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Processo n.º 700/10
2ª Secção
Relator: Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Acordam na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal de Instrução Criminal de Évora, em que é recorrente o Ministério Público e recorrida A., foi interposto recurso de constitucionalidade, da sentença daquele Tribunal, na parte em que recusou a aplicação, com fundamento em inconstitucionalidade orgânica, da norma do artigo 156.º, n.º 2, conjugada com as normas dos artigos 152.º, n.º 3, e 153.º, n.º 8, todos do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
2. O representante do Ministério Público junto deste Tribunal Constitucional apresentou alegações onde conclui o seguinte:
«1. Quer segundo o artigo 162º, nºs 1 e 2 do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, quer segundo o artigo 156º do mesmo Código na actual redacção (saída das alterações operadas pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001, de 28 de Setembro e pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro), em caso de acidente trânsito, quando não for possível realizar o exame de pesquisa de álcool no ar expirado, deve ser realizado, no estabelecimento de saúde para onde os intervenientes forem conduzidos, exame de pesquisa de álcool no sangue.
2. Como resulta da análise conjugada dos nº 2 e 3 do artigo 156º da Código da Estrada, na actual redacção, com o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 162º, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98, em qualquer dos regimes, o interveniente em acidente pode recusar submeter-se àquele exame, caso em que se procederá à realização de outros exames médicos para diagnosticar o estado de influenciado pelo álcool.
3. Esta conclusão também se extrai do Acórdão nº 275/2009 do Tribunal Constitucional que julgou organicamente inconstitucional a norma do nº 8 do artigo 153º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, uma vez que se considerou que a alteração introduzida por aquele diploma legal retirara ao condutor o direito de recusar a recolha de sangue, direito que a redacção anterior (dada pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001), lhe concedia.
4. Ora, o Decreto-Lei nº 44/2005 não introduziu qualquer alteração relevante ao artigo onde se inclui a norma do nº 2 do artigo 156º do Código da Estrada, mantendo-se, no essencial, a redacção anterior, conferida pelo Decreto-Lei nº 265-A/2001 (artigo 162º).
5. Deste modo, não tendo a actual redacção do artigo 156º do Código da Estrada qualquer carácter inovatório em relação ao estabelecido no artigo 162º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 2/98, a norma do nº 2 daquele artigo 156º não é organicamente inconstitucional, mesmo entendendo que se está perante matéria cujo tratamento legislativo cabe na competência exclusiva da Assembleia da República (artigo 165.º, n.º 1, alíneas b) e c) da Constituição).
6. Pelo exposto, deve conceder-se provimento ao recurso.»
3. A recorrida contra-alegou concluindo o seguinte:
«I. A norma do 156°, n.° 2 do Código da Estrada, com a redacção fixada pelo Decreto-Lei n.° 44/2005, de 23 de Fevereiro deve ser interpretada de forma conjugada com os artigos 152°, n.°3 e 153°, n.° 8 do mesmo Código;
II. A redacção destas normas, introduzida pelo Decreto-Lei n.° 44/2005, de 23 de Fevereiro, vem agravar a responsabilidade criminal dos condutores que recusem sujeitar-se a colheita de sangue, nos casos em que seja tecnicamente possível fazê-lo;
III. Por apresentarem carácter inovatório, o legislador governamental necessitava da autorização legislativa para fazer estas alterações (na medida em que a decisão normativa primária cabia à Assembleia da República, por força da alínea c) do n.° 1 do artigo 165.° da CRP)
IV. Ora como as normas em causa foram alteradas pelo Governo sem autorização legislativa, verifica-se a inconstitucionalidade orgânica das mesmas, nomeadamente a inconstitucionalidade orgânica do artigo 156.°, n.° 2 do Código da Estrada;
V. Acresce que o n.° 2 do artigo 156.° do Código da Estrada tem que ser interpreta d forma conjugada com o n.° 8 do artigo 153.° do Código da Estrada e, por isso, sendo esta uma norma organicamente inconstitucional, também o será, por maioria de razão, o n.° 2 do artigo 156.° do Código da Estrada.
VI. O presente recurso é inútil pois mesmo que se declare a constitucionalidade do artigo 156.°, n.° 2 do Código da Estrada, essa decisão não alterará o sentido da decisão instrutória;
VII. A questão da (in)constitucionalidade não alterará o sentido da decisão instrutória, na medida em que o artigo 156.°, n.° 2 do Código da Estrada apenas se aplica aos casos em que não tiver sido possível submeter os condutores “a exame de pesquisa de álcool no ar expirado” e, na decisão instrutória, “em momento algum resulta (do processo) que a arguida não se encontrasse em condições de se submeter a pesquisa de álcool no ar expirado.”»
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
II - Fundamentação
A) (In)utilidade do recurso
5. A decisão do Tribunal de Instrução Criminal de Évora, ora recorrida, recusou a aplicação da norma do artigo 156.º, n.º 2, conjugada com as normas dos artigos 152.º, n.º 3, e 153.º, n.º 8, todas do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 25 de Fevereiro, na medida em que «impõem ao arguido a obrigatoriedade de recolha de amostra de sangue», ou seja, «não salvaguardam o direito do arguido a recusar a recolha de sangue». Entendeu o tribunal recorrido que o Governo não se encontrava autorizado a legislar em tal matéria, pelo que as normas padecem de inconstitucionalidade orgânica.
Mais considerou a decisão recorrida que, por um lado, não ficara demonstrada «a impossibilidade de realização de pesquisa de álcool no ar expirado, sendo por isso ilegítima a recolha por meio mais invasivo» e, por outro, que não ficara comprovado que a arguida tivesse sido devidamente informada da recolha de sangue para efeitos de pesquisa de álcool, pelo que se tratava de “prova proibida”, nos termos do artigo 126.º do Código de Processo Penal.
Em consequência, o tribunal recorrido decidiu não pronunciar a arguida A. pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.
O recorrente Ministério Público suscitou a questão da utilidade do conhecimento do objecto do recurso, na medida em que a decisão de considerar ilegal a prova (da taxa de alcoolemia) e a consequente decisão de não pronúncia assentaria, não apenas no fundamento da inconstitucionalidade orgânica das normas em causa, mas também no da ilegalidade da prova, por a recolha de sangue ter sido obtida sem prévia informação à arguida do fim a que se destinava. Conclui pela utilidade do recurso, em síntese, por duas razões: por um lado, porque a exigência de informação prévia do fim a que se destina a recolha de sangue perde relevância, enquanto fundamento da decisão, caso o Tribunal Constitucional venha a entender que as normas em causa não permitem a recusa e que, apesar disso, não são inconstitucionais; por outro lado, porque o fundamento da decisão – que não o de inconstitucionalidade – não está ainda consolidado, podendo a decisão aqui recorrida vir a ser revogada, em sede de recurso, nessa parte, subsistindo, nesse caso, apenas o fundamento da inconstitucionalidade.
A recorrida A. suscitou igualmente a inutilidade do presente recurso, mas com base no facto de não ter ficado demonstrado que não tivesse sido possível a realização de pesquisa de álcool no ar expirado, pelo que sempre careceria de fundamento a recolha de sangue ao abrigo do disposto no artigo 156.º, n.º 2, do Código da Estrada.
A questão da utilidade do presente recurso prende-se com a existência de fundamentos alternativos da sentença. Este Tribunal tem vindo a entender que, face à função instrumental do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade, não deve conhecer dos recursos de constitucionalidade quando a decisão recorrida comporte um fundamento alternativo, estranho ao objecto do recurso e suficiente para suportar o sentido da decisão. No entanto, este é um entendimento desenvolvido no âmbito dos recursos interpostos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, para os quais é pressuposto, além do mais, que o recorrente haja esgotado todos os recursos ordinários à sua disposição (cfr. o artigo 70.º, n.ºs 2 a 6, da LTC).
O recurso interposto ao abrigo da alínea a) do citado n.º 1 do artigo 70.º apresenta especificidades de regime, decorrentes da singularidade da situação gerada com a desaplicação por inconstitucionalidade, as quais, em nosso juízo, impedem a transposição daquele entendimento para o seu âmbito (porém, em sentido contrário, cfr., designadamente, os Acórdãos n.ºs 584/2009 e 282/2010).
Quando um tribunal recusa a aplicação de certa norma com fundamento em inconstitucionalidade está, com isso, a contrariar uma decisão de um órgão constitucionalmente dotado de poder legislativo. A situação suscita um interesse objectivo do ordenamento jurídico numa resolução rápida desse “conflito entre o poder judicial e o poder legislativo”, evitando que subsistam decisões judiciais de recusa de aplicação de normas, com fundamento em inconstitucionalidade, sem que esse juízo de inconstitucionalidade seja, de forma certa (independentemente da interposição do recurso de parte) e imediata, sindicado pelo Tribunal Constitucional, enquanto “garante” último da Constituição.
Daí que seja atribuída legitimidade ao Ministério Público para interpor recurso, sendo este obrigatório (artigo 72.º, n.º 3, da LTC) e admitido sem prévia exaustão dos recursos ordinários (cfr., a contrario, o n.º 2 do artigo 70.º da LTC).
Assim, quaisquer fundamentos alternativos que eventualmente sustentem – em paralelo com o juízo de inconstitucionalidade – o sentido da decisão recorrida, são fundamentos ainda não consolidados na ordem jurisdicional respectiva, uma vez que estão sujeitos a recurso ordinário e eventual posterior revogação. Não é, por isso, possível formular, com a segurança necessária, um juízo de prognose no sentido da manutenção do sentido da decisão com base em tais fundamentos alternativos.
Em consequência, nos recursos ao abrigo da alínea a), a utilidade processual deve ser medida, como mais desenvolvidamente se sustenta no Acórdão n.º 256/2002, pela projecção da decisão «(…)sobre o desfecho da acção, e não restritamente sobre a concreta decisão judicial recorrida, quando esta não é a decisão definitiva. Isto é: a utilidade processual é susceptível de ser aferida relativamente ao processo (à causa), não se reportando apenas à decisão recorrida)» - no mesmo sentido, já anteriormente, o Acórdão n.º 159/93, e, mais recentemente, os Acórdãos n.ºs 42/2008 e 162/2009. Pelo menos quando a decisão recorrida não for definitiva, não se requer que a inconstitucionalidade seja o fundamento único, nem sequer decisivo, da decisão: «basta que a desaplicação da norma tenha sido relevante para a decisão da causa, tenha estado entre os motivos que levaram o tribunal recorrido a proferir a decisão que proferiu» (Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed., Coimbra, 2010, p. 946).
Por todo o exposto, conclui-se pela utilidade do presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da citada alínea a) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
B) Delimitação do objecto do recurso
6. Apesar de a sentença recorrida e, consequentemente, o recurso interposto pelo Ministério Público, se referirem a um arco normativo formado pelos artigos 152.º, n.º 3, 153.º, n.º 8, e 156.º, n.º 2, todos do Código da Estrada, é manifesto que a inclusão do citado artigo 153.º, n.º 8, se deve a um lapso, uma vez que não tem qualquer aplicação ao caso, visto que o exame de sangue em causa foi realizado na sequência de um acidente de viação.
Acresce que o próprio recorrente, nas alegações produzidas neste Tribunal, acaba por restringir o objecto do recurso às normas dos artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na parte referente à possibilidade de o interveniente em acidente de viação poder recusar submeter-se ao exame de pesquisa de álcool no sangue (cfr. as respectivas alegações).
Deve, por isso, entender-se que o presente recurso tem por objecto as normas dos artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
C) Apreciação do mérito do recurso
7. A questão objecto do presente recurso foi recentemente apreciada, por esta 2.ª Secção do Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 479/2010, onde se decidiu não julgar organicamente inconstitucionais os artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º, 2 do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que não admitem a possibilidade da pessoa interveniente em acidente recusar-se a ser submetida a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, tipificando tal recusa como um crime de desobediência.
Embora com fundamentação diversa, também os Acórdãos n.ºs 485/2010 e 487/2010 concluíram pela não inconstitucionalidade orgânica da norma do n.º 2 do artigo 156.º do Código da Estrada, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 265-A/2001, de 28 de Setembro, renumerado pelo Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro.
Conclui-se naquele Acórdão n.º 479/2010 (disponível em www.tribunalconstitucional.pt):
«(…) o Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, ao tipificar a recusa da pessoa interveniente em acidente a ser submetida a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, como crime de desobediência, apesar de não se encontrar credenciado para legislar sobre esta matéria pelo parlamento, limitou-se a manter a tipificação de tal comportamento, constante da legislação que o antecedeu, a qual dispunha da necessária autorização legislativa, pelo que tal norma não reveste um cariz inovador, não necessitando, por isso de estar coberta por nova autorização parlamentar.»
A fundamentação do Acórdão n.º 479/2010 subjacente a esta conclusão – a que aderimos e para a qual remetemos – é inteiramente aplicável ao caso em apreço, que não apresenta qualquer elemento novo que obrigue a uma reponderação do problema.
III - Decisão
Pelo exposto, decide-se:
Não julgar organicamente inconstitucionais as normas artigos 152.º, n.º 3, e 156.º, n.º 2, do Código da Estrada, na redacção do Decreto-Lei n.º 44/2005, de 23 de Fevereiro, na parte em que não admitem a possibilidade de o interveniente em acidente de viação recusar a recolha de sangue para detecção do estado de influenciado pelo álcool, tipificando tal recusa como crime de desobediência;
Consequentemente, conceder provimento ao recurso, determinando a reforma da sentença recorrida em conformidade com o presente juízo de não inconstitucionalidade.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2011.- Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Rui Manuel Moura Ramos.
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