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Processo n.º 353/11
3ª Secção
Relator: Conselheiro Vítor Gomes
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Por despacho de 14 de Abril de 2011, proferido nos autos de inquérito com o n.º 1906/11.1TDLSB, decidiu o 5º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa recusar a aplicação do disposto no «artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), na parte em que exige que o juiz de instrução deve genericamente validar a decisão do Ministério Público de sujeição dos autos a segredo de justiça, durante o inquérito e para proteger os “interesses da investigação” com fundamento na respectiva inconstitucionalidade», por violação dos princípios constitucionais consagrados nos artigos 219.º, n.ºs 1 e 2 (autonomia do Ministério Público), e 32.º, n.º 5 (princípio do acusatório), da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O Ministério Público interpôs do referido despacho, na parte em que recusou a aplicação, por inconstitucionalidade, do disposto no citado artigo 86.º, n.º 3, do CPP, recurso de constitucionalidade, ao abrigo, entre outros, da alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC).
Admitido o recurso, pelo Tribunal recorrido, prosseguiram os autos para alegações, tendo o Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional concluído nos seguintes termos:
«1. A regra geral da publicidade do inquérito – de que o regime estabelecido no artigo 86º, n.º 3, do CPP, constitui uma excepção – não é constitucionalmente aceitável.
2. Por isso, a norma do nº 3 do artigo 86º do CPP, na parte em que exige que o Juiz de Instrução deve genericamente validar a decisão do Ministério Público da sujeição dos autos a segredo de justiça, durante o inquérito e para “proteger os interesses da investigação” é inconstitucional, por violação dos artigos 20º, nº 3, 32º, nº 5, e 219º da Constituição.
3. Mas mesmo que se não questione a regra geral da publicidade do inquérito, aquela intervenção do juiz de instrução não só se revela desadequada e desnecessária, como também violadora dos artigos 32º, nº 5, e 219º da Constituição, pelo que a norma do artigo 86º, nº 3, do CPP, na dimensão atrás referida, por violação daqueles preceitos constitucionais, é inconstitucional.
4. Termos em que deverá negar-se provimento ao recurso.»
2. Cumpre, pois, apreciar e decidir.
A questão de inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso foi recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 234/11 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que, julgando procedente recurso com idêntico objecto ao destes autos, decidiu «não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 86.º, n.º 3, do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que exige que o Juiz de Instrução valide a decisão do Ministério Público de sujeição de processo crime, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça», com a seguinte fundamentação:
«O presente recurso versa o tema das funções do juiz de instrução criminal no processo penal em fase de inquérito, nomeadamente a sua intervenção na determinação da sujeição do processo a segredo de justiça, como meio de evitar as consequências do seu carácter público que a reforma legislativa efectuada em 2007 estendeu à fase pré-acusatória.
Não compete a este Tribunal emitir qualquer juízo sobre a bondade da solução consagrada por aquela reforma do processo penal, mas apenas avaliar da sua conformidade constitucional.
A decisão recorrida defendeu que a exigência de um Juiz de Instrução Criminal validar a decisão do Ministério Público de colocar um processo em fase de inquérito sob segredo de justiça, viola o modelo constitucional de repartição de funções num processo penal de estrutura acusatória, atribuindo ao juiz de instrução criminal um papel que invade a esfera de competência exclusiva do Ministério Público na direcção da fase pré-acusatória definida pela Constituição.
O artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, impõe que o processo penal tenha uma estrutura acusatória.
A qualificação constitucional da estrutura do processo penal como acusatória revelou uma opção pelas características gerais de um modelo destinado ao exercício da repressão da criminalidade que tem as suas origens mais próximas na mundividência do Estado liberal (sobre as diferentes concepções históricas do processo penal, vide, resumidamente, Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, I vol., pág. 58-73, e Cavaleiro Ferreira, em “Curso de Processo Penal”, vol. I, pág. 21 e seg., ed. de 1986, da Universidade Católica). O sistema acusatório liberal procurava a igualdade de meios de actuação processual entre a acusação e a defesa, ficando o julgador numa posição de independência e imparcialidade que exigia uma distinção orgânica entre a função de julgar e as de acusar e investigar. Daí que também no actual sistema processual acusatório democrático, uma das dimensões desta concepção do processo penal (orgânico-subjectiva), com vista a garantir a imparcialidade e objectividade de quem julga, é a da proibição de acumulação de funções no processo – o órgão que julga não pode ser o mesmo que investiga, nem o mesmo que acusa. A imparcialidade do juiz de julgamento, numa aproximação subjectiva, não permite que o conhecimento e as convicções que ele possa ter adquirido ao longo da instrução do processo possam pesar na decisão de julgar, assim como, numa perspectiva objectiva, em que as aparências têm importância na preservação da confiança que numa sociedade democrática os tribunais devem oferecer aos cidadãos, a participação do juiz de julgamento na fase de recolha das provas é susceptível de lançar suspeitas sobre a sua imparcialidade no momento de julgar.
Mas a presente questão de constitucionalidade não reside num problema de acumulação de funções pela mesma entidade, até porque está em jogo uma única intervenção no processo do juiz de instrução criminal, mas sim numa eventual invasão da esfera de competência constitucional do Ministério Público pelo Juiz de Instrução Criminal.
Na verdade, há quem defenda que, atribuindo o artigo 219.º, n.º 1, da Constituição, a competência para exercer a acção penal a um Ministério Público dotado de autonomia, e dispondo o artigo 32.º, n.º 4, da Constituição, que a instrução é da competência de um juiz, o qual pode delegar, nos termos da lei, noutras entidades a prática de actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais, a forma de repartição de funções inerente à estrutura acusatória do processo penal só pode ser a da realização da investigação preliminar e da acusação pelo Magistratura do Ministério Público, cabendo apenas ao Juiz de Instrução Criminal intervir em situações em que possam ser afectados negativamente direitos fundamentais dos cidadãos nessa fase processual, enquanto o julgamento será feito por outro juiz ou tribunal colectivo (vide, neste sentido, Figueiredo Dias, em “Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, em “O novo Código de Processo Penal”, pág. 23, ed. de 1988, da Almedina, Anabela Rodrigues, em “O inquérito no novo Código de Processo Penal”, em “O novo Código de Processo Penal”, pág. 66-68, ed. de 1988, da Almedina, e Paulo Dá Mesquita, em “Direcção do inquérito penal e garantia judiciária”, pág. 101-103, e o voto de vencido aposto no Acórdão n.º 110/09, acima referido).
Esta leitura conjugada dos diferentes preceitos constitucionais, que corresponde, desde 1987, ao nosso actual modelo processual penal, não admite a possibilidade do legislador ordinário poder ordenar a estrutura acusatória do processo penal, repartindo, de outro modo, as várias funções como, por exemplo, algumas vozes têm defendido, num retorno a um esquema antigo, atribuindo a direcção da investigação preliminar ao Juiz de Instrução Criminal, enquanto ao Ministério Público restaria a competência para deduzir a acusação.
Se é verdade que na atribuição da competência para exercer a acção penal deve considerar-se incluída a actividade de direcção da investigação preliminar, enquanto conjunto de diligências que visam apurar a existência de um crime, determinar os seus agentes, a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação (vide, neste sentido, José Lobo Moutinho, em “Constituição Portuguesa Anotada”, vol. III, pág. 218, da ed. de 2007, da Coimbra Editora, e Paulo Dá Mesquita, em “Processo Penal, prova e sistema judiciário”, pág. 218 e 226-227, da ed. de 2010, da Coimbra Editora/Wolters Kluver), suscitam-se algumas dúvidas sobre se essa competência é necessariamente exclusiva, e se, portanto, é possível falar-se, nesse domínio, numa função constitucionalmente reservada ao Ministério Público.
Esta questão, pese embora a sua importância, não é, contudo, decisiva para a solução do presente recurso, uma vez que, mesmo admitindo a existência dessa reserva, a intervenção do juiz de instrução criminal aqui em causa, atenta à matéria a decidir, revela-se com ela compatível, como se irá demonstrar.
Se a intenção original da Constituição de 1976 foi a de atribuir exclusivamente a um juiz a direcção da investigação preliminar à acusação (vide o DAC, n.º 38, de 28 de Agosto de 1975, pág. 1049-1052), as dificuldades práticas de aplicar integralmente esta exigência (sinais dessas dificuldades foram os sucessivos diplomas que procuravam soluções para colmatar a falta de juízes para assegurar essa nova competência, como os Decretos-Lei n.º 321/76, de 4 de Maio, n.º 618/76, de 27 de Julho, n.º 354/77, de 30 de Agosto, e n.º 377/77, de 6 de Setembro) e as discussões sobre a constitucionalidade da figura do inquérito preliminar sob a direcção do Ministério Público, entretanto criado pelo Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 377/77, de 6 de Setembro (vide, Rui Pinheiro/Artur Maurício, em “Constituição e o Processo Penal”, pág. 35-88, da 2.ª ed., do Rei dos Livros, Germano Marques da Silva, em “Da inconstitucionalidade do inquérito preliminar”, na Scientia Iuridica, tomo XXI, pág. 325, João Castro e Sousa, em “A tramitação do processo penal”, pág. 163-169, da ed. de 1983, da Coimbra Editora, e os Pareceres da Comissão Constitucional n.º 6, de 5 de Maio de 1977, n.º 39, de 6 de Outubro de 1977, e n.º 49, de 23 de Novembro de 1977, publicados em “Pareceres da Comissão Constitucional”, respectivamente nos vol. 1 e 4) conduziram a que na 1.ª Revisão Constitucional de 1982 se reformulasse o texto do artigo 32.º, n.º 4, passando a nova redacção a facilitar uma leitura que restringisse essa exigência a uma fase instrutória facultativa, sob a égide do contraditório, posterior a um inquérito investigatório, onde apenas seria necessário que um juiz interviesse nos actos instrutórios que se prendessem directamente com direitos fundamentais, conferindo ao legislador ordinário inteira liberdade para atribuir a outra entidade a direcção da investigação que precede a dedução da acusação (foi esta leitura que efectuaram, entre outros, os Acórdãos deste Tribunal n.º 7/87, em ATC, 9.º vol., pág. 7, n.º 23/90, em 15.º vol., pág. 119, n.º 334/94, no BMJ n.º 436, pág. 96), n.º 517/96, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, n.º 610/96, em ATC, 33.º vol, pág. 841, n.º 694/96, acessível em www.tribunalconstitucional.pt, n.º 581/00, em ATC, 48.º vol., pág. 587, e 395/04, em ATC, 59.º vol., pág. 595).
Esta modificação permitiu, assim, ao legislador do CPP de 1987 atribuir, sem grandes resistências, ao Ministério Público, cujo estatuto constitucional é o de uma magistratura autónoma, na qual vai implicada a obrigação de se mover por critérios de objectividade e imparcialidade, a competência para dirigir a investigação preliminar, prevendo, contudo, a possibilidade de ser requerida uma posterior fase instrutória, presidida por um Juiz de Instrução Criminal, de controlo do despacho que encerra o inquérito.
Mas o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição, quanto aos actos processuais que pudessem ofender direitos fundamentais de qualquer pessoa, também exigiu a supervisão de um juiz, não só pelo seu estatuto de independência, mas também pela sua distância relativamente à actividade investigatória.
A existir, pois, uma reserva ao Ministério Público na direcção da investigação preliminar, ela tem necessariamente de permitir a intervenção do Juiz de Instrução Criminal, nesta fase, em todos os actos instrutórios que possam afectar negativamente direitos fundamentais, de modo a cumprir-se a exigência contida no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição. Nesse domínio, existe uma reserva de juiz (sobre esta reserva de juiz, vide Anabela Rodrigues, em “A jurisprudência constitucional portuguesa e a reserva do juiz nas fases anteriores ao julgamento ou a matriz basicamente acusatória do processo penal, em “XXV anos de jurisprudência constitucional portuguesa”, pág. 47 e seg., da ed. de 2009, da Coimbra Editora) que comprime a alegada reserva do Ministério Público na direcção do inquérito, até onde se revele necessária para protecção efectiva dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Daí que, em obediência ao texto constitucional, o CPP de 1987 não tenha deixado de prever a intervenção ocasional do juiz de instrução para praticar, ordenar ou autorizar certos actos processuais singulares que, na sua pura objectividade externa, se traduzem em ataques a direitos, liberdades e garantias constitucionalmente protegidos (v.g., a aplicação de medidas de coacção ao arguido, a realização de buscas domiciliárias, a apreensão de correspondência, a localização celular ou a intercepção, gravação e registo de comunicações telefónicas), para além de outros actos de cariz jurisdicional (v.g., tomada de declarações para memória futura, admissão de assistente, aplicação de multas).
O acto aqui em causa é o da colocação do processo penal, em fase de inquérito, em segredo de justiça.
A aplicação do segredo de justiça nesta fase implica as proibições:
- de assistência à prática ou tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que não tenham o direito ou dever de assistir [artigo 86.º, n.º 8, alínea a), do CPP];
- divulgação da ocorrência de acto processual ou dos seus termos, independentemente do motivo que presidir a tal divulgação [artigo 86.º, n.º 8, alínea b), do CPP].
O segredo de justiça vincula todos os sujeitos e participantes processuais, bem como as pessoas que, por qualquer título, tiverem tomado contacto com o processo ou conhecimento de elementos a ele pertencentes (artigo 86.º, n.º 8, 1.ª parte, do CPP).
Contudo, o regime do segredo de justiça contempla as seguintes excepções:
- a autoridade judiciária pode, fundamentadamente, dar ou ordenar ou permitir que seja dado conhecimento a determinadas pessoas do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, se tal não puser em causa a investigação e se afigurar conveniente ao esclarecimento da verdade ou indispensável ao exercício de direitos pelos interessados, ficando essas pessoas vinculadas pelo segredo de justiça (artigo 86.ºs, n.º 9 e 10, do CPP).
- a autoridade judiciária pode autorizar a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, desde que necessária a processo de natureza criminal ou à instrução de processo disciplinar de natureza pública, bem como à dedução do pedido de indemnização civil (artigo 86.º, n.º 11, do CPP).
- se o processo respeitar a acidente causado por veículo de circulação terrestre, a autoridade judiciária autoriza a passagem de certidão em que seja dado conhecimento de acto ou documento em segredo de justiça, para os fins previstos na última parte do número anterior e perante requerimento fundamentado no disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 72.º, ou do auto de notícia do acidente levantado por entidade policial, para efeitos de composição extrajudicial de litígio em que seja interessada entidade seguradora para a qual esteja transferida a responsabilidade civil (artigo 86.º, n.º 12, do CPP).
- o segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação, a pedido de pessoas publicamente postas em causa ou
para garantir a segurança de pessoas e bens ou a tranquilidade pública (artigo 86.º, n.º 13, do CPP).
- o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil podem consultar, mediante requerimento, o processo ou elementos dele constantes, bem como obter os correspondentes extractos, cópias ou certidões, salvo quando, o Ministério Público a isso se opuser por considerar, fundamentadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas, sendo então o requerimento de consulta presente ao juiz de instrução criminal, que decide por despacho irrecorrível (artigo 89.º, n.ºs 1 e 2, do CPP). Os autos ou as partes dos autos a que o arguido, o assistente, o ofendido, o lesado e o responsável civil devam ter acesso são depositados na secretaria, por fotocópia e em avulso, sem prejuízo do andamento do processo, e persistindo para todos o dever de guardar segredo de justiça (artigo 89.º, n.º 3, do CPP).
Este regime restritivo do conhecimento e divulgação do conteúdo do processo penal em fase de inquérito, imposto pelo segredo de justiça, implica necessariamente limitações a outros direitos fundamentais que neste domínio também se fazem sentir.
Na verdade, como é sabido, na temática do segredo de justiça em processo penal, confluem finalidades irremediavelmente conflituantes que o legislador deve procurar harmonizar, na medida do possível, através duma compressão dos direitos em conflito, proporcionalmente distribuída.
De um lado, alinham-se a garantia de uma investigação da notícia do crime que não corra o risco de ser perturbada, ou mesmo irremediavelmente prejudicada, por factores anómalos, como forma de realização da justiça e da descoberta da verdade material; a protecção da presunção de inocência do arguido, que é também uma forma de lhe garantir o direito ao bom nome e reputação; a segurança e tranquilidade das vítimas, testemunhas e seus familiares, expostas a retaliações e ameaças; e ainda a protecção da reserva da vida privada de todos aqueles que são mencionados no processo.
Do outro lado, avultam a necessidade de transparência do exercício do poder judicial, como característica essencial de um Estado democrático, que permita o seu controlo popular e garanta a sua independência e imparcialidade; o direito de defesa do arguido, cujo exercício efectivo exige o conhecimento do processo; o direito de acesso à informação contida nos autos pelos cidadãos em geral e pela comunicação social; e ainda o direito de informar da comunicação social, enquanto liberdade de expressão qualificada.
Tendo em consideração as consequências resultantes da sujeição de um processo penal ao regime do segredo de justiça acima descritas, a sua determinação com fundamento em que o conhecimento das diligências de investigação pelo suspeito ou por terceiros coloca em causa os interesses da investigação, nomeadamente a definição da responsabilidade criminal, o apuramento dos factos e a obtenção de provas, implica afectações negativas do direito de defesa do arguido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), do direito de acesso à informação dos cidadãos (artigo 37.º, n.º 1, da Constituição), do direito de acesso às fontes pelos jornalistas [artigo 38.º, n.º 2, alínea b), da Constituição] e da liberdade de expressão, na dimensão da liberdade de imprensa [artigos 37.º, n.º 1, e 38.º, n.º 2, alínea a), da Constituição] (vide, sobre a afectação destes direitos pelo regime do segredo de justiça, Paulo Dá Mesquita, em “O segredo do inquérito penal – uma leitura jurídico-constitucional”, separata do vol. XIV, tomo 2, de “Direito e Justiça”).
Na verdade, o arguido, enquanto o processo é público, pode consultar livremente os respectivos autos e obter cópias, extractos e certidões de qualquer parte deles, mediante requerimento dirigido ao Ministério Público [artigo 86.º, n.º 6, alínea c), e 89.º, n.º 1, do CPP]. Mas, a partir do momento em que ele é colocado em segredo de justiça, tal como sucede, relativamente ao ofendido, lesado e responsável civil, já poderá ver negado esse livre acesso, se o Ministério Público a isso se opuser, por considerar, fundamentadamente, que esse conhecimento pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas, sendo então o requerimento de consulta presente ao juiz de instrução criminal, que decide por despacho irrecorrível (artigo 89.º, n.º 1 e 2, do CPP), após balancear o peso das necessidades de sigilo da investigação invocadas pelo Ministério Público e o peso da necessidade do arguido conhecer o teor dos autos de inquérito, para poder exercer eficazmente o seu direito de defesa nesta fase processual.
Sendo o conhecimento integral dos autos fundamental para que o arguido possa exercer eficazmente o seu direito de defesa, nomeadamente fornecendo à investigação material probatório (vide, neste sentido, Germano Marques da Silva, em “Curso de Processo Penal”, II vol., pág. 28, da 4.ª ed., da Verbo), a colocação do processo em regime de segredo de justiça passa a condicionar o acesso do arguido ao conteúdo do inquérito, nos termos referidos, pelo que afecta negativamente esse direito fundamental. Esta decisão faz cessar a liberdade plena de acesso aos autos de inquérito por parte do arguido, passando esse acesso a estar dependente da vontade do Ministério Público e, em último caso, do juízo ponderativo que o juiz de instrução faça da superioridade do peso dos diferentes interesses que se façam sentir em cada processo, pelo que dela resulta uma perda do nível de garantias da efectividade do direito de defesa do arguido. Se é verdade que se encontra assegurada a intervenção do juiz de instrução criminal na decisão que nega o pedido de acesso de um arguido aos autos de um inquérito em segredo de justiça (artigo 89.º, n.º 2, do CPP), a simples sujeição do processo a esse regime, prevista no artigo 86.º, n.º 3, do CPP, implica desde logo uma primeira afectação do direito de defesa do arguido, uma vez que a simples colocação do processo em segredo de justiça determina um acesso condicionado ao inquérito.
Por outro lado, enquanto o processo é público existe a possibilidade de consulta do auto e obtenção de cópias, extractos e certidões de qualquer parte dele, por qualquer pessoa que nisso revelar interesse legítimo, nomeadamente por órgãos da comunicação social, mediante simples requerimento dirigido ao Ministério Público. Mas, a partir do momento em que ele é colocado em segredo de justiça, esse público restrito deixa de poder ter acesso ao processo em fase de inquérito, o que afecta negativamente o direito constitucional de acesso às fontes de informação, que assiste a qualquer cidadão, em geral, e aos jornalistas em especial, na dimensão da liberdade de imprensa [artigos 37.º, n.º 1 e 38.º, n.º 2, alínea b), da Constituição].
A regra do princípio da publicidade do processo penal, em fase de inquérito, permite ainda a narração circunstanciada dos actos processuais, ou reprodução dos seus termos, pelos meios de comunicação social, dentro dos limites da lei, com as excepções acima assinaladas. Mas se o processo for colocado em segredo de justiça, já é proibida a divulgação da ocorrência de qualquer acto processual ou dos seus termos, o que restringe severamente o direito de liberdade de expressão dos jornalistas, na dimensão da liberdade de imprensa [artigos 37.º, n.º 1, e 38.º, n.º 2, alínea a), da Constituição].
[…]
Por estas razões, mesmo que se aceite a consagração constitucional dessa reserva ao Ministério Público, o que não temos por seguro, o disposto no artigo 86.º, n.º 3, do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que exige que o Juiz de Instrução Criminal valide a decisão do Ministério Público de sujeição de processo crime, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, não se revela violador de qualquer parâmetro constitucional.».
É para esta jurisprudência que agora se remete, à semelhança do que acaba também de decidir-se no Acórdão n.º 352/11, confirmando o juízo de não inconstitucionalidade, por se entender que o regime de publicidade do inquérito, ao não implicar a violação do estatuto constitucional do Ministério Público nem da estrutura acusatória do processo criminal, se inscreve ainda na liberdade de conformação do legislador ordinário.
3. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma constante do artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal (CPP), na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no segmento em que exige que o Juiz de Instrução valide a decisão do Ministério Público de sujeição de processo crime, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça;
b) e, em consequência, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo que agora se formula quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 13 de Julho de 2011
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Ana Maria Guerra Martins
Gil Galvão
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