|
Processo n.º 470/11
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
Por acórdão proferido em 20 de Setembro de 2010, no Processo Comum (Tribunal Colectivo) n.º 68/10.1PBLRA, do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Leiria, A. foi condenado na pena de cinco anos e seis meses de prisão, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, 23.º e 131.º, todos do Código Penal.
Inconformado, o Arguido suscitou uma nulidade e recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 26 de Janeiro de 2011, decidiu:
- Dar como provado o seguinte facto: “O arguido, para ressarcimento parcial dos danos causados ao ofendido, em virtude dos factos relatados e tidos por provados nos autos, pagou-lhe, em 16 de Setembro de 2010, a quantia de €2.500,00”;
- Julgar improcedentes, quer o pedido de nulidade, quer o recurso interposto pelo arguido.
O Arguido interpôs recurso deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido, por despacho de 30 de Março de 2010, do Desembargador Relator.
O Arguido reclamou deste despacho para o Supremo Tribunal de Justiça que, por decisão de 27 de Abril de 2011, do seu Vice-Presidente, indeferiu a reclamação, com os seguintes fundamentos:
«[…]
3. No domínio dos recursos e das normas que disciplinam a competência em razão da hierarquia, a redacção do art. 432.º, n.º 1, alínea b), do CPP dispõe que há recurso para o Supremo Tribunal das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas em recurso pelas relações nos termos do artigo 400.º.
E deste preceito destaca-se a alínea f) do n.º 1 do mesmo preceito que estabelece serem irrecorríveis «os acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de primeira instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».
O acórdão da Relação confirmou a decisão da 1.ª instância, que condenara o arguido na pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pela prática do crime enunciado – confirmação decisória total, no que se refere à qualificação, solução jurídica e medida da pena.
E havendo conformidade, como resulta directamente da norma - no caso há conformidade total - o recurso só é admissível se for aplicada pena superior a 8 anos de prisão.
Assim sendo, não é admissível recurso do acórdão condenatório ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP.
E o direito ao recurso, garantido como direito de defesa no n.º 1 do art. 32.º da Constituição, basta-se com um grau de recurso, ou segundo grau de jurisdição, que o reclamante já utilizou ao recorrer para o Tribunal da Relação. É esta a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional (cf., v.g. Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 189/01 e 377/2003 de 3 de Maio de 2001 e de 15 de Julho de 2003, respectivamente).
Por último, no respeitante à invocação de que o despacho reclamado não apreciou os argumentos apresentados no recurso interposto para o STJ, designadamente, a inconstitucionalidade da alínea f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, por violação do art. 32.º da CRP, é questão de que não se pode tomar conhecimento, por ser estranha ao objecto e fundamentos da reclamação, nos termos do art. 405.º, n.º 1, do CPP.
4. Nestes termos, indefere-se a presente reclamação.»
O Arguido recorreu então para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, pedindo que se declare inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal (CPP), interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado.
O Arguido apresentou alegações, concluindo da seguinte forma:
«1. O presente recurso vem interposto do, aliás muito douto, despacho proferido pelo Exmo. Senhor Presidente do STJ que indeferiu a reclamação apresentada pelo ora Recorrente do despacho de não admissão de recurso proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra sobre requerimento de interposição de recurso do acórdão daquele mesmo Tribunal da Relação que confirmou a condenação da 1.ª Instância na pena de 5 anos e seis meses de prisão;
2. O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que confirmou a decisão de 1.ª instância apreciou, pela primeira vez, um facto que o Tribunal de 1.ª instância não havia tomado em consideração quando proferiu a sentença de condenação;
3. Efectivamente, o Tribunal da Relação veio a dar como provado um facto novo – logo, não apreciado em 1.ª instância – que é o seguinte:
4. “O arguido, para ressarcimento parcial dos danos causados ao ofendido, em virtude dos factos relatados e tidos por provados nos autos, pagou-lhe, em 16 de Setembro de 2010, a quantia de 2.500,00”;
5. E, nessa medida, conheceu ex novo dum facto não apreciado em 1.ª instância;
6. O facto novo fixado pelo Tribunal da Relação está expressamente contemplado no art. 72-1-2-c), CP, o que imporia ao tribunal uma atenuação especial da pena;
7. É que o facto novo só foi apreciado uma única vez e apenas pelo Tribunal da Relação;
8. Não foi apreciado em 1.ª instância;
9. E isso faz toda a diferença;
10. Até porque não se trata dum facto de valor inócuo – apesar de o ter sido para o Tribunal da Relação – que merece e deve ser apreciado num duplo grau de jurisdição;
11. Assim, é inconstitucional a norma do artigo 400º-1,-f), CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncia pela primeira vez sobre um facto novo, com influência na determinação e medida da pena, que era desconhecido na primeira instância e que não foi apreciado em primeira instância;
12. Em manifesta violação do direito constitucional ao recurso previsto no art. 32-1, Constituição;
13. E em manifesto prejuízo dos direitos, liberdades e garantias do ora Recorrente;
14. Com graves consequências, inclusive de denegação de justiça, por coarctar o direito de ver reapreciado pelo tribunal superior uma decisão que afecta de forma determinante a liberdade do arguido e que só foi apreciado por uma das instâncias.»
15. Até porque o Tribunal Constitucional tem admitido o direito a recurso para o STJ de decisões proferidas, em recurso, pelo Tribunal da Relação que conhece ex novo de questões processuais que não haviam sido conhecidas em 1.ª instância;
16. O despacho recorrido, ao não deferir a reclamação apresentada pelo ora Recorrente, violou o art.32-1, Constituição;
Pelo exposto e pelo muito mais que resultar do douto suprimento de Vossas Excelências, deve dar-se provimento ao recurso considerando-se a desconformidade com o art. 32-1, Constituição, da norma constante do art. 400º-1,-f), CPP, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncia pela primeira vez sobre um facto novo, com influência na determinação e medida da pena, que era desconhecido na primeira instância e que por ela não foi apreciado,
com as legais consequências.
Porque só assim se fará JUSTIÇA!»
O Ministério Público apresentou contra-alegações, tendo formulado as seguintes conclusões:
«1º Não se pode considerar infringido o n.º 1 do artigo 32.º da CRP, pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto, em que o tribunal superior confirma a decisão do tribunal de 1ª instância, e em que a pena de prisão aplicada é de 5 anos e 6 meses de prisão, tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.
2º E, contrariamente ao alegado pelo recorrente, é irrelevante para esse juízo de constitucionalidade, a circunstância do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, ter dado como provado um facto, alegado pelo arguido, mas que manteve inalterada a qualificação jurídica dos factos, não revestindo qualquer efeito útil, pois nem logrou suportar a atenuação especial da pena que lhe foi aplicada.
3º Pelo que, o presente recurso não merece provimento.»
Fundamentação
O Recorrente pretende ver sindicada a constitucionalidade da norma constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado.
Segundo o Recorrente, tendo a Relação conhecido ex novo dum facto não apreciado em 1.ª instância, deve ser admitido recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de supressão prática de um grau de jurisdição e, consequentemente, do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
O artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, dispõe o seguinte:
«Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 – Não é admissível recurso:
[…]
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;
[…]».
Esta norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, não tinha paralelo na versão primitiva do Código, tendo sido aditada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, com a seguinte redacção:
«Artigo 400.º
Decisões que não admitem recurso
1 – Não é admissível recurso:
[…]
f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mesmo em caso de concurso de infracções;
[…]».
Conforme consta da exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII (publicada no Diário da Assembleia da República, II Série A, n.º 27, de 29 de Janeiro de 1998), que veio a dar origem à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, de alteração do Código de Processo Penal, esta norma teve em vista limitar o duplo grau de recurso. Refere-se aí, a propósito desta alteração ao regime dos recursos: “Faz-se um uso discreto do princípio da «dupla conforme», harmonizando objectivos de economia processual com a necessidade de limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça a casos de maior gravidade”.
Neste mesmo sentido escreve José Manuel Vilalonga (em Direito de Recurso em Processo Penal, em “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 371, da ed. de 2004, da Almedina,), referindo-se às alíneas c), d), e) e f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal (na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), que a irrecorribilidade consagrada nestas disposições “reporta-se a decisões proferidas em processos nos quais foi interposto recurso, ou seja, em processos nos quais o direito de recurso foi, nos termos gerais, reconhecido e efectivamente exercido” e “visa genericamente obstar a que ao Supremo Tribunal de Justiça sejam submetidas questões que, ou pela sua menor relevância (aferida pela eficácia da decisão no processo ou pela medida da pena) ou por terem sido objecto de apreciação por duas instâncias decisórias num sentido favorável à defesa, não justificam a intervenção de uma terceira instância.”
A questão da dupla conforme em função do limite abstracto da moldura penal do crime não foi pacífica depois da revisão do Código de Processo Penal de 1998, sendo defendidas na doutrina e na jurisprudência teses diferentes a propósito da definição do que se deveria considerar “pena aplicável” (Sobre a interpretação da alínea f) do n.º 1, do artigo 400.º, do CPP na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, cf. Manuel da Costa Andrade, Maria João Antunes e Susana Aires de Sousa, em “Tempestividade e admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Fevereiro de 2003”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13, N.º 3, Julho-Setembro 2003, págs. 424 e ss., e Maria João Antunes, Nuno Brandão e Sónia Fidalgo, em “A reforma do sistema de recursos em processo penal à luz da jurisprudência constitucional”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 15, n.º 4, Outubro-Dezembro 2005, págs. 617 e ss.).
Assim, através da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, o legislador decidiu proceder a nova alteração da norma da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, tendo como objectivo “restringir o recurso de segundo grau perante o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento penal” (cfr. exposição de motivos da proposta de lei n.º 109/X, que veio a dar origem à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto), conferindo-lhe a actual redacção, nos termos da qual não admitem recurso os acórdãos proferidos, em recurso, pelas Relações que confirmem decisão da 1.ª instância e que apliquem pena de prisão não superior a oito anos.
Conforme se disse, o Recorrente pretende sindicar a constitucionalidade desta norma quando interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado, sustentando que tal implica a supressão prática de um grau de jurisdição e, consequentemente, do direito ao recurso consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
O Tribunal Constitucional tem reiteradamente entendido que no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, se consagra o direito ao recurso em processo penal, como uma das mais relevantes garantias de defesa do arguido. Por outro lado, tem sido também entendimento deste Tribunal que a Constituição não impõe, directa ou indirectamente, o direito a um duplo recurso ou a um triplo grau de jurisdição em matéria penal, cabendo na discricionariedade do legislador definir os casos em que se justifica o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, desde que não se consagrem critérios arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados. E mais se tem entendido que não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada (Cfr., entre outros, os acórdãos n.º 189/2001, 451/03, 495/03, 640/2004, 255/2005, 64/2006, 140/2006, 487/2006, 682/2006, 645/09 e 174/2010 disponíveis na Internet em www.tribunalconstitucional.pt, tal como os restantes acórdãos que a seguir se indicam sem outra menção).
Acresce que o Tribunal Constitucional foi também por diversas vezes chamado a pronunciar-se sobre a conformidade constitucional da norma da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, mesmo na redacção anterior à Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, na perspectiva da violação do direito ao recurso, tendo decidido reiteradamente no sentido da não inconstitucionalidade de dimensões normativas em que estava em causa a restrição do direito ao recurso, traduzida na limitação do acesso a um duplo grau de recurso ou triplo grau de jurisdição.
O fundamento da não inconstitucionalidade tem sido comum nas diversas decisões do Tribunal sobre esta matéria e pode resumir-se no entendimento expresso no Acórdão n.º 64/2006, proferido em Plenário, que julgou não inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso interposto apenas pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª Instância, o tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, pela prática de um crime a que seja aplicável pena superior a esse limite:
«(…) como repetidamente o Tribunal tem afirmado, a Constituição não impõe um triplo grau de jurisdição ou um duplo grau de recurso, mesmo em Processo Penal. Não se pode, portanto, tratar a questão de constitucionalidade agora em causa na perspectiva de procurar justificação para uma limitação introduzida pelo direito ordinário a um direito de recurso constitucionalmente tutelado.
A norma que constitui o objecto do presente recurso, e que define, nos termos expostos, a admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, releva, assim, do âmbito da liberdade de conformação do legislador.
Como se afirmou no acórdão n.º 640/2004, não é arbitrário nem manifestamente infundado reservar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso, aos casos mais graves, aferindo a gravidade relevante pela pena que, no caso, possa ser aplicada.
A norma em apreciação não viola, pois, qualquer direito constitucional ao recurso ou qualquer regra de proporcionalidade.
7. Também não ocorre uma eventual violação do princípio da igualdade, considerado isolada ou conjugadamente com o direito ao recurso.
Com efeito, e para além do que se disse já, o critério utilizado para definir a admissibilidade de intervenção do Supremo Tribunal de Justiça – a possibilidade de ser aplicada uma pena mais grave do que um determinado limite – torna irrelevante saber quem pode ou não tomar a iniciativa de a provocar (o arguido, o Ministério Público, ou o assistente).
Acresce que, interposto recurso com o objectivo do agravamento da pena aplicada em 2ª instância, o arguido, como recorrido, tem as mesmas possibilidades de pugnar pela redução da pena ou pela absolvição de que disporia se fosse ele o recorrente.
8. Finalmente, e também pelas razões já apontadas, também não procede o argumento de que seria constitucionalmente imposto que o arguido soubesse, no momento em que é notificado do acórdão da 2ª instância, se tem ou não direito de recorrer e em que condições o pode exercer. Note-se, aliás, que se não vê como a norma em apreciação o impeça.
O mesmo se diga, aliás, da hipótese de se considerar constitucionalmente exigido esse conhecimento em momento ainda anterior. (…)»
No caso dos autos, a questão de constitucionalidade suscitada não é a da simples limitação do direito ao recurso prevista nesta norma, mas sim que tal limitação exista nos casos em que o Tribunal da Relação, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado.
Ou seja, depreende-se da argumentação do Recorrente que, no seu entender, tal limitação do direito ao recurso, neste caso, será inconstitucional, uma vez que a circunstância de o Tribunal da Relação se pronunciar pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado implica que lhe seja conferida a possibilidade de beneficiar de um novo grau de recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça.
O Tribunal Constitucional já teve também oportunidade de se pronunciar sobre o preceito em causa nos presentes autos, em situações em que estavam em causa interpretações normativas em que se questionava a existência de uma rigorosa “dupla conforme”.
Assim, no Acórdão n.º 2/2006 este Tribunal confirmou decisão sumária que havia concluído pela não inconstitucionalidade da “norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que é inadmissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão condenatório proferido, em recurso, pelas Relações, que confirmem (mesmo que parcialmente, desde que in melius) decisão da 1.ª instância, quando o limite máximo da moldura penal dos crimes, individualmente considerados, por que o arguido foi condenado não ultrapasse 8 anos de prisão”.
Seguindo este mesmo entendimento, pronunciaram-se os Acórdãos n.º 32/2006, e 20/2007, onde se escreveu:
«Salientando que não lhe cabe a apreciação do acerto da decisão no plano da mera interpretação da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, o Tribunal lembra que, em conformidade com a jurisprudência posta em evidência na decisão reclamada, toda no sentido de que o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, quando estabelece que “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”, não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias, o que tem de perguntar-se é se será desrazoável, arbitrário ou desproporcionado não admitir o recurso para o Supremo nos casos, como o dos autos, em que a Relação mantém os factos provados e a qualificação jurídica, não obstante reduzir a medida concreta das penas parcelares e unitária (esta última para sete anos), revogando parcialmente a decisão de 1.ª instância.
Ora a menor certeza na aplicação do direito ao caso que possa imputar-se à inexistência de uma rígida 'dupla conforme' nas instâncias não tem constitucionalmente que ser superada pelo acesso ao Supremo Tribunal de Justiça. Não podendo essa garantia ser reconhecida em todos os casos, tal resolução exige necessariamente a ponderação da razoabilidade, arbitrariedade ou desproporcionalidade da não admissão desse terceiro grau, na hipótese normativa considerada. E, repete-se, não é constitucionalmente censurável que a exclusão do terceiro grau de jurisdição resulte de se “qualificar como confirmatório da decisão condenatória, proferida em 1ª instância, o acórdão da Relação que – sem qualquer alteração ou convolação dos fundamentos essenciais ou substanciais – se limite, em mera «redução quantitativa», a atenuar a medida concreta da pena aplicada ao arguido, reduzindo a que lhe havia sido cominada na 1ª instância, por diversa reponderação do quadro de circunstâncias atenuantes. Não é desrazoável, quer reservar a possibilidade de recurso para Supremo para os casos mais graves em função da medida da pena quer, num sistema assim concebido, tratar do mesmo modo os casos em que a Relação, aplicando pena não superior a oito anos, confirma totalmente a decisão da 1.ª instância e os casos em que a Relação, aplicando pena não superior a oito anos, reduz a pena aplicada pela 1.ª instância.»
O Tribunal Constitucional já se pronunciou também por várias vezes no sentido de que o direito ao recurso, no domínio do processo penal, se basta com a existência de um duplo grau de jurisdição, mesmo em situações de acórdãos condenatórios, proferidos pelas Relações, revogatórios de decisões absolutórias da 1.ª instância (cfr. acórdãos n.ºs 49/2003, 255/2005, 487/2006, 682/06 e 424/2009).
Nesse sentido, no Acórdão n.º 49/2003 (em que o Tribunal julgou não inconstitucional a norma contida na alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, quando aplicada a recursos interpostos de acórdãos condenatórios da Relação proferidos em recursos interpostos de decisões absolutórias da 1ª instância, e para cuja fundamentação se remete nos acórdãos 255/2005, 487/2006, 682/06 e 424/2009), escreveu-se o seguinte:
«4. A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem tido oportunidade para salientar, por diversas vezes, que o direito ao recurso constitui uma das mais importantes dimensões das garantias de defesa do arguido em processo penal.
Este direito assenta em diferentes ordens de fundamentos.
Desde logo, a ideia de redução do risco de erro judiciário. Com efeito, mesmo que se observem todas as regras legais e prudenciais, a hipótese de um erro de julgamento – tanto em matéria de facto como em matéria de direito – é dificilmente eliminável. E o reexame do caso por um novo tribunal vem sem dúvida proporcionar a detecção de tais erros, através de um novo olhar sobre o processo.
Mais do que isso, o direito ao recurso permite que seja um tribunal superior a proceder à apreciação da decisão proferida, o que, naturalmente, tem a virtualidade de oferecer uma garantia de melhor qualidade potencial da decisão obtida nesta nova sede.
Por último, está ainda em causa a faculdade de expor perante um tribunal superior os motivos – de facto ou de direito – que sustentam a posição jurídico-processual da defesa. Neste plano, a tónica é posta na possibilidade de o arguido apresentar de novo, e agora perante um tribunal superior, a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável, por forma a que a nova decisão possa ter em consideração a argumentação da defesa.
Resulta do exposto que os fundamentos do direito ao recurso entroncam verdadeiramente na garantia do duplo grau de jurisdição. A ligação entre o direito ao recurso e o duplo grau de jurisdição é, pois, evidente, sendo reconhecida pela recorrente nas alegações apresentadas neste Tribunal (cfr. a conclusão D).
5. A norma impugnada pela recorrente – contida na alínea e) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal – exclui, nos casos nela previstos, a possibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdãos proferidos em recurso pela relação.
Importa ter presente, todavia, que tais acórdãos resultam justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Por outras palavras, o acórdão da relação, proferido em 2ª instância, consubstancia a garantia do duplo grau de jurisdição, indo ao encontro precisamente dos fundamentos do direito ao recurso.
Dir-se-á – como faz a recorrente – que, tendo havido uma decisão absolutória na primeira instância, o direito ao recurso implicaria a possibilidade de recorrer da primeira decisão condenatória: precisamente o acórdão da relação.
Tal entendimento, não só encara o direito ao recurso desligado dos seus fundamentos substanciais (como resulta do que já se disse), mas levaria também, em bom rigor, a resultados inaceitáveis, como se passa a demonstrar.
Se o direito ao recurso em processo penal não for entendido em conjugação com o duplo grau de jurisdição, sendo antes perspectivado como uma faculdade de recorrer – sempre e em qualquer caso – da primeira decisão condenatória, ainda que proferida em recurso, deveria haver recurso do acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso interposto de decisão da Relação que confirmasse a absolvição da 1ª instância. O que ninguém aceitará.
A verdade é que, estando cumprido o duplo grau de jurisdição, há fundamentos razoáveis para limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, mediante a atribuição de um direito de recorrer de decisões condenatórias.
Tais fundamentos são a intenção de limitar em termos razoáveis o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, evitando a sua eventual paralização, e a circunstância de os crimes em causa terem uma gravidade não acentuada. Esta segunda justificação, aliás, explica a diferença entre as alíneas e) e f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal; com efeito, se ao crime em causa for aplicável pena de prisão “não superior a oito anos” (alínea f)) – não sendo hipótese abrangida pela alínea e), naturalmente –, só não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão condenatório proferido pela Relação se este confirmar “decisão de 1ª instância”.
Não se pode, assim, considerar infringido o nº 1 do artigo 32º da Constituição pela norma que constitui o objecto do presente recurso, já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas.»
Por sua vez, no Acórdão n.º 424/2009 (em que o Tribunal decidiu não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alíneas e) e f), conjugada com a norma do artigo 432.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, na redacção emergente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão efectiva), escreve-se ainda o seguinte:
«[…]
Fundamento comum às duas reclamações é o de que não pode considerar-se garantido em concreto um grau de recurso quando a aplicação da pena de prisão efectiva só tenha ocorrido na Relação, atendendo a que está em consideração o valor da liberdade. Mas, esta circunstância não justifica a revisão da jurisprudência do Tribunal. Tal condenação resulta justamente da reapreciação por um tribunal superior (o tribunal da relação), perante o qual o arguido tem a possibilidade de expor a sua defesa. Face a uma mesma imputação penal e à pretensão de aplicação de uma pena privativa de liberdade o arguido tem a oportunidade de defender perante dois tribunais, o tribunal de 1.ª instância e o tribunal superior, o seu direito à liberdade. Perante o tribunal superior pode fazer rever tanto a decisão que o condenou, como contrariar a pretensão de que essa condenação seja agravada, designadamente que se converta em pena privativa de liberdade.
Tanto basta para, transpondo o entendimento firmado pelo Tribunal na jurisprudência citada na decisão reclamada, julgar improcedentes as reclamações.»
Foi este também o entendimento manifestado por José Manuel Vilalonga, nesta situação (no estudo citado, págs. 368-369).
No caso dos autos, tendo sido assegurado ao arguido um duplo grau de jurisdição (uma vez que teve a possibilidade de, face à mesma imputação penal, defender-se perante dois tribunais: o tribunal de 1.ª instância e o tribunal da Relação), a questão que se coloca é a de saber se, tendo o tribunal superior julgado provado um facto que não havia sido ponderado pela 1.ª instância, é inconstitucional limitar a possibilidade de um triplo grau de jurisdição, por aplicação da regra da dupla conforme, prevista na alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal.
Note-se que não cabe a este Tribunal aferir se esta situação configura ou não um caso de “dupla conforme”, para efeitos de aplicação da referida limitação ao acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, mas apenas verificar se a não admissibilidade de uma nova instância de recurso, nestas circunstâncias, atenta contra o direito ao recurso garantido pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Sendo certo, conforme se disse, que este preceito não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição em relação a quaisquer decisões penais condenatórias e que não é desrazoável, arbitrário ou desproporcionado limitar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça quando esteja em causa a aplicação de penas muito elevadas, resta verificar se, nos casos em que o tribunal da Relação mantém a decisão condenatória da 1.ª instância, apesar de ter ampliado os pressupostos factuais da mesma, se mostra cumprida a garantia constitucional do direito ao recurso, quando exige que o processo penal faculte à pessoa condenada pela prática de um crime a possibilidade de requerer uma reapreciação do objecto do processo por outro tribunal, em regra situado num plano hierarquicamente superior.
Ora, com uma reapreciação jurisdicional, independentemente do seu resultado, revela-se satisfeito esse direito de defesa do arguido, pelo que a decisão do tribunal de recurso já não está abrangida pela exigência de um novo controle jurisdicional.
O facto de nessa reapreciação se ter ampliado a matéria de facto considerada relevante para a decisão a proferir, traduz precisamente as virtualidades desse meio de controle das decisões judiciais, não sendo motivo para se considerar que estamos perante uma primeira decisão sobre o thema decidendum, relativamente à qual é necessário garantir também o direito ao recurso.
Na verdade, a ampliação da matéria de facto julgada provada não modifica o objecto do processo. Tal como a decisão da 1.ª instância, o acórdão do Tribunal da Relação que sobre ela recai limita-se a verificar se o arguido pode ser responsabilizado pela prática do crime que estava acusado e, na hipótese afirmativa, a definir a pena que deve ser aplicada, o que se traduz num reexame da causa.
Assim, o Acórdão do Tribunal da Relação, apesar da alteração que introduziu à decisão recorrida, é já a segunda pronúncia sobre o objecto do processo, pelo que já não há que assegurar a possibilidade de suscitar mais uma instância de controle, a qual resultaria num duplo recurso, com um terceiro grau de jurisdição.
Por isso, não é constitucionalmente censurável a exclusão do terceiro grau de jurisdição num caso em que o Tribunal da Relação, não obstante ter procedido a uma alteração da matéria de facto, suscitada pelo próprio arguido e que lhe era favorável, mas foi considerada irrelevante para o enquadramento jurídico-penal dos factos ou para fundamentar uma atenuação especial de pena, tenha confirmado a decisão condenatória, proferida em 1ª instância, que aplicou pena inferior a oito anos de prisão, mantendo inalterada a qualificação jurídica dos factos.
Importa ainda referir que a posição sustentada em nada contende com o entendimento do Tribunal Constitucional, no sentido de ser inconstitucional, por violação do n.º 1, do artigo 32.º, da Constituição, a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que se pronuncie pela primeira vez sobre a especial complexidade do processo, declarando-a.
Com efeito, conforme refere o Recorrente nas suas alegações, no acórdão n.º 686/2004, o Tribunal Constitucional concluiu pela referida inconstitucionalidade. Contudo, na situação em causa neste acórdão, e conforme resulta do teor do mesmo, «o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu a decisão “em primeira instância”, isto é, (…), sem ter sido a mesma objecto de apreciação anterior. Ora, a tutela constitucional do direito de recorrer de decisões que restringem direitos fundamentais em processo penal impõe a possibilidade efectiva de uma reapreciação em recurso, o que no caso poderia consistir no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.»
Ora, no caso dos presentes autos, como já acima evidenciámos, não estava em causa a apreciação de uma questão processual, com inteira autonomia em relação ao mérito da causa; o Tribunal da Relação, embora tendo dado como provado um facto que não havia sido considerado em 1.ª instância, fez uma reapreciação de todo o objecto do processo, não se podendo considerar que tenha proferido uma decisão em 1.ª instância.
Assim sendo, e pelas razões expostas, impõe-se concluir que a interpretação normativa objecto de fiscalização não viola o disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, nem qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que o presente recurso não merece provimento.
Decisão
Nestes termos, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 400.º, n.º 1, alínea f), do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de ser irrecorrível uma decisão do Tribunal da Relação que, apesar de ter confirmado a decisão de 1.ª instância em pena não superior a 8 anos, se pronunciou pela primeira vez sobre um facto que a 1.ª instância não havia apreciado;
b) Consequentemente, negar provimento ao recurso.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 27 de Julho de 2011. João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – José da Cunha Barbosa – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos. Com a declaração de que mantenho a posição tomada no acórdão n.º 64/2006.
|