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Processo n.º 775/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A., foi condenado pela prática de um crime de burla, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1, 218.º, n.º 2, alínea a), e 202.º, alínea b), todos do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob a condição de pagar em 3 anos aos demandantes cíveis determinadas quantias.
O arguido recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto, tendo o Desembargador Relator proferido decisão sumária que julgou o recurso interposto manifestamente improcedente.
O arguido recorreu desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo o Desembargador Relator proferido despacho de não admissão do recurso.
O arguido reclamou desta decisão, tendo a reclamação sido enviada ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que, por despacho de 14 de Outubro de 2010, a indeferiu.
O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do disposto no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
Convidado a explicitar a norma ou interpretação normativa cuja fiscalização pretendia, o arguido apresentou o seguinte requerimento:
“1º Conforme, segundo se crê e é nossa convicção, parece decorrer da motivação e conclusão do recurso.
2º que a norma violadora dos princípios e normas constitucionais ali referidas, é o artigo 417º, nomeadamente, os seus nºs 5, 6 e 8, do Código de Processo Penal.
Assim;
3º quer pelo texto, quer pela interpretação que da mesma foi dada, pelas diversas instâncias de recurso, nomeadamente pelo S.T.J.
4º para que fosse possível, recurso para o S.T.J., necessário se tornava, reclamar para a conferência, e, só da decisão desta, seria possível interpor a competente recurso.
Ora:
5º tal norma processual penal, e, bem assim, a forma como foi interpretada,
6º mostra-se violadora, dos princípios e normas constitucionais, invocados na presente recurso
7º nomeadamente, os artigos 32º, nº 1; 12º, nº 1; 2º, 2ª parte; 13º, nº 1; e 18º nºs 5, 1, 2 e 3, todos da C.R.P..
Desta forma,
8º e por via da aplicação da referida norma processual penal e da interpretação que da mesma foi dada,
9º resulta coarctado, o direito de recurso do aqui Recorrente,
10º e, com isso, mostrar-se violado um direito fundamental constitucionalmente consagrado.
Apresentou alegações, com as seguintes conclusões:
“1º A fundamentação jurídico-constitucional, em que se baseia a decisão recorrida, não faz qualquer sentido;
2.º Esta decisão, coarcta o direito de recurso ao Recorrente,
3º pelo que, se mostra violado o princípio da igualdade (artigo 13º nº 1 da C.R.P);
4º Não faz qualquer sentido, que um mero pressuposto processual, possa coarctar o direito de recurso do Recorrente,
5º A decisão recorrida não pode estabelecer diferenciação de tratamentos irrazoáveis, quando carecidas de fundamento ou justificação material bastante;
6º Não pode, a inobservância de um requisito processual, impossibilitar ou impedir o Recorrente, de exercer o seu direito de recurso;
7º Nesta conformidade, é manifestamente inconstitucional (por violação dos preceitos supra e a seguir referidos), que seja necessário reclamar para a conferência, de forma a ser proferido Acórdão, este sim, passível de recurso;
8º Esta “decisão sumária”, deveria ser desde logo, passível de recurso;
9º A decisão recorrida, não assegurou o direito e garantias, da defesa do arguido;
10º Pelo que, se mostra violado, o disposto no artigo 32º nº 1, da C.R.P.;
11º Em consequência da violação do princípio da igualdade, decorrem igualmente violados, os princípios constitucionais, previstos nos artigos 12º nº 1 e artigos 2º, 2º parte, ambos da C.R.P.
12º Conforme, segundo se crê e é nossa convicção, parece decorrer do supra alegado,
13º que a norma violadora dos princípios e normas constitucionais ali referidas, é o artigo 417º, nomeadamente, os seus nºs 5, 6 e 8, do Código de Processo Penal.
Assim:
14º quer pelo texto, quer pela interpretação que da mesmo foi dada, pelas diversas instâncias de recurso, nomeadamente pelo S.T.J.,
15º para que fosse possível, recurso para o S.T.J., necessário se tornava, reclamar para a conferência, e, só da decisão desta, seria possível interpor o competente recurso.
Ora;
16º tal norma processual penal, e, bem assim, a forma como foi interpretada,
17º mostra-se violadora, dos princípios e normas constitucionais, invocados no presente recurso,
18º nomeadamente, os artigos 32º, nº 1; 12º, nº 1; 2º, 2ª parte; 13º, nº 1; e 18º, nºs 5, 1, 2 e 3, todos da C.R.P..
Desta forma,
19º e por via da aplicação da referida norma processual penal e da interpretação que da mesma foi dada,
20º resulta coarctado, o direito de recurso do aqui Recorrente,
21º e, com isso, mostrar-se violado um direito fundamental, constitucionalmente consagrado.
Termos em que, deferido o presente recurso, e declarada a arguida inconstitucionalidade das normas supra citadas, deverá em consequência, ser admitido, apreciado e objecto de decisão o recurso interposto para o STJ da “decisão sumária”, proferida pelo Tribunal da Relação do Porto.”
O Ministério Público e os Assistentes apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Fundamentação
O arguido invoca a inconstitucionalidade do artigo 417.º, n.º 5, 6, e 8, do Código de Processo Penal (CPP), na interpretação de que proferida decisão sumária pelo Desembargador Relator, em recurso interposto para o Tribunal da Relação, apenas é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça o acórdão que aprecie a reclamação para a conferência daquela decisão.
A indicação do n.º 5 do artigo 417.º do CPP, resulta necessariamente de mero lapso, uma vez que o conteúdo desse número é completamente alheio à interpretação impugnada, pelo que apenas se considerará a interpretação normativa questionada como reportada ao disposto nos n.º 6 e 8 do artigo 417.º do CPP.
Dispõem estes preceitos o seguinte, relativamente à tramitação dos recursos, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto:
“…
6 - Após exame preliminar, o relator profere decisão sumária sempre que:
a) Alguma circunstância obstar ao conhecimento do recurso;
b) O recurso dever ser rejeitado;
c) Existir causa extintiva do procedimento ou da responsabilidade criminal que ponha termo ao processo ou seja o único motivo do recurso; ou
d) A questão a decidir já tiver sido judicialmente apreciada de modo uniforme e reiterado.
…
8 - Cabe reclamação para a conferência dos despachos proferidos pelo relator nos termos dos n.os 6 e 7.
…”.
A possibilidade do relator a quem um recurso foi distribuído proferir decisão sumária nos casos enunciados no n.º 6 do artigo 417.º do CPP, nomeadamente quando o recurso deva ser rejeitado, foi introduzida no processo penal pela reforma operada pelo Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, adoptando-se uma solução que já vigorava nos recursos em matéria civil, desde as alterações efectuadas pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro, e que também já existia no recurso de constitucionalidade (artigo 78.º - A, da LTC).
Com a atribuição desta competência ao juiz relator visou-se a racionalização do funcionamento dos tribunais superiores, promovendo-se uma maior intervenção dos juízes que os compõem, a título singular.
Mas, sendo os tribunais de recurso, por natureza, tribunais colectivos, apesar de se admitir que o relator possa, sozinho, rejeitar o recurso, nos casos em que alguma das partes não se conforme com essa decisão sumária, tal como sucede com os demais despachos por ele proferidos no uso das competências que lhe são atribuídas por lei, deve provocar a intervenção da conferência.
Esta é composta pelo presidente da secção, pelo relator e um juiz-adjunto (artigo 419.º, n.º 1, do CPP), intervindo apenas o primeiro para dirigir a discussão e votar quando não for possível obter maioria (artigo 419.º, n.º 2, do CPP).
A decisão recorrida interpretou o disposto nos transcritos n.º 6 e 8, do artigo 417.º, do CPP, como não admitindo o recurso directo para o Supremo Tribunal da Justiça da decisão sumária do Desembargador Relator que rejeite o recurso, obrigando, assim, à prévia dedução de reclamação para a conferência, sendo apenas o acórdão proferido por esta formação do Tribunal da Relação que poderá ser impugnado perante o Supremo Tribunal de Justiça.
O Recorrente alega que esta solução viola o disposto nos artigos 32.º, n.º 1; 12.º, nº 1; 2º, 2ª parte; 13.º, n.º 1; e 18.º, nºs 5, 1, 2 e 3, da Constituição, argumentando que ela põe em causa o direito ao recurso do arguido e o princípio da igualdade.
Em primeiro lugar, cumpre lembrar, conforme o Tribunal Constitucional tem afirmado reiteradamente, que o direito ao recurso previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, não exige a intervenção de duas instâncias de recurso, nem o acesso ilimitado ao Supremo Tribunal de Justiça.
Contudo, quando o legislador ordinário prevê essa possibilidade, o direito das partes a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) não permite que o acesso ao Supremo Tribunal possa estar sujeito a condições arbitrárias e sem fundamento razoável ou que violem o princípio da igualdade entre os sujeitos processuais.
A interpretação perfilhada pela decisão recorrida, que é unânime na doutrina e na jurisprudência, no âmbito do sistema de recursos, foi desde há muito explicada por Alberto dos Reis (em Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 421, ed. de 1952, da Coimbra Editora), relativamente aos despachos do relator de preparação do processo para julgamento, do seguinte modo:
“Pode suceder que o relator, no exercício da sua função de preparação do processo, profira despachos com os quais se não conforme alguma das partes; verificada tal hipótese, o que pode fazer a parte discordante-
Pode, em princípio, reagir contra o despacho, requerendo que o relator leve o processo à conferência, a fim de que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão.
Compreende-se perfeitamente este mecanismo. Como já dissemos a Relação é, por índole, um tribunal colectivo; qualquer decisão demanda a intervenção de 3 juízes e o mínimo de dois votos conformes. Por isso se o relator lavrou despacho que a parte reputa ilegal, se algum dos litigantes se considera prejudicado por determinado despacho do relator e quer impugná-lo, não pode interpor recurso para o Supremo directamente do despacho, tem que provocar primeiro acórdão da Relação; deste acórdão, caso lhe seja desfavorável é que pode recorrer para o Supremo”.
Pretende-se, pois, impedir o acesso das partes ao Supremo Tribunal de Justiça, sem primeiro existir uma pronúncia definitiva do Tribunal da Relação, a qual só ocorre quando este decide com a sua composição colegial. A ideia geral desta solução é a de impedir, nestas situações, um recurso para o tribunal superior quando ainda não se encontram esgotados todos os níveis de decisão do Tribunal da Relação, condicionando, assim, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, à exaustão dos meios de impugnação previstos na instância imediatamente inferior.
A norma sindicada visa, pois, racionalizar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, impedindo que o mesmo seja chamado a pronunciar-se sobre uma determinada questão antes do tribunal hierarquicamente inferior ter proferido uma decisão definitiva sobre ela.
É um objectivo perfeitamente legítimo e razoável, inserido na lógica e razão de ser dos recursos, que confere uma justificação bastante à norma sob fiscalização.
Por outro lado, não se vê como esta interpretação normativa possa infringir o princípio da igualdade, uma vez que ela se aplica de igual modo a qualquer sujeito processual interveniente em recurso onde tenha sido proferida uma decisão sumária.
Não se vislumbrando que a interpretação normativa questionada viole qualquer parâmetro constitucional, deve o recurso interposto ser julgado improcedente.
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto por A., do despacho proferido nestes autos pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça em 14 de Outubro de 2010.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Lisboa, 12 de Abril de 2011.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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