|
Processo n.º 194/11
Plenário
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. O representante do Ministério Público junto do Tribunal Constitucional requereu, nos termos do artigo 82.º da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro (LTC), a apreciação e a declaração, com força obrigatória geral, da inconstitucionalidade da norma constante do n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação segundo a qual a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores consistente em assegurar as pensões de alimentos a menor, judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do Tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.
Legitima o pedido a circunstância de a referida dimensão normativa já ter sido julgada inconstitucional, no âmbito da fiscalização concreta da constitucionalidade, através do Acórdão n.º 54/11 e das Decisões Sumárias n.º 97/11, 98/11 e 101/11, todos transitados em julgado.
2. Notificado nos termos e para os efeitos dos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da LTC, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça declarou não pretender pronunciar-se sobre o requerido.
3. Discutido o memorando apresentado pelo Presidente do Tribunal, cumpre formular a decisão em conformidade com o entendimento que prevaleceu.
II – Fundamentação
4. O preenchimento dos requisitos previstos nos artigos 281.º, n.º 3, da CRP e 82.º da LTC não suscita dúvidas, uma vez que a interpretação normativa que o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional nas quatro decisões invocadas pelo requerente – Acórdão n.º 54/11 e Decisões Sumárias n.º 97/11, 98/11 e 101/11 (disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) – coincide com aquela que agora se pretende venha a ser declarada inconstitucional com força obrigatória geral.
Trata-se do n.º 5 do artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação segundo a qual a obrigação do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores consistente em assegurar as pensões de alimentos a menor, judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do Tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.
5. A Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, atribuiu ao Estado, através do Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, o encargo de assegurar a satisfação dos alimentos a menores residentes em território nacional quando a pessoa judicialmente obrigada a prestá-los não satisfaça as quantias em dívida pelas formas previstas no artigo 189.º da Organização Tutelar de Menores (O.T.M.) e o alimentado não disponha de rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional, nem beneficie, na mesma medida, de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre (artigo 1.º). O Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio de 1999, procedeu à regulamentação desta Lei (foi alterado pelo Decreto-Lei n.º 70/2010, de 16 de Junho, mas somente quando ao modo de determinar o conceito de agregado familiar, os rendimentos a considerar e a capitação de rendimentos, aspectos irrelevantes para o que no presente processo se discute). Completa o regime jurídico da prestação instituída pela Lei n.º 75/98, constituindo o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, gerido em conta especial pelo Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, e regulando outros aspectos do regime previsto naquele primeiro diploma legal, designadamente, os relativos à competência e ao processo de atribuição e de pagamento das prestações, ao direito do Fundo de reembolso sobre o devedor de alimentos e à cessação das prestações.
As prestações a pagar pelo Fundo são fixadas pelo tribunal, no incidente de incumprimento regulado na O.T.M. e após verificada a impossibilidade de obter da pessoa judicialmente obrigada a satisfação das prestações alimentares, não podendo exceder mensalmente, por cada devedor, o montante de 4 UC (artigo 2.º da Lei e artigo 3.º do Decreto-Lei). Na fixação do montante da prestação a satisfazer pelo Fundo deve atender-se à capacidade económica do agregado familiar, ao montante da prestação de alimentos e às necessidades específicas do menor (artigo 2.º da Lei e artigo 3.º do Decreto-Lei). O Fundo fica sub-rogado em todos os direitos dos menores a quem sejam atribuídas prestações, com vista ao respectivo reembolso, podendo promover a respectiva execução judicial, salvo se o devedor fizer prova de manifesta e objectiva incapacidade de pagamento (artigo 6.º, n.º 3 da Lei e artigo 5.º do Decreto-Lei).
Compete ao Ministério Público ou àqueles a quem a prestação de alimentos deveria ter sido entregue requerer, nos próprios autos de incumprimento, que o tribunal fixe o montante que o Estado deve prestar em substituição do devedor (artigo 3º, n.º 1, da Lei). A decisão definitiva será proferida após realização das restantes diligências que o Tribunal entenda indispensáveis e a inquérito sobre as necessidades do menor, perdurando o montante fixado pelo tribunal enquanto se verificarem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cesse a obrigação a que o devedor está vinculado (artigo 3.º, n.º 3, da Lei e artigo 4.º do Decreto-Lei). A quem receber a prestação incumbe a renovação anual da prova de que se mantêm os pressupostos subjacentes à sua atribuição (artigo 3.º, n.º 5, da Lei e artigo 9.º do Decreto-Lei).
Finalmente importa destacar, pela relevância que assume na compreensão do sistema e pelos seus reflexos na questão de constitucionalidade em apreciação, a possibilidade, prevista no n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98, de o juiz proferir decisão provisória de fixação da prestação, após diligências de prova, se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente.
Estes são, no essencial, os traços caracterizadores desta prestação social. A prestação a cargo do Fundo é independente e autónoma, embora subsidiária, da prestação do obrigado a alimentos. Esta é fundada na solidariedade familiar. A prestação pública funda-se no direito de todos à segurança social e, mais imediatamente, na incumbência de protecção da infância a cargo da sociedade e do Estado. A intervenção ou possibilidade de intervenção do Fundo não exonera o devedor de alimentos, designadamente os progenitores que são quem mais avulta neste elenco, dos deveres de prestação decorrentes da responsabilidade parental.
6. Deste regime, interessa à questão a decidir no presente processo o artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, em que se insere a norma questionada, cujo teor é o seguinte:
“Artigo 4.º
Atribuição das prestações de alimentos
1 – A decisão da fixação das prestações a pagar pelo Fundo é precedida da realização das diligências de prova que o tribunal considere indispensáveis e de inquérito sobre as necessidades do menor, oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público.
2 – Para os efeitos do disposto no número anterior, o tribunal pode solicitar a colaboração dos centros regionais de segurança social e informações de outros serviços e de entidades públicas ou privadas que conheçam as necessidades e a situação sócio-económica do alimentado e da sua família.
3 – A decisão a que se refere o n.º 1 é notificada ao Ministério Público, ao representante legal do menor ou à pessoa a cuja guarda se encontre e respectivos advogados e ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social.
4 – O Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social deve de imediato, após a notificação, comunicar a decisão do tribunal competente ao centro regional de segurança social da área de residência do alimentado.
5 – O centro regional de segurança social inicia o pagamento das prestações, por conta do Fundo, no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal.”
A norma objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, é a constante deste transcrito n.º 5 do artigo 4.º do diploma complementar, na interpretação segundo a qual a obrigação do Fundo, consistente em assegurar as pensões de alimentos a menor, judicialmente fixadas, em substituição do devedor, só se constitui com a decisão do Tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.
No essencial, esta norma corresponde o sentido para que, na interpretação do direito infraconstitucional, se inclinou o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 12/2009, do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Julho de 2009, publicado no Diário da República, I Série, de 5 de Agosto de 2009 (publicado também em Cadernos de Direito Privado, n.º 34, Abril/Junho de 2011, pag. 20 e segs., com anotação de J.P. Remédio Marques). Efectivamente, nesse aresto foi entendido, perante decisão divergente das instâncias e do próprio Supremo, que a obrigação de prestação de alimentos a menor, assegurada pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores, em substituição do devedor, nos termos previstos nos artigos 1.º da Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, e 2.º e 4.º, n.º 5 do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, só nasce com a decisão que julgue o incidente de incumprimento do devedor originário e a respectiva exigibilidade só ocorre no mês seguinte ao da notificação da decisão do tribunal, não abrangendo as prestações anteriores.
Cumpre agora ao Tribunal decidir se, no âmbito da modelação do regime jurídico desta prestação pública, o legislador pode determinar que a intervenção do Fundo só cobre o período posterior à decisão judicial que fixe o respectivo montante, não lhe impondo o pagamento das prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão, designadamente o que decorre desde a formulação do pedido até à decisão. Não está, obviamente, em causa a coerência sistémica de uma tal solução, designadamente por comparação com outras prestações públicas que são devidas desde que são requeridas, ainda que precedidas por um procedimento de verificação dos pressupostos, ou com a própria concepção da prestação em causa como subsidiária ou de “garantia” da obrigação alimentar (cfr. artigo 2006.º do Código Civil), mas apenas se a Constituição, designadamente no n.º 1 do artigo 69.º (protecção da infância) e nos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º (direito à segurança social) veda ao legislador que assim configure esta prestação social pública.
7. O dever de prover ao sustento das crianças incumbe, numa primeira linha, aos pais, que têm o “direito e o dever de educação e manutenção dos filhos” (artigo 36.º, n.º 5, da Constituição). Este dever de manutenção compreende o dever de prover ao sustento dos filhos, dentro das capacidades económicas dos pais, até que eles estejam em condições, ou tenham o dever de procurar por si, meios de subsistência. Constitui, aliás, um dos poucos deveres fundamentais consagrados de modo expresso pela Constituição.
Contudo, como se disse no referido Acórdão n.º 54/11, a natural necessidade de protecção das crianças, não podia deixar um Estado que visa a realização da democracia económica e social (artigo 2.º, da Constituição) à margem da tarefa de assegurar o seu crescimento saudável, reconhecendo-se expressamente não só que “as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono” (artigo 69.º, n.º 1, da Constituição), como também que os pais e as mães devem gozar de protecção “na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos” (artigo 68.º, n.º 1, da Constituição).
Deste direito de protecção e dos correlativos deveres de prestação e de actividade legislativa não resulta que o Estado tenha de assumir, por imposição constitucional, uma posição jurídica de garante da prestação alimentar dos progenitores. A prestação pública realiza um típico direito social derivado do n.º 1 do artigo 69.º da CRP, um direito especial no campo do direito à segurança social (artigo 63.º, n.ºs 1 e 3, da CRP), num domínio em que se entrecruzam dois tipos de responsabilidade ou deveres de protecção, cada um com a sua lógica própria.
Como típico direito social, na dimensão em que se traduz na pretensão de prestações materiais a cargo do Estado, este direito das crianças é um “direito sob reserva do possível”, não sendo directamente determinável no seu quantum e no seu modo de realização a nível da Constituição. O limite de conformação em que o direito de protecção das crianças mediante prestações fácticas ou pecuniárias a cargo do Estado é resistente ao legislador só pode (judicialmente) alcançar-se a partir de outros referentes constitucionais, de natureza principial, em que avulta o princípio da dignidade da pessoa humana. Com efeito, salvo quando a solução afecte o núcleo já realizado de concretização legislativa radicado na consciência jurídica geral como núcleo essencial do direito considerado, ao legislador democrático tem de ser preservada uma larga margem na realização ou conformação dos direitos sociais, só acessível à censura por parte da justiça constitucional – na sua dimensão de “direitos positivos”, entenda-se – quando e na medida em que puser em causa os princípios estruturantes do Estado de Direito. Como diz Vieira de Andrade (in Justiça Constitucional, n.º 1, Jan./Mar. 2004, pág. 27) «…[a] avaliação do nível de desenvolvimento social do país, as concepções estruturais de organização da sociedade política, em especial do papel reconhecido às famílias, associações e instituições, a articulação entre os diversos modos ou formas de organização da segurança social e da solidariedade, as opções entre instrumentos alternativos – prestações directas, créditos, bonificações, ajuda na busca de emprego, bolsas de formação, etc. –, e, apesar de tudo, em certa medida, as inevitáveis opções orçamentais e de afectação de recursos escassos – todas estas considerações tornam a tarefa do legislador muito mais que uma mera concretização jurídica da Constituição “furtada à disponibilidade do poder político”».
É certo que neste domínio particular da protecção da infância, pela insuperável debilidade do titular, pela sua incapacidade natural de encontrar por si alternativas para satisfazer necessidades vitais comprometidas pelo incumprimento da obrigação alimentar, pela urgência e pelas consequências, no plano social e pessoal, da insatisfação imediata das necessidades de uma personalidade em formação, o grau de protecção constitucional é mais intenso e o correlativo dever de prestação por parte do Estado mais determinável no seu conteúdo mínimo. Designadamente, no aspecto que agora interessa e que consiste na exigência de que a prestação pública seja idónea a proporcionar resposta temporalmente adequada à necessidade ou situação de carência que a justifica. Acompanha-se o Acórdão n.º 54/11 quando diz:
“Independentemente do quantum da prestação estatal de alimentos que vier concretamente a ser fixada pelo tribunal – matéria que extravasa o objecto do presente recurso de constitucionalidade –, coloca-se a questão da necessidade de assegurar um mínimo de eficácia jurídica na garantia de satisfação desta obrigação de alimentos, sob pena de violação do direito fundamental à segurança social (Vide, neste sentido, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 509/2002, em ATC, 54.º vol., pág. 19).
Para assegurar a satisfação deste direito fundamental nestas situações não basta criar um qualquer mecanismo de apoio aos menores em relação aos quais o dever parental de prover à sua subsistência é incumprido, é também necessário que esse mecanismo esteja construído de modo a poder dar uma resposta eficaz a essas situações.
Estando nós perante a atribuição de prestações pecuniárias regulares, destinadas a custear as despesas dos menores, a questão temporal da satisfação dessas prestações é essencial. O sistema de segurança social deve garantir uma adequação temporal da resposta, concedendo oportunamente as prestações legalmente previstas para uma satisfatória promoção das condições dignas de vida das crianças (vide, enunciando este princípio da segurança social, João Carlos Loureiro, em “Proteger é preciso, viver também: a jurisprudência constitucional portuguesa e o Direito da Segurança Social”, in XXV Anos de Jurisprudência Constitucional Portuguesa, pág. 383, da ed. de 2009, da Coimbra Editora). E este objectivo só se mostra alcançado, por um lado, se as prestações sociais atribuídas aos menores cobrirem, o mais aproximadamente possível, todo o período em que se verifica o incumprimento por parte dos pais do dever de proverem à subsistência dos seus filhos, e por outro lado, se existir um mecanismo que permita acorrer, num curtíssimo espaço de tempo, aos casos de necessidade urgente”.
E também se subscreve o ponto de partida desse acórdão quando afirma que “sendo os beneficiários desta prestação social menores privados de meios de subsistência, estamos num universo em relação ao qual os imperativos de protecção social constitucionalmente previstos se verificam na sua máxima expressão”. Efectivamente, como se escreveu no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 306/05, “ (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) a insatisfação do direito a alimentos atinge directamente as condições de vida do alimentando e, ao menos no caso das crianças, comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna” (em ATC, 62.º vol., pág. 649).
8. Porém, não pode retirar-se daqui que o conteúdo mínimo do direito social em causa ou, na sua dimensão objectiva, o especial mandamento constitucional de protecção das crianças com vista “ao seu desenvolvimento integral”, só se cumpra se existir uma prestação pecuniária pública com esta natureza e se ela for devida (pelo menos) desde o momento em que o pedido é formulado. Com efeito, na concretização dos direitos sociais enquanto direitos positivos, mesmo onde haja maior vinculação do legislador, dificilmente deixa de subsistir um espaço de conformação legislativa porque, geralmente, não há uma medida certa, nem uma forma única, de cumprimento do imperativo constitucional, ficando a sua realização positiva, além da reserva do financeiramente possível, sujeita a uma margem de escolha dos meios, formas e prioridades por parte dos titulares do poder político. Deste modo, não se tratando de conteúdo directamente determinado pela Constituição, importa ver se, no conjunto do regime instituído pelo legislador, há mecanismos capazes de proporcionar aquele grau de protecção para a situação de carência gerada pelo incumprimento da obrigação alimentar sem o qual poderia discutir-se se é preservado o princípio da dignidade da pessoa humana.
Ora, este dever de protecção que pode extrair-se do n.º 1 do artigo 69.º e do n.º 3 do artigo 63.º da Constituição relativamente a situações de incumprimento por parte do obrigado a alimentos não é, no que respeita às prestações públicas pecuniárias ou de tradução pecuniária a favor do menor – note-se que o dever de protecção também exige do legislador medidas eficazes para que os progenitores cumpram o dever fundamental manutenção dos filhos (prestações legislativas; cfr. artigos 4.º e 27.º da Convenção sobre os Direitos da Criança) –, que o Estado se substitua na obrigação do progenitor, ainda que a título subsidiário e apenas numa certa medida, mas o de que proveja à situação de carência impeditiva de uma existência condigna ameaçada por esse incumprimento ou de que essa negligência ou impossibilidade de cumprimento das responsabilidades parentais é um dos factos geradores. Existência condigna, é bem certo, que não se refere à simples sobrevivência fisiológica ou psíquica, mas que deve levar em consideração que se trata de proteger o desenvolvimento de uma personalidade em formação (“direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral”). Todavia, esta elevação do padrão de exigência não afasta o reconhecimento do amplo poder de conformação do legislador perante a indeterminação típica das normas constitucionais relativas ao direito social em causa e o carácter multímodo das suas vias de concretização. Face a tal amplitude da discricionariedade legislativa, o Tribunal só poderia concluir pela violação do mandado de protecção perante a demonstração inequívoca da insuficiência ou inadequação manifesta das opções legislativas face ao fim ou ao sentido das normas constitucionais consideradas. Juízo que tem sempre de estar atento à existência no sistema de instrumentos flanqueadores da aparente inadequação de cada aspecto, isoladamente considerado, da intervenção prestacional pública em análise.
9. Efectivamente, contra a solução normativa em apreciação tem-se argumentado que ela acaba por comprometer a eficácia da satisfação das necessidades básicas do menor alimentando, na medida em que “se traduz na aceitação de um novo período, de duração incerta, de carência continuada de recebimento de qualquer prestação social de alimentos, a cumular a um anterior período – mais ou menos longo – em que já se revelou a frustração total da solidariedade familiar”. Juízo este que não seria afastado pela possibilidade de fixação provisória da prestação pública “uma vez que esta decisão provisória, não só não abrange todas as situações em que o menor não tem assegurada a sua subsistência pelos obrigados principais, apenas podendo ser utilizada nos casos de excepcional urgência, como também o momento da exigibilidade das prestações sociais assim decretadas não deixa de se revelar incerto e sempre tardio, uma vez que essa decisão provisória também só é decretada já no decurso do processo de apuramento da necessidade da intervenção subsidiária do Estado, podendo igualmente ser precedida de diligências de prova de execução temporal incerta”.
Não parece que esta crítica proceda.
Em primeiro lugar, deve notar-se que a retroacção da condenação, impondo ao Fundo o pagamento das prestações correspondentes ao período decorrido entre a formulação do pedido e a decisão final, não seria meio idóneo para satisfazer, por si mesma, as necessidades de manutenção do menor no momento a que tais prestações se referem (nemo alitur in praeteritum). Isto é, embora vantajosa para os interesses do menor, não satisfaz a exigência de protecção temporalmente adequada, que é o aspecto que pode elevar-se a parâmetro judicialmente atendível face ao problema que está em consideração. As necessidades vitais do menor tiveram de ser satisfeitas com outros recursos, normalmente mediante esforço acrescido do progenitor (ou da pessoa) que o tem à sua guarda, porventura com privações na satisfação das necessidades próprias. Mas, a cobertura, mediante as prestações do Fundo, do tempo entretanto passado só pode servir como mecanismo jurídico de compensação, não como meio efectivo de acorrer àquelas necessidades próprias do menor no período a que respeitam cuja insatisfação pode tornar-se incompatível com a dignidade da pessoa humana. Se o menor, em consequência do incumprimento do dever de alimentos por parte do progenitor, sofreu privações dessa natureza já não será a retroacção das prestações a cargo do Fundo que pode remediá-las. Assim sendo, não constituindo sequer meio que possa reivindicar-se inteiramente idóneo para obstar à colocação do menor em situação incompatível com a dignidade da pessoa humana, não pode afirmar-se com segurança – com o grau de evidência exigida para a censura judicial das opções legislativas na concretização dos direitos sociais, na sua dimensão positiva – que esse efeito retroactivo da decisão seja imposto por essa “última barreira” contra a discricionariedade legislativa no âmbito dos direitos sociais que constitui o limite mínimo do dever de protecção imposto ao Estado, designadamente no domínio das prestações de segurança social não contributiva.
O que não significa que esse seja o único princípio operante no controlo judicial da observância dos deveres estatais de promoção positiva dos direitos sociais. Como diz Jorge Reis Novais, Direitos Sociais. Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais, Coimbra, 2010, pag. 306 “(…) ainda que de forma lateral, a margem de decisão política dos poderes públicos pode ser significativamente reduzida através da intervenção dos frequentemente chamados guardas de flanco dos direitos sociais, como sejam o princípio da proibição do excesso, o princípio da protecção da confiança e, sobretudo, o princípio da igualdade (…)”. Mas nenhum destes princípios pode ser utilmente invocado a propósito da solução normativa submetida a apreciação.
E, ao invés, afigura-se que a possibilidade de fixação provisória de uma prestação pública é um meio adequado – um dos meios adequados, não competindo ao Tribunal ir mais além – para ocorrer em tempo real a necessidades imperiosas, àquelas necessidades cuja não satisfação pelo incumprimento do progenitor do dever de alimentos pode pôr em risco ou, pelo menos, comprometer o seu desenvolvimento integral. Mais do que uma medida que cubra a posteriori todo o tempo de carência, a adopção de medidas provisórias, contemporâneas da necessidade de sustento permitirá ocorrer num curto espaço de tempo a situações de especial urgência, proporcionando-lhes remédio ou alívio à medida que elas surgem.
É certo que uma medida dessa natureza não cobre todo o tempo do incumprimento por parte do progenitor, nem se aplica a todas as situações de incumprimento do obrigado a alimentos. Aliás, mesmo com a retroacção das prestações ao momento da formulação do pedido de condenação do Fundo também haveria um período que, em regra, ficaria a descoberto, por não haver coincidência entre o vencimento da prestação não satisfeita e a dedução do incidente de condenação do Fundo. Mas não é possível conferir à incumbência constitucional de protecção da infância por parte do Estado uma tal extensão de cobertura temporal, cuja exigência parece pressupor uma lógica de intervenção substitutiva das responsabilidades parentais que se não retira por interpretação do artigo 69.º, n.º 1 e 68.º, nº 1 da Constituição. A Constituição não investe o Estado na posição jurídica de garante das concretas obrigações alimentares dos progenitores. Os deveres dos poderes públicos correlativos ao direito à protecção infantil impõe a adopção das medidas legislativas e administrativas, inclusivamente mediante prestações de segurança social (artigo 63.º, n.º3) com vista a prosseguir, conjuntamente com a “sociedade”, o objectivo do integral desenvolvimento das crianças. Desenvolvimento integral que, “assenta em dois pressupostos: por um lado, a garantia de dignidade da pessoa humana (cfr. artigo 1.º), elemento “estático” mas fundamental para o alicerçamento do direito ao desenvolvimento; por outro lado, a consideração da criança como pessoa em formação, elemento dinâmico, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, IV edição revista, Coimbra, 2007, pag 869). O Estado não intervém como prestador por causa do incumprimento da obrigação alimentar judicialmente fixada, mas por causa da situação de carência para que esse incumprimento contribui. Daí a “condição de recursos” de que a prestação social em causa está dependente.
Em segundo lugar, a circunstância de a fixação provisória da prestação pública poder ser precedida de diligências de prova não é de molde a comprometer-lhe intoleravelmente a aptidão para, em termos de razoável praticabilidade e normal actuação dos diversos protagonistas, permitir resposta pública temporalmente adequada às situações carecidas de providências urgentes. As diligências de prova devem ser reduzidas ao mínimo compatível com um juízo prima facie acerca dos pressupostos da decretação provisória da prestação, devendo o n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 75/98 ser aplicado com a flexibilidade inerente ao facto de prover a uma situação de urgência qualificada num processo que já tem natureza urgente (princípio da adequação formal). É certo que há sempre uma demora mínima, praticamente ineliminável, inerente à circunstância de o reconhecimento do direito ser dependente de um procedimento. Mas que, em termos de formalidades processuais ou de exigências probatórias – que, além do grau de demonstração de primeira aparência inerente à natureza cautelar da decisão provisória e das exigências gerais de probidade processual, devem ainda levar em conta que a omissão de factos relevantes para a concessão da prestação sujeita o requerente a procedimento penal por crime de burla (artigo 5.º, n.º 2, da Lei n.º 75/98) – não impede as entidades com legitimidade de recorrer em tempo útil aos meios que assegurem a efectividade do direito social em causa. Aliás, uma das entidades legitimadas para pedir a atribuição da prestação pública a favor do menor é o Ministério Público, magistratura sobre a qual impende o dever funcional de impulsionar a decisão provisória quando tal se justifique, por essa via cumprindo também o Estado (por instrumentos legislativos e organizacionais) os deveres de protecção que lhe incumbem. O eventual não uso ou a aplicação prática deficiente dos meios processuais existentes não justifica o recurso sucedâneo ao juízo de inconstitucionalidade da norma agora em causa.
Tanto basta para julgar improcedente a crítica de que o diferimento da prestação (definitiva) a cargo do Fundo para o momento em que é proferida a decisão judicial, não sendo devidas prestações correspondentes ao período decorrido entre o momento da formulação do pedido e essa decisão, priva o menor de protecção temporalmente adequada por parte do Estado, violando o disposto no n.º 1 do artigo 69.º e nos n.ºs 1 e 3 do artigo 63.º da Constituição.
10. Embora não tenha sido parâmetro invocado nas decisões do Tribunal que justificam o pedido de declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, mas porque se trata de fundamento de que se socorreram algumas decisões judiciais que recusaram aplicação ao critério normativo em causa, importa referir que a norma em apreciação também não viola o princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.
Estamos perante uma prestação social que é atribuída mediante a verificação de pressupostos, designadamente quanto à intervenção do Fundo e à chamada “condição de recursos”, objectivamente fixados e iguais para todos os que se encontrem nessas condições. É certo que as vicissitudes processuais podem conduzir a que menores em situação de necessidade substancialmente semelhante venham a receber tratamento diferenciado. Mas, como diz Remédio Marques (loc. cit. p.36), “...pelo seu carácter de subsidiariedade, o seu nascimento e a sua exigibilidade está necessariamente dependente de um conjunto de factores verificáveis a montante: v.g. a inacção dos representantes legais dos menores (ou do próprio Ministério Público) em fazer condenar o obrigado legal a prestar alimentos ao menor; a tentativa de cobrança coerciva dos montantes em que este tiver sido condenado; a dedução do incidente de incumprimento; o chamamento do Fundo de Garantia ao processo. As situações de desigualdade decorrem da própria situação da vida concretamente considerada e não de um critério normativo fixado legislativamente ou extraído por via interpretativa com base em tais situações da vida”.
E também não viola o princípio da igualdade a circunstância de, em outras prestações sociais, com diferentes pressupostos e diverso procedimento de atribuição (v. gr., o rendimento social de inserção – n.º 6 do artigo 15.º da Lei n.º 13/2003, de 21 de Maio), a prestação pública cobrir, em regra, todo o tempo posterior ao pedido. Trata-se de situações não comparáveis. A igualdade não implica a simetria de soluções normativas adoptadas para questões diversas, ainda que isso pudesse conferir maior harmonia ao sistema jurídico no seu conjunto.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação de que a obrigação de o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores assegurar as prestações a menor judicialmente fixadas, em substituição do devedor de alimentos, só se constitui com a decisão do tribunal que determine o montante da prestação a pagar por este Fundo, não sendo exigível o pagamento de prestações respeitantes a períodos anteriores a essa decisão.
Lisboa, 22 de Setembro de 2011. – Vítor Gomes – Carlos Fernandes Cadilha – Gil Galvão – Maria Lúcia Amaral – Maria João Antunes – Carlos Pamplona de Oliveira – Ana Maria Guerra Martins – José Borges Soeiro – João Cura Mariano (vencido pelas razões constantes da declaração de voto que junto) – Joaquim de Sousa Ribeiro (vencido, de acordo com a declaração anexa) – J. Cunha Barbosa (vencido, por entender que a norma sindicanda é inconstitucional com base nos fundamentos constantes do Ac. 54/2011, quanto à decisão de mérito aí alcançada, que, entre outras decisões, deu origem ao presente recurso). – Catarina Sarmento e Castro (vencida, de acordo com a declaração de voto em anexo) – Rui Manuel Moura Ramos (Vencido, nos termos do acórdão n.º 54/2011, e pelo essencial das razões aduzidas nas declarações de voto dos Senhores Conselheiros Cura Mariano e Sousa Ribeiro.
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi da posição maioritária por entender que deveria ter sido declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação sob fiscalização, uma vez que a mesma compromete o cumprimento pelo Estado do mandado constitucional de protecção das crianças, com vista ao seu desenvolvimento integral, nas situações em que se encontram judicialmente fixados alimentos a um menor.
Não oferece dúvidas que o disposto nos artigos 68.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, da Constituição, impõe que o Estado actue em apoio das crianças, quando a pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos a um menor não os satisfaça e o alimentado não tenha um rendimento líquido suficiente para se auto-sustentar, nem beneficie nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontre.
Na verdade, nestes casos de frustração do cumprimento da obrigação de alimentos no quadro da solidariedade familiar, os menores incorrem numa situação grave de falta ou diminuição de meios de subsistência, que coloca em risco o seu direito a uma vida digna.
Da imposição constitucional do Estado dar uma resposta eficaz a estes ditames, nestas situações, apercebeu-se o legislador ordinário que, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio, que veio regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, escreveu:
“A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (artigo 69.º). Ainda que assumindo uma dimensão programática, este direito impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção. Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (artigo 24.º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.
…
A evolução das condições sócio-económicas, as mudanças de índole cultural e a alteração dos padrões de comportamento têm determinado mutações profundas a nível das estruturas familiares e um enfraquecimento no cumprimento dos deveres inerentes ao poder paternal, nomeadamente no que se refere à prestação de alimentos, circunstância que tem determinado um aumento significativo de acções tendo por objecto a regulação do exercício do poder paternal, a fixação de prestação de alimentos e situações de incumprimento das decisões judiciais, com riscos significativos para os menores.
De entre os factores que relevam para o não cumprimento da obrigação de alimentos assumem frequência significativa a ausência do devedor e a sua situação sócio-económica, seja por motivo de desemprego ou de situação laboral menos estável, doença ou incapacidade, decorrentes, em muitos casos, da toxicodependência, e o crescimento de situações de maternidade ou paternidade na adolescência que inviabilizam, por vezes, a assunção das respectivas responsabilidades parentais.
Estas situações justificam que o Estado crie mecanismos que assegurem, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito a alimentos.
Ao regulamentar a Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, que consagrou a garantia de alimentos devidos a menores, cria-se uma nova prestação social, que traduz um avanço qualitativo inovador na política social desenvolvida pelo Estado, ao mesmo tempo que se dá cumprimento ao objectivo de reforço da protecção social devida a menores.”
O legislador dispõe de ampla liberdade na escolha dos meios de intervenção do Estado em apoio das crianças que se encontrem em situação de risco, mas esses meios tem que ser suficientes, sob pena dos referidos direitos constitucionais serem incumpridos, por violação do princípio da proibição do défice de tutela.
Não é fácil apurar o nível de suficiência exigido, mas existirá seguramente um mínimo social que o Estado deve garantir, tendo em consideração o nível de desenvolvimento civilizacional, os recursos públicos e as condições que, segundo os valores dominantes, são indispensáveis a uma vida digna.
Após se terem previsto mecanismos coercivos de cobrança das prestações pecuniárias incumpridas pelo devedor de alimentos (artigo 189.º, da O.T.M.), quando se frustram essas diligências optou-se por atribuir uma prestação mensal ao menor em causa, a pagar por um Fundo específico estadual, sendo essa quantia entregue à pessoa à guarda do qual o menor se encontra.
Ora, para avaliar a suficiência desta medida são parâmetros fulcrais não só os requisitos estabelecidos para a atribuição das prestações e o montante destas, mas também os momentos em que o Estado passa a ser responsável pelo seu pagamento, ou seja o da constituição da respectiva obrigação, e o da sua exigibilidade.
Na verdade, estando nós perante a atribuição de prestações pecuniárias regulares, destinadas a custear as despesas dos menores, a questão temporal da satisfação dessas prestações é essencial. O sistema de segurança social deve garantir uma adequação temporal da resposta, concedendo oportunamente as prestações legalmente previstas para uma satisfatória promoção das condições dignas de vida das crianças. E este objectivo só se mostra alcançado se as prestações sociais atribuídas aos menores cobrirem, o mais aproximadamente possível, todo o período em que se verifica o incumprimento de quem tem o dever de prover à sua subsistência.
Estando em causa menores privados de meios de subsistência necessários ao seu desenvolvimento, esta é uma situação em que não há razões que possam justificar uma resposta tardia do Estado na defesa de condições dignas de vida destes seus cidadãos.
Na interpretação normativa sob fiscalização apenas está em jogo o momento da constituição da obrigação do Estado pagar uma prestação mensal que garanta à pessoa a cuja guarda o menor se encontre os meios suficientes para esta prover a um saudável crescimento do menor.
Ao fixar o momento de constituição da obrigação do Estado pagar essa prestação mensal na data em que é proferida a decisão que apura a verificação dos requisitos para a sua atribuição, a solução normativa em apreciação compromete a eficácia jurídica da satisfação das necessidades básicas do menor alimentando, na medida em que a mesma se traduz na aceitação de sucessivos períodos, de duração incerta, de carência continuada de recebimento de qualquer prestação, depois de se ter revelado a frustração da solidariedade familiar.
Após a pessoa obrigada a alimentos ter falhado no cumprimento desta obrigação, decorre normalmente um primeiro período de consolidação da situação de inadimplemento, um segundo período em que se tenta infrutiferamente a cobrança coerciva das quantias em dívida e depois um terceiro período em que o tribunal apura a verificação dos requisitos legais para a atribuição de uma pensão social ao menor.
É uma soma de tempos que se prolongam por vários meses, ultrapassando frequentemente um ano, cuja existência é incompatível com uma avaliação de suficiência da medida de protecção escolhida pelo legislador.
Note-se que não cabe a este Tribunal apontar soluções alternativas, nem verificar se as mesmas cumpririam o referido nível de suficiência, nomeadamente a fixação de prestações cuja obrigação retroagisse à data da formulação no tribunal do pedido de atribuição da pensão social. Para que se profira um juízo de inconstitucionalidade basta verificar que a norma sob fiscalização não atinge o mínimo social que o Estado está obrigado a garantir, não lhe cumprindo apontar soluções alternativas.
O presente acórdão vê no procedimento cautelar estabelecido no artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, a salvaguarda do conteúdo mínimo dos direitos constitucionais referidos.
Nesse preceito estabelece-se que, após a dedução do pedido de pagamento da pensão ao menor pelo Fundo, se for considerada justificada e urgente a pretensão do requerente, o juiz, após diligências de prova, proferirá decisão provisória de atribuição da pensão.
Em primeiro lugar, este procedimento abreviado apenas abrange os casos urgentes, deixando de fora todas as outras situações que não revelem essa premência.
Ora, tendo em consideração que as prestações sociais apenas são atribuídas às crianças que não tenham um rendimento líquido superior ao salário mínimo nacional nem beneficiem nessa medida de rendimentos de outrem a cuja guarda se encontrem (artigo 1.º, do Decreto-Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro), as situações de urgência, diferenciadoras das demais, serão aquelas em que seguramente estará em causa a própria sobrevivência fisiológica do menor.
Ora, no século XXI, um Estado da Europa Ocidental, integrante da Comunidade Europeia, que tem por objectivo uma democracia social (artigo 2.º, da Constituição) não pode satisfazer-se com a garantia da mera sobrevivência fisiológica das crianças a quem faltou a solidariedade familiar.
Exige-se-lhe mais.
O Estado tem que garantir o desenvolvimento integral em condições dignas dessas crianças, proporcionando-lhe atempadamente as condições para um crescimento saudável.
Daí que, desde logo, a mera contemplação dos casos urgentes por um procedimento mais expedito, não seja suficiente para retirar ao actual sistema de apoio a estas crianças, na interpretação sob fiscalização, a qualificação de deficitário, tendo em conta as exigências ditadas pelas actuais concepções sociais.
Além disso, mesmo nos casos urgentes, dos três períodos de tempo de carência acima apontados, o único que é reduzido é o último – aquele em que o tribunal apura a verificação dos requisitos legais para a atribuição de uma pensão social ao menor – sem que essa redução seja significativa, uma vez que o tribunal, tal como sucede no processamento comum, não deixa de estar obrigado a alguma demora com a realização das diligências para apuramento da situação da criança, pelo que a previsão de tal processamento não determina um encurtamento do tempo de intervenção do Estado que o permita considerar como razoável, face às necessidades que visa acudir.
Não se revelando, pelas razões enunciadas, que a previsão do procedimento cautelar previsto no artigo no artigo 3.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro, seja suficiente para o sistema de segurança social, na interpretação sob fiscalização, garantir uma adequação temporal da resposta à situação de carência das crianças a quem faltou a solidariedade familiar, deveria essa interpretação normativa ser declarada inconstitucional, com força obrigatória geral, na sequência das anteriores pronúncias deste Tribunal. – João Cura Mariano.
DECLARAÇÃO DE VOTO
O que fundamentalmente me afasta do acórdão a que esta declaração se anexa é o seu pressuposto de base, bem expresso no seguinte passo: «Como típico direito social, na dimensão em que se traduz na pretensão de prestações materiais a cargo do Estado, este direito das crianças é um “direito sob reserva do possível”, não sendo directamente determinável no seu quantum e no seu modo de realização a nível da Constituição».
Esta posição ignora a especificidade do bem jurídico que o Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores tutela. Trata-se dos alimentos devidos a uma categoria de cidadãos incapazes de os obter por si, com incumprimento, pelos obrigados, do dever de os prestar. Como tal, está em causa a satisfação de necessidades vitais, objecto do direito a um mínimo de existência condigna. Ora, este direito goza de um estatuto especial dentro dos direitos sociais, sendo dotado de um grau de fundamentalidade praticamente equivalente ao dos direitos pessoais. Tanto assim que não falta quem o integre no arco normativo do direito à vida (cfr., por exemplo, GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa anotada, I, 4.ª ed., pág. 451). Visão, esta, de que muito se aproximou o Acórdão n.º 306/2005 (citado, aliás, no presente Acórdão), ao exprimir a ideia de que a insatisfação do direito a alimentos de menores “comporta o risco de pôr em causa, sem que o titular possa autonomamente procurar remédio, se não o próprio direito à vida, pelo menos o direito a uma vida digna”.
O ponto de partida desta decisão, de que estamos perante um “típico direito social”, leva à formulação de um discurso argumentativo desajustado da particular natureza do direito em causa. Não há que falar, a seu respeito, de uma “reserva do possível”. Isso mesmo quis acentuar o Acórdão n.º 509/2002, sobre o rendimento social de inserção, ao reconhecer uma garantia constitucional a um mínimo de existência condigna, de que faz derivar, citando GOMES CANOTILHO “uma imediata pretensão dos cidadãos” [itálico meu], “no caso de particulares situações sociais de necessidade”.
A solução normativa impugnada não satisfaz esta garantia, durante o período, que pode ser dilatado, de pendência da acção. A prevista possibilidade de fixação provisória de uma prestação não é um meio cabalmente adequado a suprir a carência de meios, como referem o Acórdão n.º 54/2011 e a declaração de voto do Conselheiro Cura Mariano apensa ao presente Acórdão. Não é por acaso que o regime do rendimento social de inserção cobre, em regra, todo o tempo posterior ao pedido. Um regime idêntico – que corresponde, aliás, a uma regra comum, de que ninguém pode ser prejudicado na efectivação dos seus direitos pela necessidade de intentar uma acção para os ver reconhecidos – não conferiria apenas “maior harmonia ao sistema jurídico no seu conjunto”. Na falta de outra medida perfeitamente equivalente, daria plena satisfação à garantia constitucional a um mínimo de sobrevivência. – Joaquim de Sousa Ribeiro
DECLARAÇÃO DE VOTO
Divergi da posição maioritária, por considerar que deveria ter sido declarada, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º, n.º 5 do Decreto-lei n.º 164/99, de 13 de Maio, na interpretação em apreciação, com os fundamentos encontrados no Acórdão n.º 54/2011, decisão que, então, votei, nomeadamente, por entender estar em causa, não uma qualquer prestação social, mas um apoio à criança, em casos em que esta se encontra em situação de grave desprotecção. Nestas circunstâncias, não se me afigura suficiente, para assegurar atempadamente condições dignas às crianças em situação de carência gerada pelo incumprimento da obrigação alimentar, o mecanismo cautelar chamado à argumentação do presente projecto (veja-se, designadamente, as razões apontadas na declaração de voto do senhor Conselheiro Cura Mariano), razão pela qual manteria a posição que subscrevi no Acórdão citado. – Catarina Sarmento e Castro.
|