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Processo n.º 802/11
3.ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Maria Guerra Martins
Acordam, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, a Relatora proferiu a Decisão Sumária n.º 605/2011:
“I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, a primeira vem interpor recurso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da LTC, da decisão proferida, em conferência, pela 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em 20 de Outubro de 2011 (fls. 164 a 172) para que seja apreciada a constitucionalidade “dos artigos 11.º, 12.º e 21.º, n.º 2 da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, quando aplicados à execução de mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento criminal (…) por violarem um princípio constitucional elementar na aplicação de qualquer medida privativa de liberdade a quem se presume inocente: o princípio da proporcionalidade, cuja ponderação não pode ser excluída pelo legislador ordinário, sob pena de violação dos artigos 18.º n.º 2, 28.º, n.º 2 e 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como dos artigos 48.º e 49.º da Carta dos Direitos Fundamentais” (fls. 177).
Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2. Mesmo tendo o recurso sido admitido por despacho do tribunal “a quo” (cfr. fls. 179) com fundamento no n.º 1 do artigo 76º da LTC, essa decisão não vincula o Tribunal Constitucional, conforme resulta do n.º 3 do mesmo preceito legal, pelo que se deve começar por apreciar se estão preenchidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso previstos nos artigos 75º-A e 76º, nº 2, da LTC.
Se o Relator verificar que algum, ou alguns deles, não foram preenchidos, pode proferir decisão sumária de não conhecimento, conforme resulta do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC.
3. Antes de mais, refira-se que o Tribunal Constitucional só pode conhecer de questões de constitucionalidade que tenham sido efectiva e anteriormente decididas pelo tribunal recorrido, conforme resulta do artigo 79º-C da LTC.
Nos presentes autos, a recorrente pretende que seja apreciada uma interpretação normativa segundo a qual os artigos 11º, 12º e 21º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003 excluiriam a violação do princípio da proporcionalidade dos fundamentos de recusa de execução do mandato de detenção europeu, quando emitido para efeitos de procedimento criminal. Ora, se é certo que o Tribunal da Relação de Lisboa sufragou esse entendimento (ver fls. 125), não é menos que o Supremo Tribunal de Justiça não adoptou essa linha de raciocínio.
Pelo contrário, a decisão recorrida demonstrou, precisamente, que a articulação entre os direitos constitucionalmente consagrados – entre os quais os que decorrem dos artigos 18º, n.º 2, 27º, n.º 2 e 32º, n.º 2, todos da CRP – e o regime fixado pela Lei n.º 65/2003 acautela suficientemente o princípio da proporcionalidade. Neste sentido, veja-se o teor da decisão:
“A Constituição, no artº 27º, nº 3, alínea c), admite a aplicação de medida privativa da liberdade sem que haja condenação, designadamente a detenção, sujeita a controlo judicial, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», de pessoa contra a qual esteja em curso processo de «extradição», conceito que deve ser interpretado no sentido de abranger o mandado de detenção europeu, que substituiu entre os Estados Membros da Comunidade Europeia os anteriores instrumentos em matéria de extradição.
E no caso de mandado de detenção europeu, a detenção da pessoa procurada é submetida à apreciação de um juiz no prazo máximo de 48 horas, como estabelece o artº 18º, nº 2, da Lei nº 65/2003 e está de acordo com a norma do nº 1 do artº 28º da Constituição, que fixa esse prazo como o período máximo de detenção sem controlo judicial. E o juiz, ao ser-lhe apresentada a pessoa detida, decide se mantém a situação de detenção, que está sujeita a prazos máximos curtos (artº 30º da Lei nº 65/2003), proporcionais ao fim e vista, se a considerar necessária.” (fls. 171, com sublinha)
Torna-se, pois, evidente que a decisão recorrida nunca aplicou as normas que constituem objecto do presente recurso no sentido de que o princípio da proporcionalidade não deveria ser ponderado, para efeitos de execução do mandado de detenção europeu. Pelo contrário, aquela decisão entendeu que a articulação entre as várias normas legais e a Constituição assegura que aquele princípio é suficientemente protegido.
Acresce ainda que, no § 6 da referida decisão recorrida (fls. 171 e 172), o Supremo Tribunal de Justiça diverge ainda mais da interpretação acolhida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, condicionando a entrega da recorrente às autoridades judiciais espanholas à garantia de que aquela seja devolvida a Portugal para cumprimento de qualquer medida privativa da liberdade pessoal, seja ela mera medida de coacção ou prisão efectiva. Como tal, fica ainda mais notória a preocupação da decisão recorrida em assegurar o estrito cumprimento do princípio da proporcionalidade.
Assim sendo, este Tribunal não deve conhecer do objecto do presente recurso por este não corresponder à interpretação normativa adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça que nunca considerou que o princípio da proporcionalidade não devia ser ponderado para efeitos de execução de mandado de detenção europeu. Conforme atrás se mencionou, por força do artigo 79º-C da LTC, este Tribunal só pode conhecer de normas ou interpretações normativas que tenham sido efectivamente aplicadas pelos tribunais recorridos, o que não foi – manifestamente – o caso.
III – DECISÃO
Nestes termos, ao abrigo do n.º 1 do artigo 78º-A da LTC, e pelos fundamentos expostos, decide-se não conhecer do objecto do presente recurso.
Custas devidas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 7 UC´s, nos termos do n.º 2 do artigo 6º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.”
2. A recorrente vem agora reclamar para a conferência, ao abrigo do artigo 78º-A, nº 3, da Lei do Tribunal Constitucional, nos termos que ora se resumem:
“(…)
3. A decisão sumária refere ainda ser “evidente” que “a decisão recorrida nunca aplicou as normas que constituem objecto do presente recurso no sentido de que o princípio da proporcionalidade não deveria ser ponderado, para efeitos de execução do mandado de detenção europeu” (pag. 3).
4. Recorde-se que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa havia considerado ser “impensável que um Estado-Membro invoque qualquer princípio da proporcionalidade para se recusar a cumprir um Mandado de Detenção Europeu”.
5. Pelo teor da decisão sumária, o Supremo Tribunal de Justiça teria aparentemente proferido acórdão de enorme relevo, pois que reconheceria (ao que sabemos, pela primeira vez em Portugal) a relevância do princípio da proporcionalidade na execução do mandado de detenção europeu.
6. O seguinte parágrafo da decisão sumária parece aliás não deixar dúvidas: “Nos presentes autos, a recorrente pretende que seja apreciada uma interpretação normativa segundo a qual os artigos 11º, 12º e 21. °, nº 2, da Lei n.º 65/2003 excluiriam a violação do princípio da proporcionalidade dos fundamentos de recusa de execução do mandato de detenção europeu, quando emitido para efeitos de procedimento criminal Ora, se é certo que o Tribunal da Relação de Lisboa sufragou esse entendimento (ver fls. 125), não é menos que o Supremo Tribunal de Justiça não adoptou esse linha de raciocínio”(sublinhado nosso).
7. Cremos, porém, que a interpretação normativa atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça não terá correspondência na decisão proferida visto que, se assim fosse, teria necessariamente ponderado se, em concreto, deveria ser recusada a execução do mandado de detenção de europeu emitido contra a recorrente, ponderação essa que o o legislador ordinário não autoriza, o que não seria inconstitucional, residindo precisamente aí o objecto do presente recurso.
8. Com efeito, o Supremo Tribunal de Justiça afirma expressamente que a Recorrente “Não tem razão” quando invoca a inconstitucionalidade dos artigos 11º, 12. ° e 21º, nº 2 da Lei n.º 65/2003 (pag. 3), preceitos que afastam a recusa da execução de mandado de detenção europeu emitido para efeitos de procedimento criminal, por violação do princípio da proporcionalidade.
9. Parece-nos assim que o Supremo Tribunal de Justiça considera que a Constituição não exige que seja assegurada a possibilidade de recusa de execução de mandado de detenção europeu com base na violação do princípio da proporcionalidade (socorrendo-se porém de argumentos de limitada relevância para o caso, pois não se cuida da proporcionalidade das medidas de coacção decretadas, mas antes do próprio mandado).
10. Finalmente, a decisão sumária sublinha o facto de o Supremo Tribunal de Justiça ter condicionado a entrega da Recorrente ao cumprimento de eventual sanção em Portugal. Mas esse facto nada tem que ver com o objecto do recurso, a saber, se o legislador ordinário pode afastar a recusa de execução de mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento criminal com fundamento na violação do princípio da proporcionalidade (de resto, mesmo neste domínio, não parece interpretação adequada da decisão do Supremo Tribunal de Justiça afirmar que a mesma condiciona a entrega da Recorrente “à garantia de que seja devolvida para cumprimento de qualquer medida privativa da liberdade pessoal, seja ela mera medida de coacção ou prisão efectiva”).
11. Em suma, o Supremo Tribunal de Justiça aplicou as normas que constituem objecto do presente recurso, que não considerou inconstitucionais, em divergência com a Recorrente, que considera que tais normas são inconstitucionais por violarem os arts. 18°, n.º 2, 28. °, nº 2 e 32.°, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 48.° e 49º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
12. Por fim, pensamos que a matéria objecto de recurso é da maior relevância constitucional, estando em causa a entrega de uma cidadã portuguesa, presumida inocente, a autoridades estrangeiras, por factos cuja moldura penal máxima é de 4 anos.”
3. Notificado para o efeito, o Ministério Público veio responder nos seguintes termos.
“6º
Ora, crê-se que assiste razão à reclamante, quanto à interpretação que faz do Acórdão, recorrido, do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Outubro de 2011.
(…)
A conclusão que se poderá, pois, tirar, é que o Supremo Tribunal de Justiça, realmente, entendeu que as normas contestadas pela ora reclamante - artigos 11º, 12º e 21º, nº 2 da Lei nº 65/2003 - não são inconstitucionais.
7º
Já anteriormente, aliás, o mesmo acórdão, quando apreciou se o mandado de detenção europeu, relativo à ora reclamante, padecia de “qualquer insuficiência de que resulte a sua inadmissibilidade ou a da entrega da pessoa procurada” (cfr. fls. 169 dos autos), havia referido (cfr. fls. 168 dos autos):
“Informa, pois, o mandado acerca do requisito de admissibilidade previsto no nº 1 do art. 2º da Lei nº 65/2003. O crime pelo qual se pede a entrega da requerida é punível, pela lei do Estado da emissão, com pena de prisão de máximo igual a 4 anos.
E também que os factos pelos quais se pretende proceder criminalmente contra a requerida constituem, de acordo com a legislação do Estado espanhol, uma das infracções do nº 2, punível com pena de prisão de máximo não inferior a 3 anos, mais concretamente a da alínea h( [«fraude …»]. E não pode esquecer-se que, nos termos do art. 1º, nº 2, o mandado de detenção europeu «é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto (…) na Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho», baseando-se, como é afirmado no considerando (10) deste último diploma, «num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros».
Mesmo que se entendesse que do mandado não se pode retirar que a infracção imputada se inclui, à face do direito do Estado de emissão, entre as elencadas nesse nº 2, sempre teria de considerar-se que os factos ali imputados à requerida constituem infracção punível de acordo com a lei portuguesa, integrando, ao menos, o crime de abuso de confiança fiscal, com previsão, à data da sua prática, no art. 24º do RJFNA, aprovado pelo DL nº 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção dada pelo DL nº 394/93, de 24 de Novembro, e, posteriormente, no art. 105º, nºs 1, 2 e 5, do RGIT, aprovado pela Lei nº 15/2001, de 5 de Junho.”
8º
Assim, o que o referido acórdão procurou sublinhar, parece-nos, foi a inanidade dos argumentos da ora reclamante perante legislação que resultou de cumprimento – ou seja, da transposição legislativa, para o direito interno - de uma Decisão Quadro – 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho.
Decisão Quadro, essa, vinculativa para Portugal, bem como para os restantes Estados-Membros, quanto aos resultados a alcançar com a sua elaboração, embora deixando, aos mesmos Estados, alguma liberdade de decidir quanto à forma e aos meios para o fazer.
Estamos, pois, aqui, perante uma situação de primado de direito comunitário sobre o direito nacional.
(…)
11º
Tornam-se, assim, claras as razões pelas quais a argumentação da ora reclamante, perante a emissão de um MDE que lhe diz respeito, não fazem grande sentido.
O que se pretendeu foi, justamente, o de não permitir que razões, como as que invoca, possam obstar a uma estreita cooperação, de âmbito judiciário, sublinha-se, entre Estados-Membros.
12º
Uma tal posição, aliás, já havia sido claramente enunciada pela digna magistrada do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa (cfr. resposta do Ministério Público à oposição, da interessada, à sua entrega às autoridades espanholas, a fls. 107-110 dos autos), designadamente quando afirma (cfr. fls. 109-110 dos autos) (destaques do signatário):
“O MDE constitui uma importante manifestação legislativa do princípio do reconhecimento mútuo entre os Estados Membros da União Europeia, destinado a substituir o procedimento de extradição.
A recusa da execução do MDE por parte do Estado português consagrada nos artigos 11º e 12º da Lei 65/2003 de 23.8, constitui uma reserva de soberania.
Tal reserva constitui uma excepção aos princípios que norteiam a criação do MDE baseados no reconhecimento mútuo e na confiança mútua entre os Estados Membros da União Europeia.
Desde que uma decisão seja tomada pela autoridade judiciária do Estado Membro, em conformidade com o direito desse estado, essa decisão deve ter um efeito pleno e directo sobre o conjunto do território da União, logo o Estado que deve executar a referida decisão deve prestar a sua colaboração como se tratasse de decisão tomada pela autoridade competente desse estado.
O MDE deve ser um instrumento ágil baseado na confiança mútua.
Pelas razões antes expostas não se pode nunca considerar que o cumprimento deste MDE, possa ser considerado como uma violação do princípio da proporcionalidade.”
(…)
16º
Assim, pelas razões sucessivamente aduzidas ao longo do presente parecer, julga-se que a reclamante não tem qualquer razão na sua argumentação, encontrando-se tal argumentação completamente deslocada perante um instrumento comunitário que, justamente, pretende retirar, aos Estados-Membros, excepto em casos devidamente identificados em tal instrumento, a possibilidade de apreciarem o mérito de um pedido de entrega de uma determinada pessoa a uma autoridade judiciária de outro Estado Membro.
Essa pessoa, porém, continua – como a reclamante seguramente constatará, no decurso do processo a que vier a ser submetida perante o tribunal espanhol – a dispor de todas as garantias de defesa, limitando-se a execução do Mandado de Detenção Europeu a colocá-la à disposição da autoridade judiciária do Estado requerente, para poder fazer valer esses direitos.
Não há, pois, aqui, nenhuma violação do princípio da proporcionalidade, mas apenas a constatação de que o braço da lei, dentro da União Europeia, é longo e se destina a abranger todo o território dos seus Estados-Membros.
17º
Por todo o exposto ao longo deste parecer, crê-se que a presente reclamação para a conferência, embora por razões diversas das aduzidas na Decisão Sumária 605/11, ora reclamada, deverá ser desatendida por este Tribunal Constitucional.”
Posto isto, importa apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. Pela presente reclamação, este Tribunal, em conferência, é interpelado a ponderar se a interpretação normativa adoptada pelo Supremo Tribunal de Justiça corresponde àquela que a recorrente fixou como objecto do presente recurso, conforme entende a reclamante ou se como se sustentou na decisão sumária tal não se verifica. Note-se que o Ministério Público adere aos argumentos da ora reclamante, considerando que a decisão recorrida adoptou, precisamente, a interpretação normativa reputada de inconstitucional, mas acaba por concluir pelo indeferimento da presente reclamação.
5. Importa, antes de mais, começar por recordar o objecto do presente recurso, tal como consta do requerimento de interposição do mesmo. No § 6 do referido requerimento, a recorrente solicitou que fosse fiscalizada “a constitucionalidade dos artigos 11º, 12º e 21º, nº 2 da Lei nº 65/2003, de 23 de Agosto, quando aplicados à execução de mandado de detenção europeu para efeitos de procedimento criminal”, por violação do princípio da proporcionalidade (§ 8) especificando, mais adiante, no § 12, que a referida inconstitucionalidade se reporta a um interpretação normativa segundo a qual seria admissível “que o legislador ordinário impeça os tribunais portugueses de escrutinar a proporcionalidade da execução do mandado de detenção europeu, quando essa medida privativa da liberdade é aplicada a quem beneficia da presunção de inocência, visto que a mesma pode ter efeitos pessoais e profissionais potencialmente devastadores (nomeadamente, os decorrentes do afastamento forçado de cidadão português do território nacional, como acontece com a Recorrente), que podem ser manifestamente desproporcionais face às circunstâncias do caso, tendo em conta a finalidade concreta do mandado, a gravidade dos factos, a moldura penal e demais circunstâncias” (fls. 178).
Ainda que se verifique alguma flutuação terminológica na delimitação do objecto do recurso, ela resulta da combinação entre os §§ 6, 8 e 12 do requerimento de interposição de recurso, ou seja, corresponde à norma extraída dos artigos 11º, 12º, e 21º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, quando interpretada no sentido de ser impossível escrutinar a proporcionalidade da execução de um mandado de detenção europeu.
E deve frisar-se bem que o modo como a reclamante definiu o objecto do presente recurso pressupõe que se defina o conceito de “execução” de um mandado de detenção europeu. Ora, tal “execução” corresponde ao complexo de actos processuais e diligências materiais tendentes à detenção e envio da pessoa alvo do mandado para comparência perante autoridade judiciária de Estado-Membro vinculado à Decisão-Quadro n.º 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho. Assim sendo, há que distinguir entre a “decisão jurisdicional que autoriza a execução” (artigo 22º, n.º 1, da Lei n.º 303/2003), que consiste em decisão fundamentada sobre a admissibilidade da execução, após audição do interessado, e a própria “execução material” do mandado, entendida no sentido de procedimento sequencial de actos processuais e diligências materiais.
Ora, quando a reclamante fixou o objecto do presente recurso, afirmou expressamente que pretendia ver sindicada a constitucionalidade de interpretação segundo a qual seria admissível “que o legislador ordinário impeça os tribunais portugueses de escrutinar a proporcionalidade da execução do mandado de detenção europeu” (fls. 178). No § 12 do requerimento do requerimento de interposição de recurso, a reclamante não ataca a inconstitucionalidade de interpretação relativa ao escrutínio da proporcionalidade da decisão estrangeira que emitiu o mandado, mas antes se refere, expressamente, à própria “execução” daquele, pelas autoridades judiciárias nacionais.
6. Assente o objecto do presente recurso, impõe-se verificar se o mesmo corresponde, efectivamente, à interpretação normativa acolhida pela decisão recorrida.
O Supremo Tribunal de Justiça não se limitou a afirmar a incompetência, por ausência de lei habilitadora, para aferir da compatibilidade das normas extraídas dos artigos 11º, 12º e 21º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, com o princípio constitucional da proporcionalidade na restrição de direitos, liberdades e garantias (artigo 18º, n.º 2, da CRP).
Ao invés, a decisão recorrida adoptou o seguinte entendimento:
“(…)
Informa, pois, o mandado acerca do requisito de admissibilidade previsto no n° 1 do art° 2° da Lei n° 65/2003. O crime pelo qual se pede a entrega da requerida é punível, pela lei do Estado da emissão, com pena de prisão de máximo igual a 4 anos.
E também que os factos pelos quais se pretende proceder criminalmente contra a requerida constituem, de acordo com a legislação do Estado espanhol, uma das infracções do nº 2, punível com pena de prisão de máximo não inferior a 3 anos, mais concretamente a da alínea h) [«Fraude »]. E não pode esquecer-se que, nos termos do art° 1°, nº 2, o mandado de detenção europeu «é executado com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto (...) na Decisão Quadro nº 2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho», baseando-se, como é afirmado no considerando (10) deste último diploma, «num elevado grau de confiança entre os Estados-Membros».
Mesmo que se entendesse que do mandado não se pode retirar que a infracção imputada se inclui, à face do direito do Estado de emissão, entre as elencadas nesse nº 2, sempre teria de considerar-se que os factos ali imputados à requerida constituem infracção punível de acordo com a lei portuguesa, integrando, ao menos, o crime de abuso de confiança fiscal, com previsão, à data da sua prática, no art° 24° do RJFNA, aprovado pelo DL n° 20-A/90, de 15 de Janeiro, na redacção dada pelo DL n° 394/93, de 24 de Novembro, e, posteriormente, no art° 105°, n°s 1, 2 e 5, do RGIT, aprovado pela Lei n° 15/2001, de 5 de Junho.
Não padece, assim, o mandado de qualquer insuficiência de que resulte a sua inadmissibilidade ou a da entrega da pessoa procurada.” (fls. 168 e 169)
“5. A inconstitucionalidade, por violação dos art°s 18°, nº 2, 29°, nº 2, da Constituição, 48° e 49° da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, dos art°s 11°, 12° e 21°, nº 2, da Lei nº 65/2003 estaria no facto de «excluírem como causa de recusa de execução do mandado de detenção emitido para efeitos de procedimento criminal a violação do princípio da proporcionalidade». Argumenta a este propósito que, configurando o mandado de detenção europeu uma medida privativa da liberdade, a Constituição requer que, nestes casos, em que não houve ainda condenação, se “pondere a finalidade da sua execução, a gravidade dos factos, a moldura penal e as consequências da execução de uma medida privativa da liberdade”.
Não tem razão.
A Constituição, no art° 27°, nº 3, alínea c), admite a aplicação de medida privativa da liberdade sem que haja condenação, designadamente a detenção, sujeita a controlo judicial, «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», de pessoa contra a qual esteja em curso processo de «extradição», conceito que deve ser interpretado no sentido de abranger o mandado de detenção europeu, que substituiu entre os Estados membros da Comunidade Europeia os anteriores instrumentos em matéria de extradição.
E no caso do mandado de detenção europeu, a detenção da pessoa procurada é submetida à apreciação de um juiz no prazo máximo de 48 horas, como estabelece o art° 18°, nº 2, da Lei n°65/2003 e está de acordo com a norma do nº 1 do art° 28° da Constituição, que fixa esse prazo como o período máximo de detenção sem controlo judicial. E o juiz, ao ser-lhe apresentada a pessoa detida, decide se mantém a situação de detenção ou aplica medida de coacção prevista no CPP, só mantendo a detenção, que está sujeita a prazos máximos curtos (art° 30° da Lei nº 65/2003), proporcionais ao fim em vista, se a considerar necessária.
6. Não havendo motivo para recusar a execução do mandado, a decisão de entrega às autoridades espanholas da recorrente, que é de nacionalidade portuguesa, deve ficar condicionada, como, subsidiariamente, pediu, à sua devolução a Portugal para aqui cumprir a pena ou medida de segurança privativas da liberdade a que eventualmente seja condenada, ao abrigo do disposto no art° 13°, alínea c), da Lei nº 65/2003.
Esta norma encontra fundamento em razões de política criminal, na medida em que se entende que a pena realizará mais facilmente a sua finalidade de reintegração social se for executada no país com o qual a pessoa condenada tem melhores ligações, designadamente familiares. Note-se que já no âmbito da Lei nº 144/99, para a sentença estrangeira ser executada em Portugal, se exigia que isso fosse justificado «pelo interesse da melhor reinserção social do condenado ou da melhor reparação do dano» (alínea g) do nº 1 do art° 96°).
Ora, a requerida, de nacionalidade portuguesa, se ultimamente residia em Inglaterra, isso acontecia em função de uma ocasional actividade profissional, tendo também residência em Portugal, como se vê de fls. 45, aqui residindo também os filhos, os netos e um irmão. Assim, em caso de condenação em pena ou medida de segurança privativas da liberdade, o seu cumprimento em Portugal favorecerá a reintegração social da recorrente, por aqui se encontrarem as pessoas que lhe são mais próximas, as pessoas que a poderão apoiar durante o cumprimento da sanção, ajudando-o a preparar a regresso à liberdade.” (fls. 171 a 172)
Ou seja, a decisão recorrida começa por demonstrar que o crime que subjaz ao mandado de detenção europeu corresponde a crime de fraude fiscal, de acordo com a lei espanhola, punível com pena de prisão até 4 anos (e igualmente punível pela lei portuguesa), para depois se centrar na aferição da eventual inconstitucionalidade normativa decorrente da aplicação de normas relativas ao procedimento de detenção, de decisão e de envio da ora reclamante, para comparência perante autoridade administrativa espanhola.
A decisão recorrida afirmou expressamente que cabe ao tribunal competente aferir da proporcionalidade da restrição do direito de liberdade pessoal (artigo 28º da CRP), de que gozam as pessoas alvo de mandado de detenção europeu emitida por Estado Membro estrangeiro, tendo ponderado, especificamente, as normas relativas à “execução” do mandado (in casu, sujeição da detenção a controlo jurisdicional, fixação de prazos para apresentação do detido ao tribunal competente, decisão jurisdicional sobre manutenção da detenção, condicionamento à devolução do detido ao Estado português).
Deste modo, torna-se evidente que a decisão recorrida não se furtou a assegurar que a privação da liberdade pessoal da ora reclamante fosse restringida de modo proporcionado (artigo 18º, n.º 2, da CRP), conforme indiciaria o objecto do presente recurso fixado pela reclamante. Muito pelo contrário, demonstrou que o crime que subjaz ao mandado não constitui uma “bagatela penal”, sendo punível com pena de prisão até 4 anos e que as normas que regulam o procedimento de execução do mandado respeitam, igualmente, aquele princípio da proporcionalidade.
Como tal, ao abrigo do artigo 79º-C da LTC, resta apenas concluir que o Supremo Tribunal de Justiça não aplicou a interpretação normativa que a reclamante elegeu como objecto do presente recurso.
III - Decisão
Em face do exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Fixam-se as custas devidas pelo recorrente em 20 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 21 de Dezembro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Gil Galvão.
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