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Processo n.º 284/10
3ª Secção
Relatora: Conselheira Ana Guerra Martins
Acordam, na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
I – RELATÓRIO
1. Nos presentes autos, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foi interposto recurso, ao abrigo do artigo 280º, nº 1, alínea b), da CRP e do artigo 70º, nº 1, alínea b), da LTC, do acórdão proferido, em conferência, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, para que seja apreciada a constitucionalidade da norma extraída “do nº 1 do artigo 107º do RGIT quando interpretado no sentido de que o limite de 7.500€ estabelecido no nº 1 do artigo 105º do mesmo diploma, para o abuso de confiança fiscal, não se aplica ao abuso contra a Segurança Social”.
2. Notificado para tal pela Relatora, o recorrente produziu alegações, das quais se podem extrair as seguintes conclusões:
«A — O valor protegido pelo n°1 do art. 105° do RGIT e o protegido pelo art. 107° do mesmo diploma é idêntico, ou seja, a defesa do erário público.
B — A conduta do agente faltoso, quer quando faz a dedução ou retenção de uma quantia para a Segurança Social quer quando faz a retenção do IVA ou do IRS e omite a sua entrega ao credor, é idêntica.
C — A não entrega da prestação deduzida ou retida, quer se trate de omissão de entrega de impostos ao Fisco quer se trata de omissão de entrega à Segurança Social de prestações deduzidas aos vencimentos dos trabalhadores, é uma conduta cujo desvalor é idêntico, merecendo por isso igual censura.
D — A não entrega de prestações devidas à Segurança Social ou a omissão de entrega de impostos retidos põe em causa valores idênticos — as necessidades financeiras do Estado Fiscal - Social.
E — A interpretação do art. 107° do RGIT, no sentido de que a remissão feita para o n°1 do art. 105° do mesmo diploma apenas se refere à moldura penal e não à condição objectiva de punibilidade, consistente na exigência para que a conduta omissiva seja punida criminalmente que o valor da prestação em falta seja de valor superior a 7500,00 euros, viola os princípios constitucionais da igualdade (nº 1 do art. 13° da CRP) e da proporcionalidade, decorrente do art.2° e do nº 2 do art. 18° da CRP.» (fls. 11622 a 1163).
3. Devidamente notificado para o efeito, o Ministério Público veio apresentar contra-alegações, cujas conclusões são as seguintes:
«1 - Porque durante o processo não se suscitou de forma adequada uma verdadeira questão de inconstitucionalidade normativa e porque a norma identificada no requerimento de interposição do recurso – o artigo 107, nº 1, do RGIT – não pode constituir o suporte normativo da questão de inconstitucionalidade que vem enunciada, não deverá conhecer-se do objecto do recurso.
2 - O legislador ordinário - que terá de ser a Assembleia da República ou Governo se para tal autorizado por aquela - goza de uma ampla liberdade de conformação em matéria de definição de crimes e fixação de penas.
3 - As infracções contra a Segurança Social – até historicamente - têm alguma autonomia face ás infracções praticadas no âmbito fiscal, podendo variar o quadro sancionatório num e no outro ramo, face à constatação da sua suficiência, ou não, num determinado período e tendo em atenção as exigências e os fins próprios de cada um.
4 - Com a alteração introduzida no nº 1 do artigo 105º do RGIT, pelo artigo 113 da lei nº 64-A/2008, de 31 de Dezembro, deixou de ser criminalmente punível como abuso de confiança fiscal, a não entrega à administração tributária de prestação tributária de valor igual ou inferior a €7.500.
5 - Tal conduta, no entanto, continua a ser punível como contra-ordenação (artigo 114º, nº 1, do RGIT)
6 - A não aplicação extensiva daquela alteração - com a consequentemente descriminalização - ao crime de abuso de confiança contra a segurança social (artigo 107º do RGIT), não viola o princípio de proporcionalidade, (artigo 18º, nº 2, da Constituição) nem o da igualdade (artigo 13º da Constituição), não se vislumbrando, pois, qualquer inconstitucionalidade.
7 - Termos em que deve negar-se provimento ao recurso.» (fls. 233).
4. Em função da invocação de questão que obstaria ao conhecimento do objecto do recurso, a Relatora proferiu despacho nos termos do qual o recorrente foi convidado a pronunciar-se, o que fez nos seguintes termos:
“A - Quanto ao primeiro ponto, ou seja a questão de ter ou não sido suscitada a questão da inconstitucionalidade normativa, no recurso para o Tribunal da Relação:
Logo no preâmbulo das suas alegações para o Tribunal da Relação, delimitando o recurso, o recorrente afirma :
«Entende o recorrente que, salvo o devido respeito, devia:
a) — considerar-se despenalizada a conduta do R., em face da nova redacção dada ao nº 1 do art. 105º do RGIT que deve ser aplicada no caso presente por força do art. 107º, nº 1 e 2 do mesmo diploma.»
Depois na fundamentação consta:
«A douta sentença recorrida considerou, na esteira de alguma jurisprudência, que a previsão criminal se encontra totalmente no nº1 do art. 107º mencionado, limitando a remissão aí feita para o nº1 do art. 105º apenas (respeitante) à moldura penal.
Cremos, porém, (que) não ser aceitável esta interpretação.
Para o efeito acolhe-se a douta fundamentação constante do Acórdão da Relação do Porto, de 27/05/2009, com o número de documento RP20090527243/05.7TAVNF.P1...».
E, neste Acórdão lê-se:
«O que representa uma ofensa injustificada ao princípio da legalidade e poderia significar uma interpretação inconstitucional do art. 107° n°1 do RGIT, por conduzir a um excesso de punição quando em causa estivesse o crime de abuso de confiança contra a segurança social de valor não superior a € 7.500, com consequente violação do princípio da proporcionalidade das penas e da igualdade (na medida em que situações iguais eram tratadas em termos sancionatórios de forma desigual) e, portanto, por contrariarem o estatuído nos arts. 18° nº 2 e ‘13°da Constituição da República Portuguesa».
E mais adiante, nas alegações, refere-se que a interpretação feita do art. 107º, nº1 no sentido de que este apenas remete para a pena e não também para o elemento valor a partir do qual a conduta do agente é criminalmente punida, afirma-se:
«Aliás, uma interpretação como a propugnada na douta sentença recorrida cremos ser inconstitucional por violação dos princípios da proporcionalidade das penas e da igualdade.»
E depois mais adiante, depois de referir que o desvalor da acção de quem não entrega as quantias dos impostos retidos é idêntico ao de quem não entrega os valores retidos para a segurança social, escreve:
«Assim, o princípio da proporcionalidade das penas e da igualdade impõe uma interpretação da lei que mantenha penas iguais para condutas idênticas.»
E depois tira a primeira conclusão do seguinte teor:
«1. A nova redacção dada ao nº 1 do art. 105º do RGIT, pelo artigo 113 da Lei 64-A/08, de 31/12, que estabeleceu o limite de 7 500 euros para o crime de abuso de confiança fiscal é também aplicável ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, por força dos nºs 1 e 2 do art. 107º desse mesmo RGIT;»
O recorrente entende que a questão a dirimir é determinar o alcance da remissão feita por aquele nº 1 do art. 107º citado, se é apenas para a pena ou também para o elemento valor, como condição objectiva de punibilidade, concluindo que deve abranger também este elemento.
E, em conformidade, afirma no nº 3 das conclusões:
«A interpretação segundo a qual o limite estabelecido de 7500 euros para o crime de abuso de confiança fiscal não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social deve ser considerada inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade das penas e da igualdade, previstos no art. 2º e 18º da Constituição.»
E no nº 4, conclui:
«Ao entender assim, o acórdão recorrido violou (...) as disposições constitucionais constantes dos no art. 2º e 18º da Constituição.»
Parece-nos, pois, encontrar-se suficientemente suscitada a questão da inconstitucionalidade normativa e referenciada a norma que seria inconstitucional, na interpretação da sentença de que se recorria, ou seja o nº1 do art. 107º mencionado.
O segundo argumento que o Digníssimo Magistrado do Ministério Público invoca para justificar o seu entendimento de que não deve o Tribunal conhecer do objecto do recurso é de que, a questão da inconstitucionalidade “só pode radicar na norma que levou a efeito a alteração” da redacção do nº 1 do art. 105º, ou seja, o art. 113º da Lei n2 64-A/2008.
Será porém assim-
Já nos referimos ao entendimento do Acórdão da Relação do Porto, a que nos acolhemos e que afirma que a interpretação feita (isto é, a de 27/05/2009 interpretação segundo a qual o nº1 do art. 107º apenas remetia para a pena e nada mais) “poderia significar uma interpretação inconstitucional do art. 107° nº 1 do RGIT por conduzir a um excesso de punição quando em causa estivesse o crime de abuso de confiança contra a segurança social de valor não superior a € 7.500”.
Cremos também, em sintonia com este douto Acórdão, que de facto é esta a norma em que radicará a inconstitucionalidade.
O que está em causa é a interpretação daquele nº 1 do art. 107º do RGIT— isto é, saber se a remissão que faz para o nº 1 do art.105º abrange também o elemento valor, introduzido por aquele art. 113º.
Certo que o problema só se põe após a alteração do nº 1 do art. 105º pelo citado art. 113º da Lei 64-A/2008.
Antes a sanção para ambas as condutas — não entrega de impostos retidos ou retenção das deduções efectuadas para a segurança social — era a mesma, ou seja, a pena estabelecida naquele nº 1 do art. 105º. Porém, desta alteração, não resulta directamente qualquer inconstitucionalidade.
A inconstitucionalidade apenas está na interpretação puramente literal e limitativa que se faz do nº 1 do art. 107º do RGIT, no Acórdão recorrido.
A alteração introduzida no art. 105º, apenas tornou necessário uma interpretação do nº 1 do art. 107º, no sentido de saber se também o crime de abuso de confiança contra a segurança social só era punido, com a pena naquele prevista, quando o valor da prestação em falta fosse de valor igual ou superior a 7500 euros ou se o seria mesmo que o valor dessa prestação fosse inferior, 10, 5 ou mesmo um euro.
E a interpretação da lei deve ser feita de molde a salvaguardar a sua constitucionalidade.” (fls. 1188 a 1192)
Assim sendo, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Questão do conhecimento do objecto do recurso
5. Tendo em conta a invocação, pelo Ministério Público, de fundamentos que obstariam ao conhecimento do objecto do presente recurso, o Tribunal decidiu que, ainda que se admita que o recorrente poderia ter sido mais explícito na suscitação da inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 107º do Regime Geral das Infracções Tributárias, do conjunto das suas alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, resulta que o mesmo pretendia que o tribunal recorrido tivesse sindicado tal alegada inconstitucionalidade normativa. Com efeito, do § 3. das respectivas conclusões, extrai-se que:
«3 – A interpretação segundo a qual o limite estabelecido de 7500 euros para o crime de abuso de confiança fiscal não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social deve ser considerada inconstitucional, por violação dos princípios da proporcionalidade das penas e da igualdade, previstos no art. 2º e 18º da Constituição.»
Ainda que, naquele passo, o recorrente não tenha identificado expressamente o n.º 1 do artigo 107º do RGIT, o Tribunal entende que toda a estruturação das alegações de recurso é tecida em torno do problema da aplicação daquele preceito legal, de acordo com a nova redacção do n.º 1 do artigo 105º do RGIT. Acresce, aliás, que o recorrente expressamente cita e transcreve uma passagem de Acórdão da Relação do Porto, de 27 de Maio de 2009, que se debruça, de modo especificado, sobre a problemática da alegada inconstitucionalidade daquela interpretação normativa. Como tal, para o Tribunal a questão de inconstitucionalidade normativa foi colocada de modo suficientemente adequado a que o tribunal recorrido dela ficasse obrigado a conhecer.
Assim sendo, passa-se a conhecer do objecto do presente recurso.
B) Questão de constitucionalidade em apreço
6. A questão de saber se a alteração legislativa do n.º 1 do artigo 105º do RGIT (“crime de abuso de confiança fiscal”), promovida pela Lei do Orçamento para 2009 (aprovada pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro), se deve interpretar como extensível ao artigo 107º do RGIT (“crime de abuso de confiança contra a segurança social”), apesar de o artigo 113º da referida lei não proceder a qualquer alteração ao enunciado normativo daquele preceito legal, tem vindo a ser alvo de bastante controvérsia junto dos tribunais comuns.
Este é, contudo, um problema que não cabe ao Tribunal Constitucional resolver (para uma exaustiva análise da evolução histórica daqueles preceitos legais e, designadamente, desta controvérsia, a qual conduziu à prolação do Acórdão n.º 8/2010, do Supremo Tribunal de Justiça, de 14 de Julho de 2010 (publicado no «Diário da República», I Série, n.º 186, de 23 de Setembro de 2010) que fixou jurisprudência, no sentido de a exigência de um montante mínimo de 7.500 €, fixado pelo n.º 1 do artigo 105º do RGIT, para que se verifique o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de confiança fiscal, não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, previsto no artigo 107º, n.º 1, do mesmo diploma legal, cfr. Acórdão n.º 428/10, deste Tribunal, disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Nos presentes autos, cabe somente determinar se é, ou não, contrária a alguma norma ou preceito constitucional a interpretação do artigo 107.º, n.º 1, do RGIT segundo a qual o limite de 7500 € previsto no artigo 105.º, n.º 1, RGIT para o crime de abuso de confiança fiscal não se aplica ao crime de abuso de confiança contra a segurança social, sendo que o recorrente alega violação do princípio da proporcionalidade das penas e do princípio da igualdade (artigos 2.º e 18.º da Constituição).
7. Vejamos, em primeiro lugar, qual o teor dos preceitos da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro, relevantes para o caso em apreço:
“Artigo 113.º
Alteração ao Regime Geral das Infracções Tributárias
Os artigos 18.º, 25.º, 98.º, 105.º, 109.º e 114.º do Regime Geral das Infracções Tributárias, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, abreviadamente designado por RGIT, passam a ter a seguinte redacção:
(…)
Artigo 105.º
(…)
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 – (…)
3 – (…)
4 – (…)
5 – (…)
6 – (Revogado.)
7 – (…)”.
Por sua vez, desde a sua redacção originária, pela Lei n.º 15/2001, de 05 de Junho, o tipo legal de crime previsto no artigo 107º do RGIT manteve-se inalterado:
“Artigo 107.º
Abuso de confiança contra a segurança social
1 - As entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entreguem, total ou parcialmente, às instituições de segurança social, são punidas com as penas previstas nos nºs 1 e 5 do artigo 105.º.
2 - É aplicável o disposto nos nºs 4, 6 e 7 do artigo 105.º.”
Em segundo lugar, cumpre averiguar se a interpretação normativa adoptada pela decisão recorrida atenta contra os princípios constitucionais invocados pelo recorrente. No fundo, trata-se de saber se a distinção da punição aplicável a duas condutas (aparentemente) similares, ou seja, a falta de entrega de quantias devidas à administração tributária e a falta de entrega de quantias devidas à segurança social, é constitucionalmente proibida ou se, pelo contrário, existe alguma justificação para essa distinção.
O Tribunal Constitucional já se debruçou sobre a possibilidade de fixação, pelo legislador, de penas distintas aplicáveis a tipos de crime que envolvem o preenchimento de elementos típicos similares, ainda que previstos em diplomas legais autónomos. A esse propósito, discutiu-se a admissibilidade constitucional de soluções normativas que puniam, de modo mais gravoso, crimes praticados por militares (ex: crimes de burla, de falsificação e de insubordinação por meio de ameaças), em contraposição com tipos de crimes idênticos, genericamente previstos no Código Penal (assim, ver Acórdãos n.º 347/86, n.º 370/94, n.º 958/96, n.º 329/97 e n.º 108/99, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).
Desta jurisprudência extrai-se, por um lado, que o Tribunal tem entendido que o respeito pelos princípios da igualdade e da proporcionalidade pressupõe a susceptibilidade de deslindar, no tipo de ilícito mais severamente punido, um particular factor que legitime a agravação da medida abstracta da pena aplicável. Quer dizer, o tratamento diferenciado de condutas penalmente puníveis pode justificar-se, em função de determinados critérios objectiváveis, designadamente, pelas concretas características dos agentes do crime.
Por outro lado, tendo em consideração que o legislador dispõe de uma ampla liberdade de conformação normativa, a intervenção do Tribunal Constitucional deve limitar-se aos casos em que se verifique uma violação grave e manifesta de tais princípios.
Assim sendo, importa, portanto, verificar se subjazem razões substantivas que justifiquem o tratamento legislativo diferenciado de condutas (aparentemente) similares, neste caso, da falta de entrega de quantias devidas à administração tributária e da falta de entrega de quantias devidas à segurança social.
Deve, desde já, frisar-se que, por força da alteração legislativa introduzida pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, o artigo 105º, n.º 1, do RGIT passou apenas a incriminar a falta de entrega de quantias superiores a 7.500 €. Contudo, tal descriminalização não implicou uma integral ausência de responsabilização dos sujeitos de tal dever legal de entrega, visto que tal omissão continua a ser punida a título de contra-ordenação, por força do artigo 114º do RGIT. Consequentemente, a falta de entrega de quantias devidas à administração tributária apenas implica a prática de contra-ordenação, quando o montante em dívida ascenda a 7.500 €, enquanto a falta de entrega de montante similar, à segurança social, envolve a prático do crime tipificado no artigo 107º, n.º 1, do RGIT.
O Tribunal Constitucional já teve oportunidade de se pronunciar sobre o problema do concurso entre estas três normas jurídicas (artigos 105º, 107º, do RGIT, de um lado, e artigo 114º, do RGIT, por outro). Fê-lo no Acórdão n.º 61/07 (disponível in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), nos termos do qual reafirmou jurisprudência anterior decisiva para a boa decisão da presente questão normativa. Veja-se, então:
“No fundo, os agora recorrentes consideram que, ao admitir a hipótese de o mesmo facto ser havido como crime ou como contra-ordenação, a lei, por um lado, reconhece a falta de dignidade penal do mesmo, assim violando o artigo 2º e o n.º 2 do artigo 18º da Constituição e, por outro, cria um privilégio injustificado para os créditos de que é titular o Estado, agora ofendendo o artigo 13º, também da Constituição.
O Tribunal Constitucional já por diversas vezes afirmou que cabe no âmbito da liberdade de conformação do legislador a determinação das condutas que devem ser criminalizadas. Necessário é, naturalmente, que a opção se não faça em violação das regras e princípios constitucionais relevantes na matéria. Assim, por exemplo, no acórdão n.º 134/2001 (www.tribunalconstitucional.pt), neste ponto transcrevendo o acórdão n.º 604/99 (Diário da República, II série, de 26 de Maio de 2000), relembrou-se o seguinte:
«Como se observou noutro aresto (…), o nº 1142/96, “se é sabido que o direito penal de um Estado de Direito visa a protecção de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário, só estes assumindo dignidade penal, o certo é que a Constituição não contém qualquer proibição de criminalização, e, observados que sejam certos princípios, como sejam o princípio da justiça, o princípio da humanidade e o princípio da proporcionalidade [...] 'o legislador goza de ampla liberdade na individualização dos bens jurídicos carecidos de tutela penal (e, assim, na decisão de quais os comportamentos lesivos de direitos ou interesses jurídico-constitucionalmente protegidos que devem ser defendidos pelo recurso a sanções penais)', (na linguagem do acórdão nº 83/95, publicado no Diário da República, II Série, nº 137, de 16 de Junho de 1995, que seguiu na linha dos acórdãos nºs. 634/93 e 650/93, publicados no Diário da República, II Série, Suplemento, nº 76, de 31 de Março de 1994).
É evidente – lê-se no citado acórdão nº 634/83 – que o juízo sobre a necessidade do recurso aos meios penais cabe, em primeira linha, ao legislador, ao qual se há-de reconhecer, também nesta matéria, um largo âmbito de discricionariedade. A limitação da liberdade de conformação legislativa, nestes casos, só pode, pois, ocorrer quando a punição criminal se apresente como manifestamente excessiva'».
Ora, tal como se concluiu no acórdão n.º 604/99 e se reproduziu no acórdão n.º 134/2001, também as normas em apreciação no presente recurso não infringem os limites constitucionalmente impostos à criminalização, não envolvendo, como ali se escreveu, 'uma situação reconduzível, pela sua excessividade, à violação do princípio da proporcionalidade e ao desrespeito do artigo 18º da CR'.
Com efeito, e tal como o acórdão recorrido claramente explica e o Tribunal Constitucional já também afirmou, as condutas incriminadas (actualmente) pelos artigos 105º (abuso de confiança fiscal) e 107º (abuso de confiança contra a segurança social) põem em causa interesses de tal forma relevantes que legitimam a opção do legislador.
(…)».
Por fim, no acórdão n.º 54/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt) o Tribunal veio considerar estas considerações acabadas de transcrever plenamente transponíveis para a incriminação hoje constante do artigo 105º do RGIT, orientação que novamente se reitera e que vale igualmente para o artigo 107º do RGIT.”
Partindo da jurisprudência citada, dir-se-á que é impossível negar alguma similitude entre os elementos típicos do artigo 105º, n.º 1, do RGIT e os elementos típicos do artigo 107º, n.º 1, do RGIT. Ambos pressupõem a falta de cumprimento do dever de entrega de quantias retidas a terceiros, fosse relativamente a trabalhadores – retenção de imposto na fonte, para efeitos de IRS, ou retenção de parcela de contribuição devida à segurança social, com consequente dever de posterior entrega ao Estado. Por outro lado, ao contrário do que sucedeu a propósito das normas que foram alvo de apreciação pelos Acórdãos n.º 347/86, n.º 370/94, n.º 958/96, n.º 329/97 e n.º 108/99 (supra citados), relativas a crimes praticados por militares, nem sequer se pode afirmar que o crime em causa seja praticado no exercício de uma função específica e, como tal, exija uma particular característica do respectivo agente. E, mesmo que se admitisse que a função em causa seria a de administrador ou de gerente de pessoas colectiva de natureza comercial, tal apropriação indevida tanto pode ocorrer nos casos previstos no n.º 1 do artigo 105º do RGIT, como nos casos do n.º 1 do artigo 107º do mesmo diploma legal.
Chegados a este ponto, poderia parecer que não existem fundamentos substantivos que justifiquem o tratamento diferenciado daquelas situações. Porém, assim não é. Se analisarmos o regime específico de financiamento da Segurança Social, verificaremos que é legítimo ao legislador ordinário estabelecer normas sancionatórias distintas, em função de objectivos de preservação daquele sistema de financiamento, atentas as suas peculiaridades.
Sendo certo que o n.º 2 do artigo 63º da CRP determina que “incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado”, não é menos verdade que tal sistema foi concebido pelo legislador ordinário como um sistema fortemente contributivo, ou seja, assente nas contribuições suportadas pelos respectivos beneficiários, em função das respectivas remunerações (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2010, p. 817). Por força do artigo 92º da Lei de Bases da Segurança Social (aprovada pela Lei n.º 4/2007 de 16 de Janeiro), as fontes de financiamento do sistema público de Segurança Social são diversificadas, delas constando, designadamente, as quotizações dos trabalhadores beneficiários [alínea a) do referido artigo 92º] e as contribuições das entidades empregadoras [alínea b)], para além das transferências provenientes do Orçamento de Estado [alínea c)].
Assim sendo, o risco de ocorrência de um movimento sistemático de recusa de entrega das contribuições devidas pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras colocaria em causa, de modo evidente, a própria subsistência do sistema de Segurança Social, tal como constitucional e legalmente instituído. Deste modo, pode compreender-se que o legislador ordinário tenha optado por incriminar, de modo mais intenso, condutas que aparentemente se apresentavam como similares, mas que, em função das suas específicas características, se apresentam juridicamente mais desvaliosas.
Ora, parece ter sido essa a opção do legislador. Ou seja, estabelecer um regime de responsabilidade criminal mais intenso, no caso dos crimes cometidos contra a Segurança Social do que no caso dos crimes cometidos contra a Administração Tributária.
Conforme notado por Isabel Marques da Silva (cfr. Regime Geral das Infracções Tributárias, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 109 e 110), no decurso dos trabalhos preparatórios do RGIT, chegou a equacionar-se a concepção de tipos de crime unificados, abrangendo um tipo comum de fraude e de abuso de confiança, tendo tal solução sido, manifestamente, repudiada pelo legislador ordinário. Com efeito, o RGIT procedeu a uma distinção, no Título da Parte III, entre “Crimes tributários comuns” (Capítulo I), “Crimes aduaneiros” (Capítulo II), “Crimes fiscais” (Capítulo III) e “Crimes contra a segurança social” (Capítulo IV). Aliás, a referida Autora chega mesmo a considerar que a fusão dos tipos penais fiscais com os tipos penais relativos à segurança social “além de tecnicamente errada, [implicaria] uma manifestação abusiva da fiscalidade do sistema, absolutamente incompreensível, face aos objectivos e natureza do sistema de segurança social, inscritos na sua Lei de Bases” (cfr. o.c., p.110).
Em suma, o legislador ordinário tomou uma opção legiferante, em função das peculiaridades próprias do modelo de financiamento do sistema público de Segurança Social, que assenta, maioritariamente, nas contribuições suportadas pelos trabalhadores e pelas entidades empregadoras. Consequentemente, o legislador considerou que a diferenciação entre os crimes fiscais e os crimes contra a Segurança Social assenta não só numa maior ilicitude do facto praticado, na medida em que se trata de um comportamento que compromete a subsistência financeira do sistema público de Segurança Social.
Do exposto resulta que não é desproporcionado nem viola o princípio da igualdade que o legislador, ao abrigo da sua margem de liberdade normativa, opte por punir, de modo mais intenso, condutas que envolvam a falta de pagamento de quantias devidas à Segurança Social.
Em conclusão, o presente recurso não merece provimento.
III – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, decide-se negar provimento ao presente recurso;
Custas devidas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 UC´s, nos termos do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 07 de Outubro.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2011
Ana Maria Guerra Martins (vencida quanto ao conhecimento, conforme declaração anexa).
Vítor Gomes
Carlos Fernandes Cadilha
Maria Lúcia Amaral
Gil Galvão (vencido quanto ao conhecimento, no essencial, pelas razões constantes da declaração de voto da Exma. Conselheira Ana Guerra Martins, para a qual remeto).
Declaração de voto
Votei o não conhecimento do objecto deste recurso, por considerar que da resposta apresentada pelo recorrente resulta evidente que aquele apenas teceu considerações genéricas sobre a eventual violação de disposições constitucionais, sem que tivesse – em momento algum – reputado de inconstitucional uma precisa interpretação normativa do n.º 1 do artigo 107º do RGIT. Aliás, conforme resulta da sua própria resposta, o recorrente aparenta defender que a referida suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa teria ocorrido nos §§ 3. e 4. das suas conclusões de recurso perante o Tribunal da Relação de Coimbra.
Sucede, porém, que no § 3. das referidas conclusões, o recorrente nunca referiu, de modo preciso, expresso e inequívoco, o n.º 1 do artigo 107º do RGIT, ainda que – como demonstra o Ministério Público – seja altamente controverso qual o preceito legal do qual pode ser extraída norma alegadamente inconstitucional. Por outro lado, do § 4. das conclusões apenas resulta que o recorrente qualifica a própria decisão recorrida como contrária à Constituição. Para que houvesse uma suscitação processualmente adequada da questão de inconstitucionalidade (artigo 72º, n.º 2, da LTC), necessário seria que o recorrente tivesse identificado, de modo inequívoco, a norma extraída do preceito legal que elegeu como objecto do presente recurso, ao invés de tecer considerações genéricas sobre interpretações normativas que, segundo aquele, teriam sido aplicadas pela decisão recorrida.
Além disso, acresce ainda que a decisão recorrida incidiu a sua análise sobre se a alteração legislativa ao artigo 105º do RGIT, introduzida pelo artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008, abrangeria (ou não) o tipo de crime previsto no artigo 107º do RGIT, concluindo pela negativa. Daqui decorre que a decisão recorrida considerou que a opção legislativa determinante, para efeitos do julgamento, seria aquela corporizada no referido artigo 113º da Lei n.º 64-A/2008 e não, pela negativa, uma qualquer omissão na letra da norma extraída do artigo 107º do RGIT, que permaneceu imutável.
Em suma, foram estas as razões que me levaram a defender o não conhecimento do objecto do presente recurso.
Lisboa, 16 de Fevereiro de 2011.- Ana Maria Guerra Martins.
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