerarem aquela como um ato publico próprio de um poder autónomo que se reconhece à própria essência da função judiciária, ofendem os princípios da legalidade (art. 266º da CRP), da separação de poderes (nº 1 do art. 111º da CRP) e respetivos corolários da separação dos órgãos administrativos (incluídos os fiscais) e judiciais, da incompatibilidade das magistraturas e da independência recíproca da Administração fiscal e da Justiça.”
4. Resulta assim claro que, no Requerimento interposto de recurso de constitucionalidade, o que se questiona é a desconformidade constitucional da ratio decidendi do Acordão recorrido, isto por adotar uma interpretação (à qual subsume o caso concreto) das normas supra referidas, que se reputa de inconstitucional e que até é suficientemente genérica e aplicável a outras situações
.
(…)
8. Ora a interpretação normativa (relativa às normas dos arts 671.º, n.º 1, 497º e 498º, estes por força daquele, aplicados no Acordão recorrido) subjacente à decisão de não relevar a exceção do caso julgado, por falta do requisito da identidade jurídica dos sujeitos, sustenta que a arrematante não é sucessora ou não está dependente da posição jurídica da executada (quer quanto à sua existência quer quanto à sua extensão, cfr. nº 1 do art. 824º do CC), em virtude de uma alegada natureza de “ato de direito público” e inclusive “judicial” da venda executiva fiscal.
9. Do mesmo modo a dita natureza de ato de direito público da venda executiva não sendo, como também afirma o Acordão recorrido, “uma transmissão inter vivos” impede o reconhecimento da chamada ampliação a terceiros dos efeitos do caso julgado, prevista no nº 3 do art. 271º do CPC; ou seja a interpretação adotada para este regime normativo considera, algo estranhamente, que a venda executiva fiscal, “atenta a apontada natureza da venda judicial” não é um ato de transmissão entre vivos de coisa ou direito litigioso.
10. São estas as dimensões normativas a que se reportam as alíneas a) e b) do Requerimento, sendo que, a vingarem na ordem jurídica, ofendem o princípio constitucional da estabilidade e da segurança jurídica (ao reverem, na prática, extraordinária mas ilicitamente o caso julgado) e violam ainda o direito de propriedade, na medida em que, por força da alegada natureza de “ato público”, consentindo e validando uma venda executiva fiscal de bens alheios, na verdade o expropriam, sem qualquer indemnização.
(…)
A aplicação das interpretações normativas
12. Por outro lado e salvo o devido respeito é incorreto afirmar-se, como na Decisão reclamada, que “a decisão ora recorrida não aplicou, de modo efetivo, nenhuma das interpretações normativas que constam do objeto do presente recurso”, socorrendo-se para o efeito de um extrato do Acordão recorrido que se reporta à alegação de inconstitucionalidade da decisão proferida pela 2ª Instancia
13. Com efeito o referido extrato do Ac do STJ considera prejudicado o conhecimento da “invocada inconstitucionalidade do decidido em igual sentido pela Relação” uma vez que “na situação objeto dos autos se não consubstancia a violação da autoridade do caso julgado”
14. Ora a Decisão reclamada acolhe, neste aspeto, um argumento redundante, uma vez que é a própria inconstitucionalidade da interpretação das normas de que a Relação e o Acórdão do STJ se socorrem para violar e não reconhecer o caso julgado, que é assacada nesta sede.
15. Tanto mais quando a ratio interpretativa do Acórdão recorrido, assenta em diferentes fundamentos normativos, como se comprova pela seu segmento decisório: “IV- Assim, e ainda que por fundamentos substancialmente distintos dos expendidos pela Relação, vai negada a revista”
16. Ora são estes “fundamentos substancialmente distintos” (na verdade são novos) que a ora Reclamante reputa também e nesta sede de inconstitucionais.
17. Com efeito, em sede de recurso de revista, foi arguida a inconstitucionalidade da interpretação que conduziu à declaração de inexistência de caso julgado, mas por ausência da identidade do pedido e da causa de pedir, dado que a Relação reconheceu expressamente a identidade jurídica dos sujeitos.
18. Já no Acordão ora recorrido a inconstitucionalidade em causa respeita à interpretação normativa subjacente da ratio decidendi, que, ao contrário do decidido na Relação, não reconheceu o caso julgado por falta de identidade jurídica dos sujeitos.
19. Logo, a aceitar-se o argumento da Decisão sumária ora reclamada então nunca seria possível impugnar, em sede constitucional, decisões do STJ que “por fundamentos substancialmente distintos dos expendidos pela Relação” negassem a revista, bastando para o efeito, sem fundamentar, declarar a inexistência do vício imputado.
Dispensa do cumprimento do ónus de suscitação prévia
22. Quanto à dispensa do cumprimento do ónus de suscitação prévia, relativa às decisões surpresa a que se referem as alíneas c) e d) do Requerimento recursivo, não se vê como seria razoável antecipar interpretações normativas que, além de estranhas quer à letra quer ao espírito das normas aplicadas, contrariam até a unanimidade da doutrina e da jurisprudência.
23. Na verdade a interpretação normativa dos artigos aplicados pelo Acórdão recorrido é, além de nova, surpreendente e claramente inconstitucional, sendo que, a vingar, seria suscetível de, em termos práticos e substantivos, criar situações insustentáveis do ponto de vista jurídico.
24. Com efeito, não se vislumbra como, sem ferir a Lei Fundamental nas vertentes designadamente da proteção da confiança, da segurança jurídica e da legalidade, se pode interpretar o acervo normativo, aplicado no Acordão recorrido, constituído pelo Art. 824º, nº 2 do CC, conjugado com os arts. 6º, nºs 1 e 3 e 7º do CRgP e 350º do CC, no sentido de, numa venda executiva, os bens serem transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, desprezando a exceção (contemplada no último segmento do aplicado art. 824º/2 do CC) daqueles direitos “que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo”, como é especificamente o direito de propriedade fundado na usucapião.
(…)
27. Do mesmo modo seria inusitado e por isso razoavelmente não expectável que a ora Reclamante configurasse uma interpretação dos nºs 1 e 3 do art. 6º e o art. 7º do CRgP, no sentido de considerar que a prioridade e a presunção registrais aí definidas não estão excecionadas pelo disposto na alínea a) do nº 2 do art. 5º do CRgP: “os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da data do respetivo registo”, exceto “a aquisição, fundada na usucapião, dos direitos referidos na alínea a) do n.º 1 do artigo 2.º”.
28. Ou seja, ofende o caso julgado, a segurança jurídica e o direito de propriedade atribuir, como na decisão recorrida, eficácia constitutiva ao registo de uma penhora, fazendo-o prevalecer face a uma aquisição por usucapião de direito de propriedade, o qual constituindo-se, por retroação ao inicio da posse (cfr. art. 1288.º CC) e sendo seguro que o momento de aquisição desse direito real coincide com o seu início (cfr. art. 1317.º, alínea c), do CC), é muito anterior (cerca de vinte anos) à data da penhora e do seu registo.
(…)
31. Face ao exposto há que convir que era de todo impossível e até impraticável antecipar as interpretações das normas do CRgP subjacentes à Decisão recorrida, cumprindo lembrar que o Acórdão da Relação, que confirmou (“quase na totalidade”) mas “também com fundamentação distinta a sentença recorrida” afastou perentoriamente o argumento (já invocado na 1ª Instância) da prioridade do registo da penhora, só não fazendo prevalecer a prioridade registral da ora Reclamante, porque, alegadamente, “...não se pode atribuir ao registo da ação efeitos substantivos”, sem prejuízo de, não ocorrendo qualquer causa de nulidade deste registo, ter até negado o seu cancelamento. (Cfr. as últimas duas pgs do Acórdão, de fls)
32. Daí que a alegação da revista se tivesse concentrado naquela razão invocada no Acórdão da Relação – ausência de efeitos substantivos, por sintética e alegadamente não se ter invocado, na Pi da ação nº 467/95, suficiente densidade fáctica usucapiente, não obstante a sentença transitada ter reconhecido a usucapião do direito de propriedade - imputando-lhe, designadamente, por isso, em sede de sindicância constitucional, a violação do caso julgado. (…)”
3. Notificada para o efeito, a recorrido deixou esgotar o prazo sem que viesse aos autos apresentar qualquer resposta.
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Nenhum dos argumentos esgrimidos pela reclamante logra abalar a justeza da fundamentação da decisão reclamada.
Na verdade, nem a primeira nem a terceira questões colocadas pela reclamante no requerimento de interposição de recurso se revestem de natureza normativa, antes constituindo um conjunto de considerações jurídicas tecidas a propósito da própria tramitação dos autos recorridos e das sucessivas interpretações extraídas pelo tribunal recorrido. Em suma, a reclamante pretende reabrir, em sede de recurso de constitucionalidade, uma questão de divergência puramente infraconstitucional, que já foi definitivamente decidida pela decisão recorrida, pelo que se torna evidente a impossibilidade de conhecimento do respetivo objeto, naquela parte, por força do artigo 79º da LTC.
Por outro lado, a segunda questão de constitucionalidade refere-se a uma interpretação que não foi aplicada, pelo simples facto de que nunca concluiu que houvesse trânsito em julgado de qualquer decisão anterior, pelo que também não é possível dela conhecer.
Por último, quanto à falta de suscitação processualmente adequada das terceira e quartas questões fixadas pelo requerimento de interposição de recurso, reafirma-se a decisão reclamada, no sentido de que cabia à ora reclamante ter colocado tal questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, “ad cautelam”, logo no momento em que interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. É que – conforme já notado pela decisão ora reclamada – foi a própria recorrente quem, nos §§ 59 a 64 das suas conclusões de recurso, invocou a seu favor a aplicação dos artigos 6º, n.ºs 1 e 3, e 7º, ambos do Código de Registo Predial (CRPred). Ora, preconizando a aplicação de tais normas, a reclamante não podia senão antecipar as possíveis interpretações desses mesmos preceitos legais, com particular atenção para aquelas que, sendo-lhe desfavoráveis, padecessem de inconstitucionalidade.
Não o tendo feito – embora o tenha podido fazer – naquele momento processual, fica assim a reclamante impedida de ver agora apreciada a questão da alegada inconstitucionalidade das terceira e quarta questões, por força do incumprimento do ónus que sobre si recaía, resultante do art. 72 n.º 2 da LTC.
Em suma, confirma-se o teor da decisão reclamada.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pela recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de outubro.
Lisboa, 19 de janeiro de 2012.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.
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