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Processo n.º 636/2010
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Cadilha
Acordam na 3ª Secção do Tribunal Constitucional
1. Relatório
Por sentença de 19 de Julho de 2010, decidiu o Tribunal Judicial de Castelo Branco, no processo n.º 4/10.5GCCTB, absolver o arguido A. da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal.
O Tribunal considerou, na respectiva fundamentação, que os actuais artigos 153.º, n.º 8, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada (CE), cuja redacção foi introduzida, respectivamente, pelos Decretos-Lei nºs. 44/2005, de 23 de Fevereiro, e 265-A/2001, de 28 de Setembro, e, bem assim, a norma do artigo 152.º, n.º 3, do mesmo Código, também ela objecto de alterações introduzidas pelos citados diplomas legais, padecem de inconstitucionalidade orgânica, porque, sem a necessária autorização legislativa (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa), retiraram inovatoriamente ao condutor a possibilidade de, sem incorrer no crime de desobediência, recusar a colheita de sangue para determinação da taxa de alcoolemia, pelo que, assentando a prova desta, imputada ao arguido, em relatório pericial elaborado na sequência da recolha de sangue sem o seu consentimento, como (antes) legalmente exigido – o que foi considerado meio ilegal de prova – se impunha a absolvição do arguido.
Dessa decisão recorreu o Ministério Público para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea a), da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), «na parte em que recusou a aplicação das normas constantes dos arts. 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada com fundamento em inconstitucionalidade orgânica».
Admitido o recurso, pelo Tribunal recorrido, prosseguiram os autos para alegações, tendo o Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional concluído pela não inconstitucionalidade orgânica da norma do artigo 156.º, n.º 2, do CE, porquanto, no seu entender, apesar de versar, sem prévia autorização legislativa, matéria inscrita no âmbito da reserva relativa da competência da Assembleia da República, não criou um regime jurídico materialmente diverso daquele que o órgão com competência para tal havia antes instituído, pelo que, na linha do que tem o Tribunal Constitucional reiteradamente sustentado, em situações idênticas, é, no caso, irrelevante a intromissão formal, operada pelo citado decreto-lei, em domínio de reserva relativa de competência parlamentar.
O recorrido, por seu lado, não contra-alegou.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
2. Fundamentação
2.1. Delimitação do objecto do recurso
A decisão recorrida concluiu pela inconstitucionalidade orgânica das normas dos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, por considerar, na linha do entendimento vertido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 9 de Dezembro de 2009, cuja fundamentação, nesta parte, transcreve, que essas disposições, conjugadamente aplicadas, tendo sido emitidas sem prévia autorização legislativa, vieram retirar ao condutor de veículo automóvel interveniente em acidente de viação a possibilidade, anteriormente prevista, de recusar a colheita de sangue para determinação da taxa de alcoolemia.
Nesse sentido, o tribunal recorrido considerou que «a concreta recolha de sangue ao arguido (…) que serviu de base à análise para apurar o seu grau de alcoolémia, constitui prova ilegal, que não pode produzir efeitos em juízo e, nessa medida, não pode sustentar qualquer condenação».
Estando, no entanto, em causa apenas um procedimento destinado a detectar a condução sob influência do álcool por parte de um condutor interveniente em acidente de viação, a norma que é directamente aplicável ao caso, e que o tribunal efectivamente aplicou como ratio decidendi, é a do artigo 156.º, n.º 2, do CE, que se refere aos exames a efectuar em caso de acidente, e não a do artigo 153.º, n.º 8, que antes alude aos procedimentos normais de fiscalização rodoviária.
Por outro lado, também o juízo de inconstitucionalidade dirigido, pelo Tribunal recorrido, à norma do artigo 152.º, n.º 3, do CE, que pune por desobediência quem se recusa a submeter às generalidade das provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, acaba consumido, no contexto normativo complexo em que é formulado, pelo juízo de inconstitucionalidade de que é objecto a norma central do artigo 156.º, n.º 2, do CE, por decorrer deste último e assentar em suporte argumentativo que a têm por referência, pelo que, não estando, além disso, em causa a prática, pelo arguido, de um crime de desobediência, apenas se afigura determinante, na economia da decisão recorrida, o que dispõe o citado artigo 156.º, n.º 2, do CE, e a decisão que, em matéria de constitucionalidade, a tem por objecto.
Deste modo, apenas se conhecerá da inconstitucionalidade da norma do artigo 156.º, n.º 2, do CE, por ser a única que tem efectivo reflexo no julgamento do caso concreto.
2.2. Do mérito do recurso
A questão de inconstitucionalidade que constitui objecto do presente recurso foi recentemente apreciada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão n.º 485/2010 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt), que decidiu «não declarar a inconstitucionalidade orgânica da norma do n.º 2 do artigo 156.º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, renumerado pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro», com a seguinte fundamentação:
«O Tribunal Constitucional, na apreciação de questões de inconstitucionalidade orgânica, tem reiteradamente sustentado, em jurisprudência consolidada, que o que releva, para efeitos da sua verificação, não é o facto de o Governo legislar sobre matéria da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República sem estar munido da competente autorização parlamentar, mas a circunstância de o fazer, nessas condições, em termos que importem uma inovatória alteração do regime jurídico anteriormente vigente (cf., entre outros, acórdão n.º 114/08, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Considerando, por um lado, que a questão da exigência legal do consentimento do visado para a recolha de sangue, para o efeito de determinação da taxa de álcool no sangue, tem directas repercussões na configuração típica do crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 152.º, n.º 3, do CE, e 348.º, n.º 1, alínea a), do CP, matéria que integra o âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP), e, por outro, que efectivamente não houve, no caso, autorização legislativa que legitimasse o Governo a legislar sobre essa matéria, interessa começar por delinear o sentido evolutivo da legislação referente aos procedimentos para fiscalização da condução sob influência do álcool, para determinar se é possível atribuir à indicada norma do artigo 156.º, n.º 2, do CE um efeito de direito inovatório.
Sobre essa matéria, na parte que agora mais interessa considerar, o Código da Estrada, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, editado ao abrigo de autorização legislativa (Lei n.º 97/97, de 23 de Agosto), passou a dispor o seguinte:
Artigo 158.º
Princípios gerais
(…)
3- Quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas, para as quais não seja necessário o seu consentimento nos termos dos nºs. 2 e 3 do artigo 159.º, é punido por desobediência.
(…).
Artigo 159.º
Fiscalização da condução sob influência do álcool
1 - O exame de pesquisa de álcool no ar expirado é realizado por agente de autoridade mediante a utilização de material aprovado para o efeito.
2 - Se o resultado do exame previsto no número anterior for positivo, o agente de autoridade deve notificar o examinando, por escrito ou, se tal não for possível, verbalmente, daquele resultado, das sanções legais dele decorrentes e de que pode, de imediato, requerer a realização de contraprova.
3 - A contraprova referida no número anterior deve ser realizada por um dos seguintes meios, de acordo com a vontade do examinando:
a) Novo exame, a efectuar através de aparelho aprovado especificamente para o efeito;
b) Análise de sangue.
4 - No caso de opção pelo novo exame previsto na alínea a) do número anterior, o examinando deve ser conduzido de imediato a local onde esse exame possa ser efectuado.
5 - Se o examinando preferir a realização de uma análise de sangue, deve ser conduzido o mais rapidamente possível a estabelecimento hospitalar, a fim de ser colhida a quantidade de sangue necessária para o efeito.
6 - Quando se suspeite da utilização de meios susceptíveis de alterar momentaneamente o resultado do exame, pode o agente da autoridade mandar submeter o suspeito a exame médico.
Artigo 162.º
Exames em caso de acidente
1- Os condutores e quaisquer pessoas que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos ao exame de pesquisa de álcool no ar expirado nos termos do artigo 159.º.
2- Quando não tiver sido possível a realização do exame no local do acidente, deve o médico do estabelecimento hospitalar a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos proceder aos exames necessários para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
3- No caso referido no número anterior, o exame para pesquisa de álcool no sangue só não deve ser realizado se houver recusa do doente ou se o médico que o assistir entender que de tal exame pode resultar prejuízo para a saúde.
4- Não sendo possível o exame de pesquisa de álcool nos termos do número anterior deve o médico proceder aos exames que entender convenientes para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.»
Entretanto, através do Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, o Governo, no uso de competência legislativa própria que lhe é atribuída pela alínea a) do n.º 1 do artigo 198.º da CRP, procedeu à republicação do Código da Estrada, introduzindo alterações à redacção desses referidos preceitos, nos seguintes termos:
Artigo 158.º
Princípios gerais
1 - Devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas:
a) Os condutores;
b) Os peões, sempre que sejam intervenientes em acidentes de trânsito;
c) As pessoas que se propuserem iniciar a condução.
2 - ...
3 - As pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas são punidas por desobediência.
(…)
Artigo 159.º
Fiscalização da condução sob influência de álcool
[…]
7 - Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se se recusar, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
Artigo 162.º
Exames em caso de acidente
1 - Os condutores e os peões que intervenham em acidente de trânsito devem, sempre que o seu estado de saúde o permitir, ser submetidos a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, nos termos do artigo 159.º
2 - Quando não tiver sido possível a realização do exame referido no número anterior, o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool.
3 - Se o exame de pesquisa de álcool no sangue não puder ser feito, o médico deve proceder a exame pericial para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
[…]
Por fim, o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, também emitido sem autorização legislativa, manteve o enunciado dos anteriores artigos 158.º, n.º 2, e 162.º, n.º 2, que, por efeito da renumeração operada por esse diploma, passou a constar dos artigos 152.º, n.º 2, e 156.º, n.º 2, e alterou a redacção do antigo artigo 159.º, n.º 7, a que passou a corresponder o artigo 153.º, n.º 8, que é do seguinte teor:
Artigo 153.º
Fiscalização da condução sob influência de álcool
[…]
8 - Se não for possível a realização de prova por pesquisa de álcool no ar expirado, o examinando deve ser submetido a colheita de sangue para análise ou, se esta não for possível por razões médicas, deve ser realizado exame médico, em estabelecimento oficial de saúde, para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
Uma precisão que importa, desde logo, efectuar é que, desde a alteração introduzida ao Código da Estrada pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, que pela primeira vez inseriu no articulado as disposições relativas à fiscalização da condução sob influência do álcool - que antes constava de legislação avulsa -, esse diploma sempre consignou mecanismos autónomos de detecção do grau de alcoolemia, consoante se tratasse de situações de fiscalização pelos agentes da autoridade do trânsito rodoviário, ou situações resultantes da ocorrência de acidente de viação.
Por outro lado, do cotejo das sucessivas versões que vieram a regular essa matéria, é possível extrair os seguintes elementos de distinção:
a) a partir das alterações ao CE introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, adoptado ao abrigo de autorização legislativa, passou a prever-se o crime de desobediência simples para quem recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool (artigo 158.º, n.º 3);
b) admitia-se, no entanto, a possibilidade de recusa de análise de sangue, por parte do interessado, quer no âmbito de uma acção de fiscalização, quando fosse requerida a contraprova relativamente ao resultado obtido através da pesquisa de álcool no ar expirado, quer ainda, em caso de acidente de viação, quando não fosse possível a realização no local do exame de pesquisa de sangue no ar expirado e o sinistrado houvesse de ser conduzido a estabelecimento hospitalar (artigo 159.º, n.º 3, e 162.º, n.º 3);
c) no domínio da nova redacção dada a essas disposições pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, publicado sem prévia autorização legislativa, reconhecia-se ao examinando o direito a recusar colheita de sangue, sem necessidade de fundamentação, nos casos em que fosse impossível proceder a pesquisa de álcool em ar expirado (artigo 159.º, n.º 7), embora não existisse expressa referência a essa possibilidade quando ocorresse acidente de viação, caso em que a lei se limitava a consignar que, não sendo possível a realização do exame de pesquisa de álcool no ar expirado, «o médico do estabelecimento oficial de saúde a que os intervenientes no acidente sejam conduzidos deve proceder à colheita da amostra de sangue para posterior exame de diagnóstico do estado de influenciado pelo álcool (artigo 162.º, n.º 2);
d) todavia, no contexto normativo introduzido pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, emitido também sem prévia autorização legislativa, retira-se ao examinando, mesmo no âmbito das acções de fiscalização, o direito a recusar colheita de sangue quando não seja possível proceder a pesquisa de álcool em ar expirado, admitindo-se apenas a realização de exame médico alternativo quando a colheita de sangue «não for possível por razões médicas» (artigo 153.º, n.º 8);
e) em relação aos exames a realizar em caso de acidente, manteve-se, no entanto, a anterior redacção do artigo 162.º, n.º 2, em que já não se fazia alusão à possibilidade de recusa a exame através da colheita de sangue, tendo-se procedido apenas à renumeração desse preceito (artigo 156.º, n.º 2).
Uma dúvida que poderá colocar-se, numa interpretação puramente literal do quadro legislativo, diz respeito à subsistência, no domínio do regime legal definido pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de dois regimes antagónicos relativamente ao direito de recusar a realização do exame de sangue, visto que esse direito era reconhecido à generalidade dos condutores no âmbito dos procedimentos de fiscalização rodoviária (artigo 159.º, n.º 7), e já não vinha mencionado na situação paralela em que se pretendesse determinar o estado de influenciado pelo álcool em relação a condutores ou peões intervenientes em acidente de trânsito (artigo 162.º, n.º 2).
Mesmo admitindo, porém, numa interpretação que tenha em conta a unidade do sistema jurídico, que o referido artigo 162.º, n.º 2, não pretendeu instituir um regime divergente daquele que ainda vigorava para o caso análogo, o certo é que com a reformulação do enunciado verbal daquele outro preceito, através da nova redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 44/2005 (a que corresponde agora o artigo 153.º, n.º 8), em que se substitui a expressão «ou, se se recusar» pelo inciso «ou, se esta não for possível por razões médicas», fica sem qualquer base de apoio o elemento interpretativo que pretenda fundar-se na coerência intrínseca do sistema. Ou seja, no complexo normativo que regula os procedimentos de fiscalização da condução sob a influência do álcool, à norma do actual artigo 156.º, n.º 2, haverá de atribuir-se o mesmo sentido inovatório que já decorria da disposição paralela do artigo 153.º, n.º 8.
Com referência a esta última norma, o Tribunal Constitucional, pelo acórdão n.º 275/09, considerou que ela enferma de inconstitucionalidade orgânica, por violação do artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição, na medida em que se trata de disposição que, tendo sido emitida pelo Governo sem autorização legislativa, agrava a responsabilidade criminal dos condutores, implicando que possam ser punidos por crime de desobediência, por força do estabelecido no artigo 152.º, n.º 3, do CE, aqueles que recusem a sujeição a colheita de sangue para análise, ainda que esse direito lhes tivesse sido anteriormente reconhecido.
As razões invocadas no referido acórdão são inteiramente transponíveis para o caso dos autos, visto que está em causa, como se viu, uma norma que igualmente impede a possibilidade de os condutores recusarem a análise de sangue na situação paralela em que se pretenda determinar o estado de influenciado pelo álcool em caso de ocorrência de acidente de viação.
5. Sucede que entrou, entretanto, em vigor a Lei n.º 18/2007, de 17 de Maio, que aprovou o «Regulamento de Fiscalização da Condução sob influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas».
Este diploma visou revogar e substituir o Decreto-Regulamentar n.º 24/98, de 30 de Outubro, que regulamentava o regime jurídico da fiscalização da condução sob a influência do álcool e de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, que então constava do Código da Estrada com as alterações que lhe foram introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, e, desse modo, toma implicitamente como base o novo regime legal que decorre das sucessivas alterações que foram introduzidas pelos diplomas legislativos posteriores, incluindo as resultantes dos Decretos-Lei n.º 265-A/2001 e n.º 44/2005.
Por outro lado, o novo Regulamento refere-se à «análise de sangue» como um dos métodos de detecção e quantificação da taxa de álcool (artigo 1.º, n.º 2), e especifica que há lugar à realização daquele exame médico «[q]uando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a realização daquele teste» (artigo 4.º, n.º 1). Além de que assume ainda um carácter interpretativo relativamente às disposições do n.º 8 do artigo 153.º e do n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada, ao estatuir no seu artigo 7.º o seguinte:
«1- Para efeitos do disposto no n.º 8 do artigo 153.º e no n.º 3 do artigo 156.º do Código da Estrada, considera-se não ser possível a realização do exame de pesquisa de álcool no sangue quando, após repetidas tentativas, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente.
[…]
Deste modo, o legislador parlamentar esclarece que a impossibilidade de realização do exame de pesquisa de álcool no sangue se afere unicamente em função da impossibilidade médica de proceder à própria colheita de sangue em quantidade suficiente para permitir a sua análise, afastando a hipótese de o exame médico alternativo à colheita de sangue poder vir a ser efectuado com base na simples recusa do examinando, e dando, assim, implícita cobertura ao regime legal que decorre das disposições dos artigos 156.º, n.º 2, e 153.º, n.º 8, na redacção que lhes foi dada, respectivamente, pelos Decretos-Lei n.ºs 265.º-A/2001 e 44/2005), editados pelo Governo sem prévia autorização legislativa.
À norma do artigo 7.º da Lei n.º 18/2007 pode, por conseguinte, atribuir-se um efeito equivalente ao de uma lei interpretativa, nos termos do artigo 13.º do Código Civil, embora se não possa considerar a retroacção de efeitos à data da entrada em vigor das normas legais interpretadas, em face do princípio da não retroactividade da lei penal, que impede que possam ser qualificadas como crime condutas que, no momento da sua prática, eram tidas como irrelevantes - artigo 29.º, n.º 1, da CRP (cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1993, pág. 245).
Cabe ainda notar que o Tribunal Constitucional já considerou que a inconstitucionalidade orgânica não é pertinentemente invocável quando a Assembleia da República, em processo de apreciação parlamentar de decreto-lei, manifesta inequívoca vontade política de manter na ordem jurídica as normas organicamente inconstitucionais que foram submetidas à sua apreciação (acórdão n.º 415/89), ou, de outro modo, quando revela uma vontade positiva através da aprovação de alterações ao diploma ou rejeição de propostas de alteração relativamente às normas cuja inconstitucionalidade orgânica vem questionada (acórdão n.º 786/96).
No caso vertente, não estamos perante um processo legislativo específico de aprovação parlamentar de diplomas emanados do Governo, a que se refere o procedimento do artigo 169.º da Constituição, pelo que não é directamente aplicável a referida jurisprudência constitucional. Mas, no presente contexto, não pode deixar de atribuir-se relevo à circunstância de a Assembleia da República, no uso da competência legislativa geral consagrada no artigo 161.º, alínea c), da Constituição, ter regulado as matérias da fiscalização da condução sob a influência do álcool, que, nos termos do artigo 6.º, n.º 1, do diploma preambular do Código da Estrada, se encontrava atribuído ao Governo.
Verificando-se, por outro lado, que o órgão parlamentar, através da emissão das referidas disposições dos artigos 4.º e 7.º do Regulamento aprovado pela Lei n.º 18/2007, veio consignar um regime jurídico consonante com a solução de direito que resultava já, segundo os critérios gerais da interpretação da lei, da referida disposição do artigo 156.º, n.º 2, do CE, deixa de haver motivo para manter a arguição de inconstitucionalidade orgânica, até porque por efeito da intervenção parlamentar se operou a novação da respectiva fonte.
E uma vez que, na situação vertente, os factos susceptíveis de qualificação jurídico-penal se reportam a 2009, e, por isso, a um momento posterior à entrada em vigor da mencionada Lei, nenhum obstáculo há a que o juízo de não de inconstitucionalidade se torne aplicável ao caso concreto«.
É para esta jurisprudência que agora se remete, confirmando, com os fundamentos nela explanados e acima transcritos, o juízo de não inconstitucionalidade.
3. Decisão
Pelo exposto, decide-se:
a) não julgar organicamente inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 156.º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, renumerado pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro;
b) e, em consequência, conceder provimento ao recurso e ordenar a reforma da decisão recorrida em conformidade com o juízo que agora se formula quanto à questão de constitucionalidade.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Janeiro de 2011.- Carlos Fernandes Cadilha – Maria Lúcia Amaral – Vítor Gomes – Gil Galvão.
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