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Processo n.º 121/2011
3ª Secção
Relator: Conselheira Maria Lúcia Amaral
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, em que é arguido A., foi proferido despacho, datado de 21.10.2009, através do qual se rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente B. na sequência da decisão de arquivamento do inquérito por parte do Ministério Público, nos termos do n.º 2 do artigo 277.º do Código de Processo Penal.
Inconformado, veio o assistente B. interpor recurso do despacho proferido pelo juiz de instrução para o Tribunal da Relação de Guimarães, aí suscitando, na parte que releva para efeitos do presente recurso de constitucionalidade, a questão de inconstitucionalidade, por violação do direito do assistente no acesso à justiça, do direito e tutela jurisdicional efectiva e do princípio da proporcionalidade, estabelecidos nos artigos 20.º e 32.º da Constituição, da norma contida conjugadamente nos n.os 2 e 3 do artigo 287.º do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição prevenidas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas).
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 06.12.2010, foi negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida.
2. Dessa decisão veio o assistente B. interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional.
3. Face ao despacho proferido pela relatora no Tribunal Constitucional, convidando o recorrente a aperfeiçoar o requerimento de interposição de recurso de constitucionalidade, veio o recorrente esclarecer que pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a questão de inconstitucionalidade, por violação do direito do assistente no acesso à justiça, do direito e tutela jurisdicional efectiva e do princípio da proporcionalidade, estabelecidos nos artigos 20.º e 32.º da Constituição, da norma contida conjugadamente nos n.os 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas).
4. Notificado para o efeito, o recorrente apresentou as suas alegações, em que, a par de defender que a norma sindicada resulta de uma incorrecta interpretação do direito infra-constitucional – matéria que, por extravasar do âmbito de competência do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, não pode ser aqui apreciada –, vem sustentar que a rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, i. é sem que tenha havido lugar a um convite para aperfeiçoamento, restringe desproporcionadamente as garantias do direito do assistente no acesso à justiça, o direito e tutela jurisdicional efectiva e o princípio da proporcionalidade, estabelecidos nos artigos 20.º e 32.º da Constituição. Invoca ainda a favor do seu entendimento o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 320/2002, por entender que, no caso corrente, se verificam os mesmos pressupostos subjacentes à prolação desse acórdão.
5. Contra-alegou o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional, tendo sustentado que a norma que integra o objecto do presente recurso não é inconstitucional.
6. Tendo sido igualmente notificado para contra-alegar, o arguido nada disse.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
7. Na interpretação do regime legal acolhida pelo Tribunal a quo, não é exigível que, perante um requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente, que não respeite as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, o juiz de instrução formule um convite para aperfeiçoamento do mesmo.
Questiona o recorrente se tal interpretação do regime legal é conforme à Constituição.
Sendo esse o objecto da questão submetida à apreciação do Tribunal Constitucional, é evidente que não cabe aqui tomar posição sobre a correcção de tal interpretação do regime legal.
Além disso, também não é relevante a questão de saber se o caso dos autos é ou não abrangido pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, (DAR, I Série-A, 04.11.2005, p. 6340), proferido nos autos de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, que fixou jurisprudência no sentido de que “[n]ão há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”. Tratando-se de matéria de direito infra-constitucional, este Tribunal é incompetente para sobre ela tomar posição.
A questão de constitucionalidade é apenas a de saber se o legislador é livre para poder dispensar o convite ao aperfeiçoamento de um requerimento para abertura de instrução, apresentado pelo assistente, que não respeite as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, ou se, pelo contrário, a formulação de tal convite lhe é constitucionalmente imposta.
Vejamos, pois.
8. Em processo criminal, e de acordo com o n.º 7 do artigo 32.º da CRP, “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei”. O preceito, acrescentado pela revisão de 1997, tornou explícito o que já antes, por interpretação, poderia concluir-se. Conforme disse o Tribunal no Acórdão nº 24/88 – que julgou inconstitucional a parte da norma do nº 4 da Base V da Lei nº 7/70, de 9 de Junho, que proibia a concessão de assistência judiciária aos ofendidos que quisessem constituir-se assistentes no exercício da acção penal por crimes públicos – já antes de 97 decorria da Constituição, mormente do seu artigo 20.º, a necessidade de, por alguma forma, o legislador ordinário proteger “o interesse do ofendido em contribuir para a sujeição a julgamento do ou dos autores do crime de que foi vítima.” (Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11º volume, p. 531). Assim, ao acrescentar às “garantias de processo criminal” consagradas no artigo 32.º o seu actual nº 7, a quarta lei de revisão constitucional apenas deixou explícito o que antes, por interpretação, já poderia concluir-se: face à CRP, a lei ordinária deve conformar as normas de processo de forma a não desconsiderar o “interesse” do ofendido na realização da justiça penal. É neste contexto que os artigos 68.º a 70.º do Código de Processo Penal definem o estatuto processual do assistente.
A explicitação que, em 1997, se fez da tutela constitucional deste estatuto não pode no entanto obnubilar três aspectos essenciais que marcam a conformação, constitucionalmente devida, das normas de direito processual penal.
O primeiro desses aspectos é o relativo à natureza ineludivelmente pública do processo penal. Não é pelo facto de a Constituição ter passado, depois de 1997, a referir?se expressamente, em sede de “garantias de processo criminal”, à condição jurídico-processual do ofendido, que o referido processo deixou de ser o que era, passando agora a poder identificar-se como um litígio em que a acusação, enquanto “parte”, oponha os seus interesses próprios à outra “parte”, a defesa. Como o Tribunal sempre tem dito (veja-se, por exemplo, o Acórdão nº 358/04, disponível em www.tribunalconstitucional.pt), não sendo o processo penal constitucionalmente configurável como um processo de “partes”, não pode também o textual reconhecimento do direito do ofendido a nele intervir ser lido como se tratasse de uma autorização para conformar as respectivas regras de acordo com uma matriz despublicizada, que a Constituição não acolhe.
Em segundo lugar, o reconhecimento textual expresso deste direito não obnubila o lugar central que a Constituição reserva à tutela processual do arguido. As garantias de processo criminal que, no artigo 32.º, a CRP consagra, são essencialmente as garantias da defesa. E como é em torno da tutela destas últimas que o legislador ordinário organiza as regras de processo – procurando a realização do equilíbrio entre as necessidades emergentes dessa tutela e as exigências decorrentes do imperativo de realização da justiça penal –, nelas, o estatuto do assistente não poderá nunca ser equiparável ao estatuto do arguido. Por assim ser, diz o nº 7 do artigo 32.º que o direito do ofendido a intervir no processo será reconhecido nos termos da lei. Semelhante formulação não é usada pelo texto constitucional quanto ao reconhecimento das garantias de defesa do arguido. Em relação à conformação do estatuto processual do assistente detém, portanto, o legislador ordinário uma margem de liberdade maior do que aquela que a Constituição lhe consente quando se trata de definir o estatuto processual do arguido.
Em terceiro lugar, há que ter em conta que as normas ordinárias relativas a pressupostos processuais se incluem, por via de regra, no âmbito dessa margem de livre conformação. As regras legais que definem estes pressupostos, enquanto condições de admissibilidade, por parte do tribunal, dos actos praticados pelos sujeitos processuais, não podem à partida ser consideradas como agressões ao direito de acesso ao direito (artigo 20.º) e às garantias de processo (artigo 32.º). Pelo contrário: na exacta medida em que visam isso mesmo – a regulação, por parte do legislador ordinário, dos termos em que o tribunal admite os actos praticados pelos sujeitos intervenientes no processo – constituem as referidas regras mecanismos de funcionalização do sistema judiciário no seu conjunto, fazendo parte dele enquanto meios necessários para a realização do direito a uma tutela jurisdicional efectiva e a um processo (penal) côngruo. Ponto é que o conteúdo dessas regras se inscreva ainda nas exigências decorrentes do princípio da proporcionalidade, não transformando os pressupostos processuais em encargos excessivos ou desrazoáveis para aqueles a que se destinam.
Sustenta o recorrente que a decisão recorrida, ao interpretar como interpretou a norma sob juízo, transformou precisamente um pressuposto processual – respeitante aos termos em que é admissível, por parte do tribunal, o requerimento de abertura de instrução a apresentar pelo assistente – num ónus ou encargo excessivo, dado que, no seu entender, o legislador não seria livre para poder dispensar o convite ao aperfeiçoamento de um requerimento [para abertura de instrução] que, não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no nº 3 do artigo 287.º do CPP, não respeitasse as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do mesmo preceito.
É, no entanto, no contexto dos três elementos que atrás enunciámos – a natureza pública que o processo penal detém face à Constituição; o lugar central que nele ocupam as garantias da defesa; a função sistémica prosseguida pelas normas legais que definem pressupostos processuais – que se há-de averiguar se procede, no caso, a tese de inconstitucionalidade, sustentada pelo recorrente.
9. O Código de Processo Penal, no artigo 287.º, faculta ao assistente a possibilidade de requerer a abertura da instrução, nos casos em que o Ministério Público, tendo recolhido prova bastante de se não ter verificado o crime, decida não acusar, proferindo, nos termos do artigo 277.º, despacho de arquivamento do inquérito.
Significa isto que, nessas circunstâncias, o requerimento de abertura de instrução a apresentar pelo assistente equivale a uma acusação. Melhor dito: esse requerimento consubstancia materialmente uma acusação, na medida em que por via dele é pretendida a sujeição do arguido a julgamento por factos geradores de responsabilidade criminal (Acórdão nº 358/04).
Como é bem sabido, em um processo penal que, por imposição constitucional, tenha estrutura acusatória (artigo 32.º, nº 6) e seja primacialmente orientado para a protecção das garantias da defesa, em algum momento há-de o objecto do processo vir a ser fixado com o rigor e a precisão adequados à garantia da independência do juízo e à atempada organização da defesa. Dada a função substancial que cumpre, no processo, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, quando tenha sido proferido pelo Ministério Público despacho de arquivamento – função que, como vimos, é equivalente à da acusação –, é nele [nesse requerimento] que se terá que definir de forma suficientemente precisa o objecto do processo, através, pelo menos, da narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, e da indicação dos preceitos legais ao abrigo dos quais tal pena será aplicável.
Ao determinar que “o requerimento [de abertura de instrução] não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à (…) não acusação”, o nº 2 do artigo 287.º do CPP está a definir um pressuposto de admissibilidade, por parte do tribunal, do acto praticado pelo assistente no processo que, para além de ser – como qualquer outro pressuposto processual – um meio de funcionalização do sistema no seu conjunto, é, pelo seu teor, necessário, face às exigências decorrentes dos princípios fundamentais da Constituição em matéria de processo penal. Face à legitimidade (digamos assim) “reforçada” de que dispõe, portanto, o legislador ordinário para fixar esse pressuposto – exigindo o seu cumprimento por parte do assistente – não se afigura excessiva ou desproporcionada a norma sob juízo, aplicada pela decisão recorrida: a Constituição não impõe um convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, que, fora dos casos previstos no nº 3 do artigo 287.º do CPP, não cumpra os requisitos exigidos pelo nº 2 do mesmo preceito.
Assim é, tanto mais se se considerarem os efeitos que, nos termos do nº 1 do artigo 57.º do CPP, decorrem da apresentação do requerimento de abertura de instrução. Por tal apresentação implicar, ipso facto, a constituição de arguido (com todas as consequências que daí resultam para a protecção das garantias de defesa), não é jurídico?constitucionalmente irrelevante o tempo em que ela é feita. Precisamente por esse motivo fixa a lei um prazo – que é de 20 dias a contar da notificação do arquivamento do inquérito (artigo 287.º, n.º 1 do CPP) – para o assistente apresentar o requerimento de abertura de instrução.
A dilação desse prazo, que seria potenciada pela necessidade de formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente, viria afectar os direitos de defesa do arguido, porquanto a peremptoriedade do prazo funciona em favor do arguido e dos seus direitos de defesa (v., nesse sentido, acórdão do STJ n.º 7/2005, já citado, pág. 6344). Além disso, o convite à correcção dilataria o termo final do desfecho da instrução. A relevância jurídico-constitucional desses dois aspectos do regime legal relaciona-se não apenas com os direitos de defesa do arguido, tal como constitucionalmente tutelados, mas decorre também de valores constitucionalmente atendíveis tais como o princípio da celeridade processual. Mais outra razão, portanto, para que a opção legislativa pela inexigibilidade da formulação de tal convite seja tida como constitucionalmente legítima.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma contida conjugadamente nos n.os 2 e 3 do artigo 287.º do CPP, na interpretação segundo a qual, não respeitando o requerimento de abertura de instrução as exigências essenciais de conteúdo impostas pelo n.º 2 do artigo 287.º do CPP, e não ocorrendo nenhuma das causas de rejeição previstas no n.º 3 do mesmo preceito, cabe rejeição imediata do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente (não devendo antes o assistente ser convidado a proceder ao seu aperfeiçoamento para suprir as omissões/deficiências constatadas).
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso;
c) Condenar o recorrente em custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) UCs.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Dezembro de 2011.- Maria Lúcia Amaral – Ana Maria Guerra Martins – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão.
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