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Processo n.º 506/10
2.ª Secção
Relator: Conselheiro João Cura Mariano
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
Relatório
A. apresentou queixa-crime contra B., por factos que considerou integrarem o tipo legal de crime de denegação de justiça e de prevaricação, previsto e punido pelo artigo 369.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, sustentando que este, enquanto técnico superior de 2.ª classe, em exercício de funções no Núcleo de Apoio Judiciário, cometeu várias ilegalidades em processos referentes a pedidos de apoio judiciário apresentados pelo queixoso, querendo, com isso, impedir o acesso de cidadão economicamente carenciado aos tribunais e prejudicá-lo intencionalmente.
Findo o inquérito, que correu termos na 7.ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, com o n.º 9184/04.8TDLSB, o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, nos termos do artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por ter concluído pela inexistência de crime.
A., na qualidade de assistente, requereu então a abertura de instrução, peticionando a pronúncia do arguido pela prática de seis crimes de denegação de justiça e prevaricação, p. e p. pelo artigo 369.º do Código Penal
Remetidos os autos ao Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e finda a instrução, foi proferida decisão instrutória, em 6 de Maio 2009, a qual não pronunciou o arguido.
Desta decisão, recorreu o assistente para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 9 de Março de 2010, negou provimento ao recurso, com a seguinte fundamentação, na parte que ora releva:
“2.2 - Estão em apreciação e, em síntese, as seguintes questões:
2.2.1 - A actuação do arguido não foi efectuada no âmbito de inquérito processual, tendo-o sido apenas em processo administrativo gracioso não abrangível no tipo penal do artº 369º do CP-
2.2.2. Caso se considere que o foi em âmbito de inquérito processual, detectaram-se ou não suficientes indícios de que agiu contra direito na previsão típica daquela norma penal-
2.3 - A posição deste Tribunal
2.3.1 - Desde logo, a primeira questão, se a sua solução for negativa, prejudicará inevitavelmente o conhecimento da segunda. Por isso, é ela a problemática que deve ser conhecida desde logo. Cremos com certeza e sem dúvidas que a decisão foi acertada.
O tipo legal do artº 369º do CP, na sua matriz e atendendo à sua génese e história, afasta, não preenche, a actuação de funcionário no âmbito de inquérito não processual, tenha ele lugar em qualquer sede. Mas não afasta o inquérito processual, pois, obviamente, ali o prevê.
Será o pedido de apoio judiciário tramitado no ISSS um inquérito processual- Que é uma actuação procedimental administrativa graciosa tendente a uma determinação de um resultado (positivo ou negativo), não há dúvidas em responder afirmativamente. E, como regra, a actuação procedimental pode ser sujeita a um contencioso, numa posterior fase, em caso de desacordo da decisão final por parte de algum dos interessados na relação jurídica administrativa. No caso do pedido de apoio judiciário, a dissensão tem vindo a ser decidida no âmbito de um tribunal, que na fase contenciosa daquela tramitação, decide pelo acerto ou desacerto do indeferimento.
Ora, como bem o referiram á saciedade quer o decisor em 1ª instância quer o MºPº e consta dos trabalhos preparatórios da Comissão revisora do CP, (...) “o legislador quis, inequivocamente, excluir do âmbito de aplicação da norma (artº 369º do CP) em análise o processo administrativo gracioso (não contencioso, portanto), intenção que, de resto, resulta claramente dos trabalhos preparatórios da Comissão Revisora do Código Penal de 1982, que vieram culminar na actual redacção do preceito incriminador, introduzida pelo DL. n.º 48/95 de 15/03.
Tratando-se de um crime específico próprio (por agente dotado de qualidade funcional em sentido amplo) contra a realização da justiça (note-se que originalmente a redacção do preceito mencionava “inquérito criminal”) é aqui que o bem jurídico se situa especificamente, de acordo com a doutrina dominante, sendo pacífico que, nessa perspectiva, o tipo de crime pretende garantir a supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos da administração da justiça, maxime judiciais. O ataque ao bem jurídico dá-se por dentro do aparelho estadual de administração da justiça e não por fora, sendo ele a resposta penal aos abusos da função judicial, ainda que o tipo abranja uma larga série de funcionários e não apenas os magistrados.
Por outro lado, a intervenção tem de surgir sempre em modalidades contenciosas de processo e não em modalidades graciosas. Terá ainda de se pensar que um inquérito não é necessariamente processual e que o apoio judiciário, sendo tendencialmente um inquérito (no sentido de uma averiguação), pode também não o ser, se o pedido for acompanhado dos elementos coadjuvantes de prova ou confirmativos de uma presunção de insuficiência económica. Seja como for, entendemos que o sentido histórico na génese da expressão em vigor se refere sobretudo aos inquéritos de natureza criminal, contraordenacional ou disciplinar e não aos inquéritos decorrentes da determinação dos pressupostos de concessão, em fase prévia (jurisdicional) e administrativa junto do ISSS.
Esta opção (de não inclusão no preceito, dos inquéritos do tipo dos aludidos, relativos aos pedidos de apoio judiciário ou dos existentes no âmbito do processo administrativo gracioso - onde também se podem encontrar situações averiguativas) foi afastada claramente pelo legislador. E, pelo contrário, o cabimento da hipótese incriminadora é manifesta violação da lei, dos princípios da legalidade e da tipicidade, v.g. se a inclusão pretendida pelo assistente fosse obtida por via de uma qualquer interpretação extensiva (não existe suficiente correspondência disso permissiva na letra da lei) e/ou analógica ou por integração de lacuna, consabidamente proibida - artº 1º nº 1 e 3 do CP e artº 29º nº 1 da CRP. Na tese do assistente, o apoio judiciário seria um inquérito processual para o efeito da tipificação penal pretendida já que seria prévio a uma acção judicial. Ora, se assim fosse, então todos os procedimentos administrativos com tramitação averiguativa seriam sempre inquéritos processuais, na medida em que se lhes seguisse uma fase contenciosa.
Por outro lado, se à tramitação procedimental da concessão ou não de apoio judiciário lhe fosse dada a natureza jurisdicional (como já a teve em leis de assistência judiciária anteriores), não se perceberia a razão da opção do legislador para a sua “deslocação” institucional para a área de competência de uma entidade administrativa como é o caso do ISSS.
Há que não confundir natureza “jurisdicional” com “impugnabilidade por via jurisdicional” uma vez que esta se situa exactamente no campo do contencioso, mas não confere ao elenco procedimental (administrativo) “impugnando”, a natureza judicial pretendida, já que o seu resultado se alcançou através de averiguação (não processual) por entidade com natureza não jurisdicional mas administrativa.
Desta feita, o despacho recorrido mostra-se conforme à lei e exarado de acordo com a hermenêutica jurídica que se nos afigura mais correcta de acordo com a génese histórica do artº 369º do CP e com o alcance do bem jurídico ali protegido.
Face a esta conclusão, fica prejudicada a análise da questão de saber arguido agiu ou não contra direito, pois fosse qual fosse a solução alcançada, ela não teria qualquer efeito penal relevante no caso concreto.”
Recorreu então o assistente para o Tribunal Constitucional, nos seguintes termos:
“O recurso é interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do Artº 70º da Lei nº 28/82 de 15 de Novembro, na redacção dada pela Lei nº 85/89 de 7 de Setembro e pela Lei nº 13-A/98 de 26 de Fevereiro;
Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade da norma do Artº 369º nºs 1 e 2 do Código Penal, com a interpretação transparecente dos arestos recorridos, no sentido de que as decisões tomadas por funcionário competente, em sede de processo administrativo gracioso, de apreciação de pressupostos para a concessão de apoio judiciário, está excluída dos actos ou funcionalidades previstas na norma penal, aplicando-se tão só aos processos jurisdicional, disciplinar, e contra-ordenacional.
Tal norma, e com essa interpretação, viola o Artº 271º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
(…).”
O recorrente apresentou as seguintes alegações:
“O presente recurso vem no seguimento da decisão do douto acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que negou provimento ao recurso do aqui recorrente, com fundamento de que a norma do Artº 369º nºs 1 e 2 do Código Penal, não se aplica em sede de Processo Administrativo Gracioso, na apreciação de pressupostos para a concessão de apoio judiciário, aplicando-se tão só em sede de Processos Jurisdicional, Disciplinar e Contra-ordenacional.
Ora, entende o aqui recorrente, que tal norma, com tal interpretação, viola o Artº 271º nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Com efeito, a letra do dito Artº é bem clara:
“Os funcionários públicos e agentes do Estado, são responsáveis criminalmente pelas acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos”.
Não se compreende, que se tal responsabilidade acontece em sede de Processos Jurisdicional, Disciplinar e Contra-ordenacional, porque não há-de também acontecer em processo Administrativo Gracioso, pois, também aqui há direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos a defender, nomeadamente in casu, o direito ao acesso ao direito e aos tribunais, em caso de insuficiência económica.
Pois, a prevalecer tal entendimento, uma decisão intencionalmente dolosa de um funcionário público, como in casu aconteceu, impede o cidadão de defender os seus direitos e interesses no Tribunal, por infelizmente não possuir condições económicas para pagar custas processuais e honorários a advogado.
Termos em que tendo alegado o aqui recorrente - assistente, a inconstitucionalidade da norma do Artº 369º nºs 1 e 2 do Código Penal, na interpretação que lhe foi dada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, deve o presente recurso, ser considerado procedente e consequentemente ser:
A) Julgada inconstitucional a norma do Artº 369º nºs 1 e 2 do Código Penal, na interpretação segundo a qual, só se aplica em sede de Processos Jurisdicional, Disciplinar e Contra-ordenacional e não em sede de Processo Administrativo Gracioso, para averiguação dos pressupostos da insuficiência económica para efeito de acesso ao Direito e aos Tribunais, por violação do Artº 271º nº 1 da Constituição de República Portuguesa.
B) Em consequência, ser concedido provimento ao recurso e revogada a decisão recorrida, que deverá ser reformulada em conformidade com o juízo de inconstitucionalidade.”
O Ministério Público apresentou contra-alegações em que concluiu do seguinte modo:
“1. A Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, veio alterar radicalmente os mecanismos de apreciação da insuficiência económica que está na base do instituto do apoio judiciário, procedendo à respectiva “administratização” – entregando à Segurança Social a respectiva valoração.
2. Estamos, assim, perante um típico procedimento administrativo que culmina com uma decisão proferida por uma entidade administrativa.
3. O facto da decisão administrativa ser relevante para a possibilidade de intervenção num qualquer inquérito processual ou processo jurisdicional e estar em causa, em última análise, o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais (artigo 20º da Constituição), não afecta, minimamente, a natureza administrativa do procedimento.
4. Constitui elemento objectivo do crime de denegação da justiça previsto no artigo 369.º, n.º 1, do Código Penal, que o funcionário actue no âmbito de “inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar”.
5. A interpretação que considera não estar incluído em nenhum daqueles “processos” o procedimento com vista à concessão do benefício de apoio judiciário, não viola o artigo 271.º, n.º 1, da Constituição.
6. Na verdade, estabelecendo-se naquele preceito constitucional que os funcionários são criminalmente responsáveis pelas acções ou omissões praticadas no exercício de funções, definir a exacta forma como se concretiza essa responsabilidade, cabe ao legislador ordinário, que terá de ser a Assembleia da República ou o Governo se para tal autorizado (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição).
7. Só assim se mostrará respeitado o princípio da legalidade (artigo 29.º da Constituição), sendo certo que nesta matéria o legislador goza de uma ampla liberdade de conformação.
8. Termos em que deve ser negado provimento ao recurso.”
Fundamentação
O Recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade da interpretação do artigo 369.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, no sentido de que o mesmo não abrange as decisões tomadas por funcionário competente, em sede de processo administrativo gracioso de apreciação de pressupostos para a concessão de apoio judiciário, sustentando que tal interpretação viola o disposto no n.º 1, do artigo 271.º, da Constituição.
Dispõe o artigo 369.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal:
“Denegação de justiça e prevaricação
1 – O funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 120 dias.
2 – Se o facto for praticado com intenção de prejudicar ou beneficiar alguém, o funcionário é punido com pena de prisão até 5 anos
(…)”
No caso dos autos, o recorrente apresentou queixa-crime contra B., técnico superior do Instituto de Solidariedade e Segurança Social, sustentando que, em processos para a concessão do benefício do apoio judiciário que corriam termos naquele Instituto, aquele funcionário teria praticado actos passíveis de serem qualificados como crime de denegação de justiça e prevaricação.
Foi entendimento das instâncias e, concretamente, da decisão recorrida, que dada a natureza dos processos no âmbito dos quais o funcionário teria agido (que não constituíam nem inquérito processual, nem processo jurisdicional, nem por contra-ordenação ou disciplinar), não se mostrava preenchido este elemento do tipo objectivo de crime previsto no artigo 369.º, n.º 1, do Código Penal. Entendeu-se, em síntese, que o pedido de apoio judiciário tramitado no Instituto de Solidariedade e Segurança Social é um procedimento administrativo gracioso (não contencioso), que o legislador não incluiu no âmbito de aplicação da referida norma (artigo 369.º do Código Penal). É também este o entendimento de A. Medina Seiça (Comentário Conimbricence do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, pág. 610), que, a este respeito, afirma:
“(…) Como se referiu, o delito pressupõe uma específica qualidade do agente: ser funcionário. Note-se, de toda a forma, que não basta o desempenho de essa genérica função nos termos definidos no art. 386. Importa, ainda, a função concreta assumida pelo agente, isto é, o exercício dos deveres do cargo tem de verificar-se no âmbito de um processo jurisdicional, contra-ordenacional ou disciplinar, tudo modalidades contenciosas de processo. Exclui-se, assim, e como aliás resulta expressamente dos trabalhos preparatórios, o processo administrativo gracioso (cf. Actas 1993 426)”.
Como é sabido, não cabe no âmbito do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade apreciar, do ponto de vista do direito ordinário aplicável, da correcção da interpretação normativa adoptada pelo acórdão recorrido. Ao Tribunal Constitucional cumpre apenas tomar como objecto deste recurso a norma tal como ela foi interpretada e aplicada, no caso, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no sentido de apreciar se a mesma viola o disposto no artigo 271.º, n.º 1 da Constituição, conforme sustenta o recorrente.
Determina este preceito que “os funcionários e agentes do Estado e das demais entidades públicas são responsáveis civil, criminal e disciplinarmente pelas acções e omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício de que resulte violação dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos (...)”.
Nesta disposição reflecte-se o princípio da responsabilidade subjectiva dos funcionários ou agentes do Estado pela violação, no exercício das suas funções, dos direitos dos cidadãos, como forma de garantia dos princípios da legalidade e da eficiência administrativa, estimulando a diligência dos servidores do Estado e assegurando protecção preventiva e reparadora aos direitos dos cidadãos.
A consagração dos regimes destas diferentes responsabilidades, efectuada pelo legislador ordinário, em obediência ao citado ditame constitucional, deve ser feita com respeito pelos princípios enformadores dos respectivos institutos.
Relativamente à responsabilidade criminal, há que ter em consideração que o direito penal cumpre uma função de última ratio, só se justificando a sua intervenção para proteger bens jurídicos se não for possível o recurso a outras medidas de política social, igualmente eficazes, mas menos graves do que as sanções criminais, só se impondo a criminalização quando manifestamente a gravidade da conduta reclama a intervenção do direito penal. Como se disse no Acórdão n.º 99/02, deste Tribunal, “[...] as medidas penais só são constitucionalmente admissíveis quando sejam necessárias, adequadas e proporcionadas à protecção de determinado direito ou interesse constitucionalmente protegido, e só serão constitucionalmente exigíveis quando se trate de proteger um direito ou bem constitucional de primeira importância e essa protecção não possa ser suficiente e adequadamente garantida de outro modo” (em ATC, 52.º vol., pág. 457).
Ora, face à ampla liberdade de conformação do legislador ordinário, constitucionalmente permitida neste domínio, há que concluir que não é forçoso, nem decorre do imperativo constitucional contido no artigo 271.º, n.º 1, da Constituição que todo e qualquer acto praticado por funcionário no âmbito de procedimento administrativo gracioso de que resulte violação de direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos tenha que desencadear a responsabilidade criminal desse funcionário, designadamente a tipificada no artigo 369.º do Código Penal.
Se é certo que a tipificação em causa se enquadra num sector, mais amplo, dos crimes de funcionários, em que o factor de união reside na violação dos deveres funcionais decorrentes do cargo desempenhado (designadamente, os crimes previstos nos artigos 372.º a 385.º do Código Penal – cfr. Capítulo IV, do Título V, da Parte Especial, respeitante aos “crimes cometidos no exercício de funções públicas”), a doutrina dominante identifica o específico bem jurídico protegido por este tipo legal de crime com a realização da justiça. Neste mesmo sentido, A. Medina Seiça (ob. cit., pág. 609-610), aderindo à opinião de Rudolphi, acrescenta que “…este tipo de crime pretende assegurar o domínio ou supremacia do direito objectivo na sua aplicação pelos órgãos da administração da justiça, maxime judicias (…). É esta perversão ad imo – transformação do direito em injusto por parte de quem é chamado a servir de garante institucional à própria Ordem Jurídica – que convoca a particular censura da norma incriminadora”).
Ora, não se inserindo o processo administrativo gracioso na actividade judicial do Estado, não se revela arbitrária e sem sentido a exclusão dos actos praticados pelos funcionários nesse tipo de processo do tipo legal de crime previsto no artigo 369.º, do Código Penal.
Assim, a interpretação seguida na decisão recorrida, no sentido de que os actos praticados por funcionário no âmbito de processo administrativo gracioso, donde resulte violação de direitos ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos, não integram a previsão do tipo legal de crime de denegação de justiça, p. e p. no artigo 369.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, não cria uma lacuna de punibilidade relativamente a essas condutas, até porque essa exclusão não significa que elas estarão a salvo de qualquer responsabilidade criminal, uma vez que sempre poderão ser criminalmente puníveis, desde que integrem os pressupostos de um qualquer outro tipo legal de crime que tenha, também, como traço característico, a qualidade de funcionário do agente (designadamente, os crimes previstos nos referidos artigos 372.º e ss. do Código Penal).
Em suma, e pelas razões expostas, impõe-se concluir que a interpretação normativa objecto de fiscalização não viola o disposto no artigo 271.º, n.º 1, da Constituição, pelo que o presente recurso não merece provimento.
Decisão
Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto por A. para o Tribunal Constitucional do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido nestes autos em 9 de Março de 2010.
Custas pelo Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 303/98, de 7 de Outubro (artigo 6.º, n.º 1, do mesmo diploma), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.
Lisboa, 9 de Dezembro de 2010.- João Cura Mariano – Joaquim de Sousa Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – Rui Manuel Moura Ramos.
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